segunda-feira, 29 de junho de 2020







Prezado amigo, segue o primeiro capítulo de "As cores do swing". É o início de uma aventura que vai desvendar aos poucos os mistérios do mundo do jazz. Se você for um jazzófilo convicto, com certeza vai gostar.
Bom divertimento! 


Capítulo 1 – O Rei do Jazz

A neve caia em finos flocos na noite fria de Chicago, como um manto de renda branca enevoando a visão da pequena multidão que se deslocava pela região central.
Paul caminhava pela calçada que refletia as luzes da noite, a gola do sobretudo levantada cobrindo a metade da sua cara rosada e rechonchuda, e o chapéu de feltro enfiado até a altura dos olhos não deixando entrever o seu semblante.
Ele seguia em direção ao Joe’s, um pequeno restaurante escondido numa travessa lateral da Avenida Michigan, próximo ao ancoradouro, para um jantar costumeiro em companhia do seu amigo, o compositor e arranjador Ferde Grofé.
Já fazia algum tempo que Paul se confessava um pouco inquieto e preocupado, e dois dedinhos de prosa com Ferde poderiam desanuviar um pouco a sua mente.
No momento, ele andava à procura de uma novidade que desse um impulso e um tempero novo à sua música, que começava a ser considerada antiquada e pomposa, pelo menos para os músicos de vanguarda e para alguns críticos mais exaltados, cuja opinião incomodava cruelmente a sua autoestima.
O fato é que anos atrás, com a chegada em Chicago de alguns inovadores vindos de Nova Orleans, começara a se estabelecer na cidade uma verdadeira revolução nos conceitos da música orquestral americana.
Paul havia se acostumado a falar com desdém e também com um certo ressentimento sobre a invasão dessa música de origem negra chamada stomp que começara a mudar a cabeça das pessoas a partir da segunda metade dos anos 1920. No entanto, ele acabou sendo forçado a mudar de opinião, considerando que a música em questão alcançara tanto sucesso que provocara a criação de um novo estilo, conhecido como “estilo chicago”, adotado em função do nome da cidade.
Paul já começava então a ver com outros olhos e a ouvir com outros ouvidos a inovação sulista, à medida que boa parte do país estava falando com animação dessa música quente e envolvente que, diziam os seus seguidores, já dominava a Costa Leste e se espalhava para outros cantos dos Estados Unidos.
Na verdade, Paul Whiteman era um músico de formação erudita, e suas orquestrações refinadas eram um espelho da música de salão que chegara à América oriunda dos bailes das cortes europeias, cujo ponto alto havia sido as últimas décadas do século dezenove.
A música de Paul Whiteman, rotulada como “sweet music”, era apreciada tanto pela classe aristocrática quanto pelos menos abastados e até pelos gângsters – os delinquentes que naqueles anos dominavam o panorama de Chicago – porque a música gerava muito lucro, levando sempre um grande público para consumir os comes e bebes nas sofisticadas casas de baile por eles dirigidas. Era uma música vestida a rigor que convinha muito bem à sociedade de consumo dos fantásticos anos 1920, quando a industrialização começava a tomar conta das atividades principais do país e a vida do jet set se dividia entre os bares clandestinos e as limusines de luxo.
Naquele início de década, sempre que a orquestra de Paul Whiteman era mencionada, respirava-se um ar de respeito. A qualidade da sua música ainda era exaltada pelos inúmeros admiradores, e Paul era um músico aclamado nos salões elegantes bem frequentados por fraques e cartolas e por vestidos de soirée. Seus comandados – entre eles o saxofone inventivo de Frank “Tram” Trumbauer, o saxofone comportado de Jimmy Dorsey, o violino mágico de Joe Venuti, o virtuosismo do guitarrista Eddie Lang e o sonoro trombone de Tommy Dorsey – pontificavam entre os mais competentes do momento. O som aveludado de sua orquestra servia também como um bálsamo para as cicatrizes deixadas pela guerra mundial que terminara alguns anos antes.
No entanto, Paul sentia que estava perdendo terreno para a música mais animada dos negros, na qual era imposto um ritmo alucinante, fazendo crescer uma pulsação que fazia pés e mãos se mexerem automaticamente. A curiosidade em conhecer de perto esta nova tendência fora – ele não podia deixar de admitir – um dos motivos pelos quais ele havia deixado pra trás a prazerosa Costa Oeste para partir de armas e bagagens em direção ao Norte-Nordeste do país, onde poderia experimentar tal novidade.
Enquanto caminhava e estugava o passo temendo a possibilidade de que a nevasca aumentasse, Paul fazia um retrospecto da sua vida e da sua carreira, e sentia saudades de San Francisco, Los Angeles e Atlantic City, lugares onde ele exibira com sucesso os seus dotes musicais dentro de uma temperatura mais amena e agradável, em todos os sentidos.
