IMPRESSÕES
COLHIDAS NO INFERNO
1988
(Parte
Cinco)
Paganini toca no estéreo da sala com o
violino de Grumiaux, e com as mãos de Grumiaux, e com o pescoço de Grumiaux, e
com os olhos cerrados de Grumiaux. Eu o sinto, eu o vejo, demoníaco, mergulhado
na sombra, com a expressão de fauno por detrás da capa negra, trazendo com ele
as diabruras de mil diabos.
Dante ainda gesticula enquanto eu me
dirijo à janela à procura de olhares mal intencionados e de passos mal
caminhados, sentindo nas narinas um odor acre que emana de alguma venta
diabólica.
Padre não sou, e se fosse não seria
confessor. Louco não sou, e se fosse não seria confidente. Não sou filósofo,
nem filantropo. Que faço então na minha sala ouvindo as lamúrias de Dante com
remates em mi sustenido de Nicolò –“ho
lasciato tutto per uma donnaccia” – emoldurados por imprecações tamanhas
que a imagem tranqüila do avô assentada no porta-retrato se recolhe para baixo
do móvel, ele que nunca ouviu alguém falar italiano, nem na temporada lírica.
Dante termina se dando um profundo soco
no peito, e depois tira do bolso da calça cor de azeitona uns papéis cheios de
dobras que desde já sei tratar-se de outros poemas pessimistas falando da sua
paixão não correspondida, dos seus desejos contidos e da sua misantropia, para
que eu e todos os diabos presentes lêssemos ou ouvíssemos com o cenho
carregado.
O séqüito do Grande Imundo cresceu tanto
que nem todos os horrores já perpetrados, nem todas as leviandades, nem todas
as guerras e abominações são repasto suficiente para essa enorme família das
trevas. O que cada alma viva faz é esperar pacientemente pelo fim dos tempos,
seja Dante cheio de lágrimas ou Beatriz com os seus olhos negros, seja o rapaz
de óculos de aro grosso lendo o existencialismo de Sartre ou a menina-moça de
blusa vermelha entretida com a leitura erótica, seja o guarda-livros fazendo as
suas estripulias contábeis ou o sodomita fazendo suas mágicas, seja o vigário
com seus exorcismos ou a freira com seus tremores ocultos sob a tenda engomada,
seja Nils, Britt ou Gonzaga.
Os diabos não mudam, apenas se
multiplicam, são a mesma coisa desde o início dos tempos, quando o homem e a
mulher foram defenestrados do Éden sem direito a roupa, bagagem ou passaporte,
tudo por obra e arte do Onipotente, que os colocou diante de um sério dilema –
trabalha ou morre de inanição, pois não mais terás direito aos frutos que antes
eram permitidos e graciosamente ofertados nem à proteção automática dos anjos.
E mais – mulheres parirão com dor e homens comerão o pão fabricado com o suor
das suas frontes, além de outras bondades agnósticas paginadas no Velho
Testamento.
Então, vamos trabalhar e vamos parir, voltando
ao grande dilema – parir ou parar. Chega! Vamos dar um basta! Chega de gerar
mais pessoas para chorar, chega de produzir mais suor para fazer o pão, se já
falta a farinha, se já escasseia o trigo!
Os diabos não mudam, o inferno é que
está ficando diferente.
-0-0-0-
Faz-me falta a solidão, não o simples
recolhimento ao nosso canto, mas a solidão completa, bucólica, ermitã. Quase
retorno ao gabinete sanitário para lá ficar sentado e meditando o restante do
dia; há dois dias eu me sentia muito mal, com o Etna em atividade no lugar da
vesícula, mas pelo menos tinha paz, uma paz vazia, mas existente, uma paz sem
diabos.
Dante percebe a situação insustentável e
se vai com Paganini e todos os maus espíritos, deixando em seu lugar leveza, cortinas
esvoaçando e um silêncio sem violino. Ao ”allegro
com fuoco” segue-se a “pastorale”,
com as luzes apagadas e sombras nos cantos.
Livre, vou caminhar nas ruas com as duas
mãos nos bolsos. Não faz frio, mas os dedos se enrolam e as mãos se fecham
vigorosamente. A noite está tão pesada quanto o dia, o cianureto bate nas
janelas fechadas e trancadas com cadeados negros cujas chaves negras foram
jogadas dentro de um poço.
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