sábado, 7 de outubro de 2017




IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO
1988

(Parte Dois)


Se eu comi aquelas ostras assassinas e entrei neste estado escatológico foi por causa da Sexta-feira Santa, vejam só se faz sentido, as pessoas na igreja e eu na latrina, fé de um lado e fezes do outro, podem me chamar de sacrílego ou até mesmo de louco, podem me excomungar ou me retalhar a pedradas como o fizeram a Santo Estevão, mas infelizmente esta é a sagrada verdade, este é um fato consumado.
No Seu dia aziago, Ele não comeu nada, nem peixe, nem pão, nem sementes, nem frutos do mar (conforme atestam as Escrituras), o que acabou produzindo uma imensa grei de jejuadores. Mas, autorizados por consistórios e até por concílios, os homens romperam o incômodo jejum e começaram a comer pra valer, principalmente peixes e frutos do mar, como se não houvesse vida no mar, como se não houvesse dor e agonia no mar.
Ele morreu pisado, pregado, lanceado, com as costas ardendo a poder de vinagre e látego, mas pelo menos com as tripas em ordem.
Por causa das humanas decisões divinas, seguindo as divinas decisões humanas, eu engoli as ostras criminosas e por isso fiquei naquele estado inquietante. Morrer vá lá, mas não numa Sexta-feira Santa, chorando se houver lágrimas, chorado se houver lágrimas, sem ao menos ter provado o pernil da Páscoa (o que acabou acontecendo de qualquer modo, pois as vísceras urravam de náuseas só pela fragrância que emergia das panelas, enquanto toda a família festejava com enorme gáudio).
Tudo isto é incompreensível como um criptograma, é ilógico como um paradoxo, é anômalo como um eunuco. As tampas das panelas tremiam devido ao vapor bem cheirante, o domingo estava claro e cheio de sol, os pássaros voavam alegres fora das gaiolas, um gato dormitava debaixo de uma cobertura de zinco e a luz do sol filtrava pelos buracos dos pregos. As plantas balançavam e contrabalançavam ao sabor da brisa e os vizinhos riam alto com gosto de álcool na sua pascoalina libação, que transforma este domingo num velório sem respeito, afinal faz apenas dois dias que Ele morreu.
Na sexta-feira todos entoavam tristezas atrás do andor e se persignavam diante do altar, mecanicamente como um cuco na hora certa, e todos beijavam os pés de gesso do Cristo morto, assassinado por eles próprios. Agora todos O matam novamente com hipocrisia e farisaísmo e são piedosos dentro das suas conveniências, esmigalhariam homens e crianças como quem esmaga um inseto, arrebentariam cabeças e cuspiriam em cima dos cadáveres, mas sempre com os olhos meigos voltados para o sacrário e os lábios balbuciando orações que eles nunca entenderam, certos de que Ele lhes estende os braços e lhes chama para o Seu lado.    
Tratantes! No domingo há o morticínio geral, com facas e asfixias numa sucessão contínua – animais são abatidos aos milhares enquanto prosseguem a libação entornando baldes de bebidas alcoólicas – e aí então ninguém mais se lembra dos sofrimentos que Ele sofreu nem do sangue que Ele derramou aos borbotões, embora estejam alegres porque Ele ressuscitou – sem atinar que ressuscitar significa morrer primeiro, isto é ou não é um contrassenso?
Os piedosos sapateiam na lápide. O ruído eu escuto daqui.


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