Não que ele não gostasse de Chicago, mas o frio às vezes inclemente da região fazia doerem as suas juntas e progressivamente alimentava um reumatismo que começava a preocupar sua postura de maestro.
Quando aportara em Nova York, no ano de 1920, Paul podia ir tranquilamente a um teatro ou a um clube noturno, ou mesmo caminhar de peito aberto e cara limpa pela Quinta Avenida ou pelas artérias principais da cidade sem ser reconhecido ou importunado por entusiastas à procura de um autógrafo ou de um cumprimento mais efusivo.
Então, quando se refestelava no melhor restaurante para saborear seu prato favorito – vitela com batatas assadas ao molho de ervas finas e hortelã – acompanhado por um vinho leve, ele planejava o futuro com otimismo e com a calma dos gorduchos bem-intencionados.
Mas agora, em Chicago, Paul vinha cercado de dúvidas.
Às vezes ele não tinha certeza de que havia feito o certo, ao procurar esta região do país, tida como a nova Meca do espetáculo, como muitos músicos de outras partes haviam feito.
Entre estes músicos, subindo o Rio Mississipi com destino a Chicago, estava um tal de King Oliver, antecipando a chegada de um cornetista de quem se falava maravilhas, chamado Louis Armstrong. No rastro de Oliver chegaram também dos diversos recantos do sul muitos outros inovadores, trazendo com eles uma forte influência de uma forma musical envolvente e fora dos padrões harmônicos convencionais que mostrava uma divisão esquisita e não usual. A novidade era conhecida como “blues” – na verdade era o blues de Nova Orleans, não aquele de raiz.
Paul havia tido a ousadia de romper o contrato que mantinha com o sofisticado Hotel Fairmont, em San Francisco, para onde convergia o público rico e charmoso da cidade, fazer as malas e partir para o desconhecido, a fim de mostrar para a América o seu estilo elegante. Buscava também promover uma saudável troca de informações entre a sua música comportada e as tendências mais arrojadas que sabia estarem em voga.
Afinal, as fortes influências trazidas pelos negros do sul já estavam causando uma certa transição na música orquestrada, e ele estava curioso a respeito disso.
Talvez amedrontado pelo tamanho e pelo dinamismo de Nova York, Paul Whiteman fez uma parada de cerca de um ano em Nova Jersey, a antessala da Big Apple, antes de colocar a cara num estúdio e gravar algumas das suas orquestrações.
Músico de grande referência, não foi difícil a Paul convencer um estúdio a executar uma sessão de gravação com a orquestra, na tentativa de conquistar o exigente mercado nova-iorquino.
Para tanto, ele buscou apoio no renomado compositor e diretor de orquestra Ferdinand Rudolph van Grofé, mais conhecido como Ferde, autor da esplêndida suíte “Grand Canyon”, a quem procurou levando uma carta de recomendação de um amigo comum que tocava corne inglês na Orquestra Sinfônica de San Francisco. Feitas as apresentações, Grofé se entusiasmou com o projeto do maestro e acabou se transformando em seu braço direito.
A sorte fora lançada e, ao terminar a gravação de “Whispering” (Vincent Rose) e de “Japanese Sandman” (Richard A.Whiting), restou a Paul a angustiosa expectativa de vê-las cair no gosto do público ou, quem sabe, de resultar em um redondo fracasso.
A resposta, quase dois milhões de cópias vendidas – um absurdo para a época – não deixou dúvidas quanto à aceitação da sua música e da consequente consolidação do seu estilo.
Paul Whiteman era a nova coqueluche do momento.
É claro que havia um bocado de confusão na época sobre o que seria e o que não seria jazz. Aparentemente, a música tocada por Paul Whiteman, por fazer parte de um repertório que incluía alguns standards tocados ou compostos por músicos que se diziam de jazz, era considerada por muita gente como sendo uma versão diferente do tema, mas ainda assim, jazz.
Mas Paul sabia muito bem que isto não era verdade. Sendo um músico de alta sensibilidade, ele conseguia diferenciar perfeitamente a sua música e os seus arranjos suaves, claros e aparentemente mais civilizados, daquela música que se chamava de jazz, repleta de meios tons, de batidas invertidas e de uma certa insubordinação sonora que traduzia a origem rasgada vinda das raízes do ragtime.
Paul Whiteman era um purista, e a princípio chegou a pensar que talvez jamais fosse aceitar a inclusão do jazz na sua música. Afinal, ele não se afinava totalmente com aquele estilo que, ao chegar em Chicago, já tinha ou recebera diversos nomes, como traditional jazz, stomp, new orleans, blues, dixieland, e mais recentemente, chicago, que abrigavam no seu som uma pungente mensagem do negro escravo, uma realidade longínqua para as suas fortes raízes anglo-saxônicas.
