sábado, 14 de outubro de 2017




IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO
1988

(Parte Sete – e final)

Viver até que é bom, mas não desta forma, não com esta dúvida. 
Acho que os intestinos me revoltaram a cabeça, pois não sou mais o mesmo de antes das ostras, de antes da quaresma.
Será castigo divino? Desse Deus que vive castigando depois de nos dar o livre arbítrio só para se comprazer, já deve estar tramando algo para as festas de junho, se não são ostras serão pinhões, o resultado será o mesmo.
Relembro coxas novamente, e agora sei por que. É um reflexo de Dante e dos seus poemas eróticos, onde ele projeta a sua incompetência nas laudas manuscritas, falando vontades e pensando Beatriz. Relembro coxas, e parece que o ar da noite está desembotando a minha memória congelada.
Vejo-me diante de um bar bastante agitado.
Bebida, música, risos. Gente cantando ao abrigo e fora do tom, homens e mulheres se acotovelando na melodia. Eu entro na falta de harmonia e vou para junto do balcão ouvindo frases desconexas decoradas por garrafas e latas coloridas.
Peço uma porção de tremoços amanhecidos e uma cerveja preta para espantar a indisposição, de repente me vejo jogado num poço de olhar mais profundo do que todo o espaço e mais negro do que todo o espaço, são olhos que me tragam, e me engolfam, e me tolhem, a voz saindo fraca e pastosa, em direção ao garçom – “traz outro copo e mais uma, bem gelada! – os tremoços no prato e os olhos negros cantados por Dante fulminando a minha retina.
Beatriz, que para Dante não passa de uma angústia reprimida, está ao alcance do meu olhar, eu pressinto, eu sei.
O chão está repleto de pés e o ar está saturado de fumaça, mas mesmo assim sigo avançando milímetro a milímetro em direção aos olhos que me encantam, coleando como uma agulha magnética. A luz intensa não me permite avaliar a quantidade de fantasmas e de diabos que também se acotovelam, mas são eles, sem dúvida, que turvam a minha vista e que murmuram nos meus ouvidos algo assim como o Rondó das Campainhas.
Seguro suas mãos quentes e macias, de onde emana um suave perfume floral e ouço uma voz muito diferente daquele mi sustenido dantesco.
Pergunto seu nome, embora já o adivinhasse – “Beatriz” – ela confirma com os olhos sorridentes.
Ela também bebe, come e fala, humana como os humanos, e o faz de uma forma muito viva e inventiva.
Dante que me perdoe, Deus sabe que eu não tive culpa, estava apenas caminhando pela cidade de tons avermelhados e irrompi num bar como tantos outros, com balcão de mármore, cerveja preta e tremoços. Agora tenho Beatriz me aquecendo a noite pesada, com cerveja, tremoços e coxas. Uma ode.
Pobre Dante.
Pobre Dante das caminhadas sem vontade, dos poemas sem rima, do queixo de estátua. Tome esta pedra, Dante, esta bem pesada, antiga, com visgo e limo, amarre-a no pescoço com uma corda forte e salte para bem dentro de um inferno de águas.



Nenhum comentário: