quinta-feira, 2 de julho de 2020





CLAUDETE
(Republicado, extraído de POUCOS TRECHOS COM CLAUDETE)
Augusto Pellegrini

Se é frio, não o sinto.
Tenho o calor que me percorre as veias e um ardor no rosto crepitante, que deve estar vermelho por causa do vinho tomado.
Por mais que eu me olhe não consigo me ver, nem meus óculos me veem, eles principalmente, se eu estivesse fora de mim talvez fosse a mesma coisa e eu não me visse nem assim, como um fantasma não se vê, e eu devo ser um fantasma, vagando assim, desse jeito.
Em outros termos, digo que me encontro, mesmo não me encontrando, rodando como um pião – cerca de trinta graus de excentricidade – um satélite girando próximo às as portas fechadas, riscando o chão com minha ponteira ao redor das latas de lixo.
Não sou excêntrico, estou excêntrico, isso sim.
E aquela luz amarela projeta minha sombra de marionete na calçada.
Foi nestas circunstâncias que eu conheci Claudete. Depois, conheci o pai de Claudete. E a mãe de Claudete, que também conheci, mas nunca vi.

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Ele coloca o bispo na quarta casa do cavalo do rei.
“É da minha filha que eu estou falando, sabe?” – gostava de falar por interrogativas – “você não deve usá-la como se usa um pente, se quebrar joga fora e pronto!”
Imaginei Claudete um pente. Um pente que toca “Polonaise” ao piano e faz carícias nos meus cabelos pretos.
A verdade é uma só, imutável e irretorquível: meu interesse por Claudete não vai além das carícias quentes nas escadas frias. Até um pouco aquém, creio eu.  
“É como se Deus não estivesse vendo!”. Patético: não sei se finge ou sofre; logo ele desata a chorar. Claudete se aproxima.
“Aceita um vinho do Porto?” – irrompe ela, como sempre fora de hora, e serve uma dose minúscula num cálice imperial mesmo sem ter tido qualquer aquiescência.
Ele joga furiosamente, como se estivesse apostando a própria vida. Cita Napoleão e suas táticas de guerra. Eu não deixo para menos:
“O conhaque é excelente!”
“Estou falando do general, não do conhaque, não me interrompa. Eu dizia que até ele teve o seu Waterloo, a gente luta tanto para depois morrer, sumir e não ser lembrado, a não ser como alvo de chacotas – e chacotas com os mortos têm outro sabor!”
“Sabor de defunto!” – disse eu, enquanto movia o cavalo para uma casa estratégica, abrindo todo o flanco para o ataque da dama. “Pronto! Agora o senhor não pode mais mover a torre!” – o rei se escondia detrás dela como alguém se escondendo dos seus atos.
A partida está ganha. Alheia a tudo, Claudete toca “La Revolutionnaire” ou qualquer coisa do tipo, esmagador, triunfante, constrangedor, enquanto o pai tomba vencido sem nenhuma torre para se esconder atrás.
Um peão rola pelo tapete e para ao lado do meu pé.

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Esperei por longo tempo e nada.
Então, arrisquei abrir a porta, empurrei lentamente e ela cedeu aos poucos, rangendo nos seus gonzos.
Nunca havia percebido aquele retrato de Monalisa na parede fronteira. Já havia notado o piano e os móveis escuros, as tapeçarias e o relógio de algarismos romanos na parede, o tabuleiro de xadrez desarrumado também, mas o retrato nunca. Talvez Leonardo tivesse passado a noite naquela sala pincelando até as últimas pinceladas aquele olhar anêmico e bovino, e aquele sorriso, ah! aquele sorriso, enigmático ou simplesmente asmático... 
De repente o rosto abriu uma careta de escárnio e se moveu. Espanto!, espanto!, não era um quadro, era ela, a mãe, que me esperava com os olhos de visagem.



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