Whiteman era o seu nome e branca era a sua música, baseada no formalismo comportamental europeu. A explosão nova-iorquina da sua música era, no seu modo de ver, uma prova mais do que evidente de que ainda havia bom senso nas pessoas que apreciavam a boa arte musical.
Elas até podiam gostar daquela música negra da Louisiana, cheia de sons estranhos e tomada por um ritmo alucinante. Esta música, porém, não convidava os casais românticos a dançar socialmente nos salões elegantes; o que ela fazia era criar no corpo e na mente uma agitação frenética, marcante e ruidosa, quase selvagem.
Paul tinha a impressão de que, quando soava o stomp, até os pés das mesas e das cadeiras se manifestavam em êxtase, embora sem o menor refinamento.
Para a vaidade de Paul, o que contava era que, naquela mesma Nova York influenciada pela música negra, a sua arte melódica e quase sinfônica também havia conseguido obter o reconhecimento imediato do público, a ponto de transformar a sua orquestra da noite para o dia na mais popular da cidade.
A sua técnica era soberba, e os seus músicos eram talentosos. Suas apresentações variavam desde canções populares e valsas semiclássicas até uma tímida investida naquela nova experiência – o jazz – acrescentando, de uma forma embora um tanto canhestra, o ritmo e a pulsação que a sua música naturalmente não possuía.
Isto não passava de uma concessão, é claro, feita mais em virtude das exigências do público que estava aprovando a novidade pulsante do novo estilo, do que da sua própria aceitação como maestro.
Afinal, Paul começara a sua vida musical tocando viola e violino na Orquestra Sinfônica de Denver, sua cidade natal, e abraçara este espírito erudito de corpo e alma, mesmo depois de montar uma orquestra de danças.
Paul Whiteman havia vencido na Costa Oeste e agora, com Nova York sob controle, ele resolvera enfrentar outro desafio, partindo para conquistar Chicago.
Mas Chicago fervilhava de modernismo, e sua chegada na cidade o colocou a par de uma outra realidade.
Por Chicago haviam passado ou ainda se mantinham na ativa um sem número de bandas negras de dixieland de primeira linha, como os Hot Five e os Hot Seven de Louis Armstrong, os Red Hot Peppers de Jelly Roll Morton, os New Orleans Wanderers de Johnny Dodds, a banda liderada por Earl Hines e os Savannah Syncopators de King Oliver, remanescentes da Creole Jazz Band, além de algumas bandas brancas pioneiras como a Original Dixieland Jass Band, do trompetista Nick LaRocca, a New Orleans Rhythm Kings, do pianista Elmer Schoebel e do cornetista Paul Mares, também originárias do sul, e a banda chamada The Wolverines, comandada por Bix Beiderbecke.
Paul Whiteman achava que os seus verdadeiros concorrentes, no entanto, não eram as bandas de jazz tradicional, mas sim as orquestras de Ted Lewis e Art Hickman, que ainda faziam sucesso por lá mantendo o romantismo herdado do século anterior, embora também já houvessem assimilado alguma coisa das raízes de Nova Orleans. Ele respeitava também a música de Adrian Rollini e Jean Goldkette, embora não as considerasse propriamente orquestras rivais, por achar seu apelo relativamente comercial (Whiteman na verdade não percebia, mas Rollini e Goldkette tinham até mais swing do que as outras...).
Coincidência ou não, as orquestras de Lewis, Hickman, Rollini e Goldkette eram compostas por músicos brancos, o que para muitos reforçava a tese de que o problema de Paul Whiteman talvez não estivesse na negritude das músicas dos negros, mas sim na cor dos músicos que as interpretavam.
Whiteman, no entanto, aparentemente se dava muito bem com os músicos negros e, sinceramente, os respeitava pela sua curiosa inventividade. Costumava trocar confidências musicais com Fletcher Henderson, um pianista negro cuja orquestra praticava o jazz com muita eficiência, e discutia com ele técnicas de arranjos e harmonia.
Mas mesmo assim, Paul concordava com Nick LaRocca, trompetista e líder da Original Dixieland Jass Band quando, nos seus devaneios (que no futuro se transformariam em sérios problemas mentais) ele afirmava que os brancos eram os responsáveis por todo e qualquer tipo de criação musical – incluindo aí o jazz – e que os negros apenas copiavam e acrescentavam à música detalhes pessoais da sua cultura.
Absorto em seus pensamentos, Paul finalmente chegou ao Joe’s.
Com um cumprimento de cabeça, disse um mudo “boa noite” ao porteiro que lhe fazia vênia e passou pelo portal, deixando para trás os flocos de neve que caiam flutuando, como se obedecessem aos compassos de uma sinfonia.
