EU
E A MÚSICA
(Augusto Pellegrini)
QUEM
SOU EU PARA FALAR DE VIEIRA?
Final
São muitas as diferenças culturais que poderiam ter servido
de barreira entre Antònio Vieira e eu: diferença de idade, diferença de lugar
de nascimento, diferença de história de vida e até diferença de vivências
musicais.
Pra ficar só com esta última, pelo lado de Vieira existe um profundo
conhecimento das coisas do Maranhão, como suas raízes, seus ritmos populares (bumba-meu-boi,
tambor de crioula, tambor de mina), a poesia do cotidiano, as intimidades de
São Luís e as coisas deste nordeste, e pelo meu lado está a universalização da música
– influências do erudito, do jazz, do blues – e a herança europeia inculcada no
sul do país.
Estas diferenças, no entanto não foram suficientes para interferir no respeito
mútuo pela arte que manifestávamos, na forma como víamos o mundo e na empatia
que prontamente nasceu e assim foi cultivada.
Tornei-me amigo de Vieira e estivemos juntos no mesmo palco por diversas vezes,
cada um dando vazão ao seu modo de interpretar, ao seu padrão musical e ao seu
repertório.
E, por sugestão do próprio mestre, por diversas vezes dividimos a mesma canção.
Juntos, cantávamos “Smile” obra prima de Charles Chaplin, eu em inglês (“Smile though your heart is aching / smile
even though it’s breaking / when
there are clouds in the sky you’ll
get by”) e ele retrucando em português (“Sorri quando a dor te torturar
/ e a saudade atormentar / os teus dias tristonhos, vazios”), na
versão escrita por Djavan.
O mesmo acontecia com “Contigo En La Distancia” – bolero de Cesar Portillo de La
Luz (“No hay bella melodia / en que no surjas tú / ni yo quiero escucharla / si no la escuchas tú”), ao que Vieira
aparecia com a versão de Paulo Gilvan, feita para o Trio Irakitan (“Não existe melodia / em que não surjas tu / nem eu quero escutá-la / se não a escutas
tu”)...
Estivemos juntos também nas mesas de bar e nas casas dos amigos, eu com a minha
cerveja e ele com o seu refrigerante, que bebia de forma parcimoniosa enquanto
me brindava com seus incontáveis “causos” que dariam um delicioso livro de
crônicas, incluindo algumas histórias da sua juventude e a origem de muitas das
suas incontáveis composições, algumas delas impagáveis, outras impublicáveis.
Fazem falta as gargalhadas que ele provocava ao final de cada história, que muitas
vezes precediam a sua entrada em cena para sob os holofotes, onde desfilaria mais
uma sessão de música, ginga e encantamento.
O mestre Antônio Vieira nos deixou em abril de 2009, quando tinha 88 anos e
muitos planos para outros voos dentro da música popular brasileira.
Voou para mais longe, levando sua simpatia para junto dos anjos.
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