terça-feira, 3 de outubro de 2017




Este conto foi publicado em 1992 no meu livro “O Fantasma da FM”, dentro de uma sequência chamada “Os Sete Pecados Capitais”

A LUXÚRIA
(Parte Um)

Luxúria é uma coisa que gera margem a dúvidas.
Apesar de no dicionário constar como o suprassumo da libertinagem, isto é, sacanagem da grossa, ou como o superlativo da natureza em viço – e eu disse viço, não vício – a palavra nem sempre é usada na sua forma ou dimensão real. Ou então já não se peca como antigamente. 
Até o pecado anda perdendo a graça.
Antes, tudo era proibido, tudo era escondido, saboroso como a maçã do jardim do paraíso, correndo o risco de surgir de repente um vetusto senhor de barbas brancas e olhar iracundo, o dedo em riste e o cajado a brandir para a expulsão perene do pecador.
Agora, na terra das novelas e dos filmes, o pecado assumiu uma forma eletrônica e a sensualidade invadiu as nossas casas pelas frestas da porta e da janela através de livros, jornais e revistas, e a luxúria se descaracterizou, virou artigo de consumo e, sendo “prêt-à-porter”, perdeu a sua antiga importância. Já não se despem as garotas com os olhos, elas já vêm despidas; já não se escondem segredos fechados a sete chaves, pois as fechaduras agora ficam permanentemente abertas. 
Até a palavra “luxúria” perdeu aquele grandiosismo, aquela majestosidade, aquele lirismo, aquela magia.
Para mim, no entanto, a luxúria continua presente no desfile da escola de samba, no espartilho de madame Du Barry, no olhar de Casanova, no comportamento da Bardot e seu busto tridimensional, em Baco com os seus bagos de uva, no tapete persa, na odalisca e no perfume francês. 
Luxúria não é uma mulher se fazendo de fácil, e sim a maior das cortesãs fazendo o jogo do difícil para o amador apaixonado.
Luxúria não é a simples intimidade de alcova, e sim a própria alcova.
Luxúria é a taça de champanhe tendo como fundo cortinas de veludo vermelho ao som de violinos.
Luxúria não é o “strip”, e sim o “tease”.
Definitivamente.
-0-

O velório até que estava animado.
No canto da sala, dois amigos e um tio do morto relembravam historietas de antigos velórios, aqueles onde não faltava o café forte nem a cachaça batizada, e as piadas de humor negro faziam a alegria da festa.
No sofá de ramagens vermelhas já um tanto gasto pelo uso de tantos assentos que lá depositaram seus assentos, com o braço direito manchado e o esquerdo engordurado, o velho patriarca, tio-avô do falecido, sorrindo suas rugas bem comportadas, contava nos dedos quanta gente ele já havia visto ir a pique na sua longa existência enquanto ele continuava aqui, intrépido, firme, arriscando olhares cúpidos para duas ou três moçoilas que por ali desfilavam como se estivessem num shopping num sábado vespertino – “Será que esta é a filha da comadre Ermelinda? Será que aquela é a sobrinha do Nestor? Mas que beleza de ancas!” – o tio-avô continua um eterno fauno.
Genoveva, a viúva, com uns quilinhos a mais e os cabelos em desalinho pranteava o seu defunto, ainda meio confusa, ainda o que saber o que iria acontecer dali pra frente, com cinco filhos para terminar de criar e a incerteza do futuro. Felizmente a prestação da casa seria enterrada junto com ele, uma das benesses do contrato.
Tudo transcorria normalmente, o cheiro da vela, o sussurro sussurrado, o cachorro se esgueirando por entre as pernas da eça e o morto com as mãos sobre a barriga.
Tudo parecia correr normalmente, mas alguma coisa estava por acontecer, a interrogação balançando no ar qual espada de Dâmocles, a sensação de escândalo, o escândalo.

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