sexta-feira, 15 de abril de 2022

 

                                  Na foto: Nara Leão e Carlos Lyra

COMO NASCEM AS CANÇÕES
(Augusto Pellegrini)
 

(Parte 7) 

A bossa nova logo se desentendeu consigo mesma graças a uma corrente que contestava o seu lado burguês. Para eles, a poesia bossanovista se fixava apenas nas belezas do Rio e deixava de lado antigas queixas sobre a qualidade de vida do carioca menos privilegiado.

Em outras, palavras, descobriram que a bossa nova era “alienada”.

Uma ala dissidente procurava buscar como fonte de inspiração o lado B da cidade – o morro, a favela e a pobreza – um movimento interessante que acabou valorizando músicos e compositores de outras vertentes, como Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho e mesmo João do Vale, agregando-os à juventude intelectual progressista que frequentava o local – Carlos Lyra, Edu Lobo, Baden Powell, Oduvaldo Vianna Filho, Ruy Guerra, Nelson Lins e Barros, Dori Caymmi, Sérgio Ricardo.

O movimento também descentralizava o foco da bossa nova e nacionalizava a visão crítica social, inserindo no contexto compositores como Chico Buarque, Capinam, Gilberto Gil e Dominguinhos.

Nara Leão, que havia se imortalizado como “a musa da bossa nova” era, ao lado de Elis Regina e Maria Bethânia, o principal motor incentivador da nova cena.

Um dos compositores que mais lutaram nesse sentido foi Carlos Lyra, o mesmo da sereníssima “Se É Tarde, Me Perdoa” (“Se é tarde, me perdoa / Mas eu não sabia que você sabia / Que a vida é tão boa / Se é tarde, me perdoa / Eu cheguei mentindo, eu cheguei partindo / Eu cheguei à toa /  Se é tarde, me perdoa / Trago desencantos de amores tantos pela madrugada / Se é tarde, me perdoa / Vinha só, cansado”).

Deixando a poesia de lado, Lyra saiu em defesa do lado pobre do Rio e compôs coisas como “Feio Não É Bonito” (“Feio não é bonito / O morro existe, mas pede pra se acabar / Canta, mas canta triste / Porque tristeza é só o se tem pra cantar / Chora, mas chora rindo / Porque é valente e nunca se deixa quebrar / Ama, o morro ama / O amor aflito, o amor bonito que pede outra história...”) ou “Maria Moita”, um hino ao feminismo em plenos anos 1960 (“... Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois / Por isso é que a mulher trabalha sempre pelos dois / Homem acaba de chegar tá com fome / A mulher tem que olhar pelo homem / E é deitada ou em pé, mulher tem é que trabalhar...”).

Tom Jobim e Vinícius de Moraes também entraram na onda e compuseram “O Morro Não Tem Vez” (“O morro não tem vez / O que ele fez já foi demais / Mas olhem bem vocês / Quando derem vez ao morro / Toda a cidade vai cantar”).

Além de buscar inspiração nas raízes mais sofridas do povo do Rio de Janeiro, Carlos Lyra também engrossou a onda social-nacionalista na mesma linha de José Ramos Tinhorão, Gianfrancesco Guarnieri, Chico de Assis e Geraldo Vandré ao denunciar a “invasão americana” na música brasileira.

Lyra compôs “Influência Do Jazz” (“Pobre samba meu / Foi se misturando, se modernizando / E se perdeu / E o rebolado, cadê? /Não tem mais / Cadê o tal gingado que mexe com a gente? / Coitado do meu samba, mudou de repente / Influência do jazz”), mais ou menos nos mesmos moldes de “Chiclete Com Banana”, composto por Gordurinha e Almira Castilho e gravada por Jackson do Pandeiro em 1959 também na onda do nacionalismo (”Eu só ponho bebop no meu samba / Quando Tio Sam pegar o tamborim / Quando ele pegar / No pandeiro e no zabumba / Quando ele aprender que o samba não é rumba...”).

Walter Santos, um baiano cuja voz e atitude lembravam João Gilberto, sustentou a discussão com “Samba Só” (“Bossa nova ou samba-jazz / Sambalanço ou samba só / O que importa é que o balanço é bom / Interessa é balançar / Bossa nova ou samba-jazz / Nosso samba agora está demais / Ah, meu samba, fizeram tanta confusão / Disseram que você desafinava / Ah, meu samba, quanta ingratidão”), e Leny Andrade veio de “Estamos Aí”, de Durval Ferreira e Mauricio Einhorn (“Só se for agora a bossa vai prosseguir / Todo mundo vai gostar, nosso samba é demais / Bossa nova vai mostrar que pode arrasar / Se falar de sol e amor, de mar e luar / E de gente que cantando vai / Gente que só tem na alma paz e amor / E pro mundo todo vai mostrar então / Que a bossa nova cresce / Que a bossa nova vence / Que a nossa bossa vale, estamos aí!”), e completava com um magnífico scat bem na linha do bebop.  

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