IMPRESSÕES
COLHIDAS NO INFERNO
1988
(Parte
Três)
O ventilador ligado à altura da minha
cabeça zune como se estivesse varrendo uma cascata de monstros milimétricos com
asas de mosca. Ou será minha cabeça que zune, enquanto o ventilador fica parado,
apenas aparentemente girando, as pás em repouso?
Mesmo se estiver parado, porém, nada
justifica esta opressão nem este sufoco, só se eu estiver com as narinas
obliteradas por cunhas invisíveis que empurram o ar de volta para o fole dos
pulmões, envenenando o sangue e promovendo um furacão interno, criando então o
ruído incessante que cascateia na minha cabeça.
Parir ou parar – eis um dos dramas do
mundo atual. Ouçam esse vozerio que se levanta nas ruas, esta superpopulação
barulhenta que zune em uníssono com o ventilador e com a minha caixa craniana
com todos os seus roletes e engrenagens.
Quase não vim trabalhar hoje.
O despertador tinia sem necessidade,
pois eu não dormira nem um sonho durante toda a noite de azia, rolando nos
lençóis como um peixe arrancado para fora da água, mas por via das dúvidas
achei melhor arriscar um desastre intestinal dentro do ônibus do que perder o
dia assalariado por falta de uma justificativa médica oficial – “ora, isto não é nada, tome um sal de frutas!”
– com o paternal sorriso clínico – “isto
não é nada porque não é o doutor que sente
o que eu sinto, não teve a noite insone nem tem as dobras assadas”.
Enfim, cheguei, passando por bafos e
perfumes, por ruas apinhadas de homens-formiga com o sentido e a direção
matematicamente traçados, como um robô. Passei pelos jornais da manhã, pelas
revistas da semana, pelos fascículos do mês, pelos crimes de ontem e pelos
criminosos de hoje.
O ventilador zoa, o telefone toca, os
teclados crepitam letras e símbolos, o calendário já foi devidamente mudado e a
mesa devidamente espanada. Muito bem! Hoje é um novo dia, cheio de esperanças e
afinal de decepções. A janela está permanentemente fechada e lá fora o céu
turvou-se no turvo da manhã fria.
Viana tosse, Maia está com cara de sono,
Roberto ri como um freio de carroça e Gonzaga espirra escandalosamente. O
chefe, Flávio, reprova. Lá fora, a garoa fina se mescla com a poluição cinzenta
na fantasmagórica massa de ar que recorta prédios e torres em silhuetas.
Trabalhar deste jeito é como apanhar um
ônibus circular para descer no ponto anterior, mesmo sabendo que o trajeto vai
demorar dois dias e duas noites, repletos de chuvas, sóis e estrelas, sem
toalete a bordo para os usos diários. Eu sei que tudo é uma questão de
referencial, de ponto de origem, de relatividade e de outros conceitos
metafísicos, mas que não faz sentido não faz.
Ainda outro dia o tempo estava desta
forma, lúgubre, lento e sonolento, e Gonzaga estava contando suas histórias por
detrás dos óculos de lentes verdes – que a terra rola e gira e se mexe toda
como uma mulherinha na cama, e assim como a mulher e como a lua, também tem as
suas estações e as suas fases. Isso a gente compreende muito bem, só que a
terra hoje em dia parece estar toda mergulhada em um tanque saturado de gás
cianídrico, poluindo a vida desde o berço até o túmulo, desde a intra-uterina
até a extraterrena, forçando o sol a se esconder numa outra galáxia para não
morrer sem luz, tossindo e cuspindo pedaços de inferno.
“Há
corpos luminosos e corpos iluminados” dizia o meu professor de Física, mas
com certeza se esquecia pos pôsteres de tinta fosforescente e da sinalização
das estradas, e do vermelho que avança no escuro, criando assim uma espécie de
corpo intermediário, mais do que luminescente.
“Fiat
lux” – mas que depois disso o sol fugiu para além das escarpas algodoadas
de neve eu já não tenho mais dúvida, pois de tempos para cá a única luz que
ilumina a minha carcaça é a luz das centenas de “watts” dependurados firmemente os postes de iluminação, na minha
trilha de noctívago.
Termina o dia. Agora o sol se escondeu
mesmo, só na Suécia onde, dizem, ele brilha também nas noites de verão, o amor
é livre e todos têm consciência apurada, cada qual dono da sua – “nosce te ipsum” – e não existem Dantes
para chorar de amor, nem semi-virgens coradas, nem moluscos esculhambados por
falta de uso, mas somente Nils, Olav, Gustav, algumas Britts e Birgittas e,
finalmente, Estocolmo.
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