Satisfeito pelo aconchego do seu restaurante predileto e por poder enfim encarar o mundo sem necessariamente parecer um urso – muito embora seu porte físico não fugisse muito da comparação – Paul entregou seu chapéu, cachecol e sobretudo para o homem da chapelaria, que os recebeu com um polido cumprimento e um sorriso postiço. Isto feito, ele expôs aos olhos do público o seu corpanzil de maestro, ligeiramente deselegante e humorístico, fazendo lembrar Oliver Hardy, um comediante que estava aparecendo com sucesso no cinema como o novo parceiro gordo do magro e já consagrado Stan Laurel.
Paul sentou-se à sua mesa favorita, quase oculta por uma coluna revestida de madeira, próxima a uma parede que exibia uma reprodução bem trabalhada de “As Papoulas Silvestres”, de Monet, pediu um pernot e se pôs a aguardar Grofé enquanto observava o ambiente com o olhar perdido em algum ponto do salão.
Enquanto degustava seu aperitivo e aspirava o seu delicado aroma de menta, Paul continuou a meditar sobre a sua carreira. Definitivamente, pensou, não podia ter maiores queixas.
Ele possuía uma invejável estabilidade financeira, e já houvera conquistado uma grande popularidade em San Francisco, além de muitos aplausos em Los Angeles, onde havia liderado a banda da Marinha durante a Guerra Mundial, banda que em 1918 veio originar a Paul Whiteman Orchestra. Em agosto de 1920, surgiram as suas primeiras gravações bem-sucedidas, feitas pela Victor.
Em 1924, Paul gravou aquela que ele considerava “a música da sua vida” – “Rhapsody in Blue”, de George Gershwin, com o próprio Gershwin ao piano. A apresentação, uma première mundial, fizera parte de um projeto de Paul denominado “Um Experimento na Música Moderna” e acontecera no Aeolian Hall, uma prestigiada casa de concertos de Nova York localizada na Rua 42 (ou 43, dependendo do lado por onde você entrasse). A performance da orquestra levou os críticos a considerarem a música, meio popular e meio erudita, como uma peça de rara inventividade.
Agora, Chicago, 1927.
Paul andava à cata de algum ingrediente para dar outra guinada experimental na sua música e voltar a ouvir o elogio dos críticos, que andavam meio arredios com o advento do jazz hot. Ele lia frequentemente nos jornais artigos que se referiam aos seus efeitos musicais “exagerados” e à sua música “cheia de sacarina”, enquanto elogiavam o jazz hot que francamente já dominava a cena.
Na verdade, os clubes mais frequentados na cidade – entre eles o Dreamland Café, o Reisenweber e o mal reputado Peking Café, que havia se transformado num antro de gângsters e pessoas duvidosas – tocavam o jazz hot em meio a muita algazarra, o que desgostava Paul, acostumado a uma plateia educada que também gostava de dançar, é claro, mas o fazia de uma maneira sóbria e comportada.
Assim, Paul tinha concebido na sua cabeça o modelo do que ele chamaria “uma orquestra sofisticada de jazz”.
Quando morava em Nova York, a atenção de Paul havia sido atraída por uma novidade que ia de encontro ao seu gosto pessoal, executada por uma orquestra emergente que começava a impor o seu estilo ao mesmo tempo vigoroso, maduro e moderno. Sob a batuta de um jovem band leader, esta orquestra executava temas e improvisos, e dentro de um balanço especial, que alguns chamavam de “swing”, fazia a música pulsar mesmo nos momentos mais intimistas e introspectivos.
O band leader era Duke Ellington.
Por diversas vezes, Whiteman e Grofé foram anonimamente ao Kentucky, ao Executive, ou a qualquer outro clube em que Ellington se apresentasse para tentar entender como se processava aquela nova estrutura harmônica ou até mesmo para assimilar alguma sonoridade a fim de adaptá-la aos seus arranjos. No entanto, a multiplicidade de tons e acordes tornava extremamente difícil qualquer aventura deste tipo.
Paul se achava diante de um dilema: embora no íntimo ele não admitisse que o chamado jazz hot fosse musicalmente superior à música meio sinfônica que ele interpretava, ele sentia que precisava incluir com elegância certos elementos vindos do blues e do jazz negro – como Duke Ellington fazia – para tornar suas apresentações mais atraentes, menos estáticas, e mais de acordo com a realidade que os novos tempos estavam impondo.
Mas Ellington era negro, e seus arranjos jazzísticos fluíam naturalmente, quase que intuitivamente...
Perdido em seus pensamentos, Paul quase nem notou quando Ferde Grofé se aproximou e levou um pequeno susto quando ele puxou a cadeira, com um forte ruído. Então sorriu e cumprimentou o amigo, pronto para colocar suas ideias em discussão e para ouvir as novidades.


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