Este conto, escrito no final da década de 1960, foi publicado em 1988 no meu livro “Coisas – Autobiografia Crítica dos Anos 60”
IMPRESSÕES COLHIDAS NO
INFERNO
(Parte Um)
Dante se aproximou da minha porta. Veio
devagar, arrastado, sem vontade. Veio como se estivesse partindo.
A rigor, Dante estava sempre partindo, e
“ritornare” não era verbo de seu uso
diário, exceto quando se tratava da minha casa. Dante dava a impressão
quitinosa de um besouro, feio, frio e indeciso.
Tinha ele algum dia chegado a chegar?
Tinha algum dia contemplado uma aurora sem chuva? Tinha algum dia visto o sol
brilhar? Tinha algum dia saído do fundo do seu bolso, junto com o fumo moído e
o feltro esparso?
Tinha ele visto algum dia a sua própria
imagem refletida em um espelho, ou era simplesmente um espectro, como muitos,
um objeto sem consistência, um mero fluido?
Mais uma vez, Dante se aproximou da
minha porta. Veio como se estivesse partindo.
-0-0-0-
Passei a noite inteira com enxaqueca,
uma indisposição de estourar, de maldizer defuntos. Existe o vazio? – eu era o
vazio.
Vamos, riam, digam que não é necessário
exagerar, afinal não cheguei a morrer nem nada, e isso ficou provado pela imensa
dor de barriga e o seu irrefutável produto, e com ela os suores frios que
brotavam e escorriam pela testa febril.
Os
que dizem que a gula é um pecado capital é porque nunca provaram rãs fritas no
arroz de açafrão, anchovas com amêndoas ou ovas de esturjão na manteiga, é
porque passam fome, e a fome ninguém diz que é pecado capital.
Ainda bem que eu pelo menos podia sentar,
fosse há algumas semanas e nem isso teria sido possível, pois uma inflamação
vulcânica irrompera bem no finzinho da espinha, e foram necessários dez dias de
emplastros e cataplasmas para se desfazer a impressão de eu estar sentado na
boca de um dragão.
Ainda bem que eu podia pelo menos
sentar, pois fiquei a noite inteira nessa posição, e também parte do dia – se
eu me deitasse, o quarto começava a girar em graus, grados e radianos. O
tique-taque do relógio-despertador parecia o andar calculado de um facínora.
O dragão agora está no meu estômago, e
no meu esôfago, e nos meus intestinos grosso e delgado, entalado como um
espinho vomitando fogo candente.
Indigestão vá lá, isso até eu
suportaria, desde que preestabelecidas as regras do combate. Mas as ostras têm uma mentalidade deformada, e quando cismam
de arrasar organismos, não há bom conselheiro que as faça mudar de idéia. É uma
questão de incompatibilidade, creio eu, pois nem todos os antiácidos do mundo nem
sequer o chá de folha de goiaba receitado pela avó conseguiram servir de
mediador, como fazem os advogados com os cônjuges mal parados, e tudo teve que
se resolver pelas vias normais.
A gula é um pecado capital, pois bem,
que seja! Comi as malditas “senza voler
dare tempo al tempo e nemmeno assaggiarle, dannate ostriche, putride ostriche!” – como diria Dante,
com suas imprecações operísticas. Comi as malditas deixando sal e limão
escorregarem sobre a sua escorregadia figura e as engolindo trêmulas como se
ainda vivessem. Eu sei, são quase que apenas compostas de água e de uma pequena
parte de um mineral inócuo, parecem horrorosamente inofensivas, mas não
intoxicam – matam.
Matam como uma doença danada.
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