EU
E A MÚSICA
(Augusto Pellegrini)
OS
REIS DO IÉ-IÉ-IÉ – A DESCOBERTA
É certo que o jazz sempre fez parte da minha vida.
Afinal, quando criança tive uma saudável iniciação ao ser apresentado aos
discos de ebonite, os chamados “bolachões” gravados em 78 rpm com as orquestras
de Benny Goodman, Harry James, Artie Shaw e Xavier Cugat, e aquele tipo de
música me conquistou de uma forma definitiva.
O material foi se modernizando e passou a ser prensado em discos com 33 rpm, ao
mesmo tempo em que o gosto se aprimorava com a evolução do jazz, passando do
swing das grandes orquestras para as firulas do bebop de Gillespie e Parker e
mais tarde desembocar no jazz branco de Dave Brubeck e Chet Baker e no
refinamento do cool-blues e da chamada “third-stream music” cultuados pelo
Modern Jazz Quartet.
Na década de 1950, houve porém um desvio de rota.
É que o rock dos precursores chegou com a força da country music, foi invadido
pela essência do boogie-woogie e do blues, e trouxe uma nova linguagem que
também passou a acompanhar o meu gosto musical, representado pela arte de
Little Richard, Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis e outros mais.
Como acontece com toda novidade, não demorou muito para que surgissem
aproveitadores com músicos e músicas de menor qualidade e começassem a ocupar espaço
nas gravadoras e emissoras de rádio, prenúncio triste do que iria acontecer 70
anos depois.
A turma que reverenciava o jazz e o rock que era comprometido com a qualidade
ignorava essa injunção puramente comercial e continuava trocando figurinhas em
lojas de discos e em clubes improvisados, e sempre sobrava espaço para ouvir um
lançamento recente na casa de um dos aficionados.
Eis que me vejo convidado para ouvir na casa do amigo Élcio Bottini o LP “Place
Vendôme - The Modern Jazz Quartet & The Swingle Singers”, um disco que
reunia o MJQ – John Lewis (pianista, arranjador, diretor musical e principal
compositor do quarteto), Milt Jackson (vibrafonista), Percy Heath (contrabaixista)
e Connie Kay (baterista que tocava com extrema leveza) – e o grupo vocal composto
por cantores franceses e regido pelo maestro Ward Swingle, americano,
especializado em vocalizar música de cunho barroco.
A mistura deste barroco, recheado de fugas e de uma harmonia tonal bachiana,
com a leveza do blues do MJQ, produziu uma das mais refinadas obras de jazz de
que se tem notícia.
Ao chegarmos na casa do Élcio, no entanto, aconteceu o impasse: a irmã mais
nova do meu amigo estava entretida com o aparelho de som ouvindo uma daquelas
novidades a princípio detestáveis, um grupo pop inglês com quatro “bonitinhos”
cantando músicas descartáveis para consumo imediato. Ela disse que era um grupo
chamado The Beatles, que estava levando à loucura garotas como ela pelos quatro
cantos do mundo.
Ora, e eu lá teria paciência para ouvir um grupo de cantores fabricados para
levar adolescentes à histeria? É claro que Élcio e eu nos recusamos a perder
tempo com aquilo e nos afastamos o máximo que pudemos da sala onde se realizava
a audição.
Aguardamos pacientemente no jardim da casa até que chegou a nossa vez de entrar
e poder ouvir o desempenho angelical e elegante do MJQ e dos cantores de Ward
Swingle, com muito blues em cada acorde vindo de dois dos mais qualificados
grupos musicais jamais formados.
-0-
De repente, uma mudança abrupta do cenário.
Eis-me, alguns meses depois, na então progressista cidade de Ribeirão Preto
(como diziam na época os documentários que antecediam os filmes nas salas de
cinema), enfadado, enfarado, entediado e enfastiado, sem nada que fazer na
tarde quente das três horas, caminhando pela praça principal da cidade,
batizada de Praça Dom Pedro II.
Na falta de algo mais consistente resolvi me aventurar indo ao cinema para
assistir – imaginem – ao filme “Os Reis do Ié-Ié-Ié” (“A Hard Day’s Night”, no
título original) que apresentava exatamente o tal quarteto de cabeludos que eu me
recusara ouvir na casa do amigo Élcio.
Operou-se a transformação: a cada instante meu interesse e entusiasmo foi
crescendo, pois o filme feito sobre um roteiro maluco de Alun Owen e muito bem
dirigido por Richard Lester, desafiava a lógica na magia do preto-e-branco,
alternando situações inusitadas num perfeito contraponto entre o irônico e o
absurdo com músicas de um delicioso desenho melódico.
Eu acabara de descobrir The Beatles, que nos próximos dez anos revolucionariam
a música, muitos músicos, a própria história do rock e os costumes de toda uma
geração, levando esta tendência mais além, mesmo depois de a banda ser
desfeita.
Se naquela tarde eu tivesse atendido ao chamado da irmã do Élcio, quem sabe
teria gostado de imediato da nova música, mas com certeza o impacto não teria
sido tão grande.
Ao sair do cinema corri até as Lojas Americanas e comprei o LP, que seria a
primeira aquisição de toda a coleção catalogada do grupo, depois acrescido de
gravações pirata que não estão em catálogo e de muito material da fase solo de
cada um dos Paul, John, George e Ringo que fizeram a banda.
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