terça-feira, 10 de outubro de 2017




IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO
1988

(Parte Quatro)

Sofrendo todos aqueles percalços intestinos, só me faltava um visitante indesejável para servir-me de epitáfio. E ele chegou, insidioso e inesperado, como a morte.
Macilento, com a expressão de uma estátua descascada, Dante chegou do nada. Ele era um boquirroto, embora às vezes se tornasse um filósofo pensador – “dobbiamo dare tempo al tempo” – dizia entre outras palavras e algumas blasfêmias em italiano cantado como flauta doce, além de alguns refrões em latim, palavras encomendadas como prescrição homeopática, inclusive para as curas e para as incúrias, para as causas e para os efeitos, para os cautos e para os incautos.
Dante se aproximou da minha porta.
Mesmo que eu não o visse, sentiria o odor forte de maresia e ouviria o ranger das suas dobradiças mal lubrificadas.
Dante veio devagar, arrastado, sem vontade, como se estivesse partindo.
Ele sempre deu essa impressão longínqua desde que o conheci, naquele dia do rompimento do seu suposto caso amoroso com Beatriz – “a doce Beatriz”, conforme retratam as suas memórias – horas depois de ela tê-lo abandonado talvez em busca de carinhos menos canhestros e de conversas menos barrocas.
Enlouqueceu? Terá enlouquecido?
Ele hoje passa horas compondo poemas e passa dias inteiros os relendo, e à noite vem mostrá-los para mim. Não passam de poemas desbocados e tresloucados que foram escritos para servir de escapatória, criados com o frenesi de quem nunca disse ou fez qualquer coisa que realmente valesse e pena, declamando em mi sustenido as suas peripécias, com a força e a ênfase da fantasia.
Dante não passa de um sadomasoquista intelectual em mi sustenido, um poeta “gauche” em mi sustenido fora de tom, um tipo que se suicida aos poucos e que algum dia vai se suicidar completamente, de quem Beatriz fugiu certa madrugada para saciar os sentidos inexperientes.
Eu não conhecera Beatriz, e isso ajudava nos poemas de Dante, que a moldava ao seu modo – ao menos ele podia desfilar os seus lamentos com as mentiras e as meias-verdades que lhe viessem à mente, sem enrubescer ao me olhar olhos nos olhos. Eu não passo de um mero ouvinte, a cabeça assentindo enquanto ele brada como uma prima-dona de Bellini.
Sem outra alternativa, eu ouço, embora não consiga entendê-lo.
Participar os meus banquetes de ostras ele não participa, ouvir Gonzaga falar das coisas do mundo ele nunca ouviu, provém da Itália, e como tal nunca viu a Suécia a não ser nas cartografias romanas, nunca dormiu com Beatriz nem ficou acordado ao lado dela, nunca trocou as toalhas xadrez das cantinas pelo balcão branco de mármore dos bares alternativos, e ainda assim se diz um intelectual.   
Ele está arrebatado, os braços se movimentando como se movidos por um cordão invisível, o rosto muito pálido e os maxilares crispados quando se cala. Não é uma donzela chorosa, apenas um homem decepcionado, um homem deslocado no tempo, um Dante da Galiléia.
Dante – a quem o cão fiel decepou uma das mãos numa mordida de satisfação, a quem eu volto minha atenção mesmo ainda sentindo na boca e no nariz um hálito fortemente digestivo.      
No seu devaneio, Dante saiu por aí fuçando latas de lixo e cavoucando bueiros entupidos onde Beatriz poderia estar escondida. Saiu por aí esticando o pescoço para dentro de bares suspeitos onde Beatriz poderia estar escondida. Saiu por aí invadindo as igrejas silenciosas e os mercados barulhentos onde Beatriz poderia estar escondida. Mas jamais olhou para o espelho e viu seus próprios olhos opacos, onde Beatriz estava realmente escondida, diafanamente nua, mergulhada na esclerótica, fantasiando a sua visão.
Saiu às tontas pela cidade, fazendo parte do mundo estático e civilizado dos postes e das paredes envidraçadas, das vitrines e dos cartazes, das esquinas adormecidas e dos parques abandonados, e como nunca conseguiu sair de si mesmo, acabou vindo à minha casa.
Será esta a casa do Cão?


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