CLAUDETE
(Republicado, extraído de POUCOS
TRECHOS COM CLAUDETE)
Augusto Pellegrini
Augusto Pellegrini
Se é frio, não o sinto.
Tenho o calor que me percorre as veias e
um ardor no rosto crepitante, que deve estar vermelho por causa do vinho tomado.
Por mais que eu me olhe não consigo me ver,
nem meus óculos me veem, eles principalmente, se eu estivesse fora de mim talvez
fosse a mesma coisa e eu não me visse nem assim, como um fantasma não se vê, e
eu devo ser um fantasma, vagando assim, desse jeito.
Em outros termos, digo que me encontro,
mesmo não me encontrando, rodando como um pião – cerca de trinta graus de
excentricidade – um satélite girando próximo às as portas fechadas, riscando o
chão com minha ponteira ao redor das latas de lixo.
Não sou excêntrico, estou excêntrico,
isso sim.
E aquela luz amarela projeta minha
sombra de marionete na calçada.
Foi nestas circunstâncias que eu conheci
Claudete. Depois, conheci o pai de Claudete. E a mãe de Claudete, que também
conheci, mas nunca vi.
-0-0-0-
Ele coloca o
bispo na quarta casa do cavalo do rei.
“É da minha
filha que eu estou falando, sabe?” – gostava de falar por interrogativas –
“você não deve usá-la como se usa um pente, se quebrar joga fora e pronto!”
Imaginei
Claudete um pente. Um pente que toca “Polonaise” ao piano e faz carícias nos
meus cabelos pretos.
A verdade é
uma só, imutável e irretorquível: meu interesse por Claudete não vai além das
carícias quentes nas escadas frias. Até um pouco aquém, creio eu.
“É como se
Deus não estivesse vendo!”. Patético: não sei se finge ou sofre; logo ele
desata a chorar. Claudete se aproxima.
“Aceita um
vinho do Porto?” – irrompe ela, como sempre fora de hora, e serve uma dose
minúscula num cálice imperial mesmo sem ter tido qualquer aquiescência.
Ele joga
furiosamente, como se estivesse apostando a própria vida. Cita Napoleão e suas
táticas de guerra. Eu não deixo para menos:
“O conhaque é
excelente!”
“Estou
falando do general, não do conhaque, não me interrompa. Eu dizia que até ele
teve o seu Waterloo, a gente luta tanto para depois morrer, sumir e não ser
lembrado, a não ser como alvo de chacotas – e chacotas com os mortos têm outro
sabor!”
“Sabor de
defunto!” – disse eu, enquanto movia o cavalo para uma casa estratégica,
abrindo todo o flanco para o ataque da dama. “Pronto! Agora o senhor não pode
mais mover a torre!” – o rei se escondia detrás dela como alguém se escondendo
dos seus atos.
A partida
está ganha. Alheia a tudo, Claudete toca “La Revolutionnaire” ou qualquer coisa
do tipo, esmagador, triunfante, constrangedor, enquanto o pai tomba vencido sem
nenhuma torre para se esconder atrás.
Um peão rola
pelo tapete e para ao lado do meu pé.
-0-0-0-
Esperei por longo tempo e nada.
Então, arrisquei abrir a porta, empurrei
lentamente e ela cedeu aos poucos, rangendo nos seus gonzos.
Nunca havia percebido aquele retrato de
Monalisa na parede fronteira. Já havia notado o piano e os móveis escuros, as
tapeçarias e o relógio de algarismos romanos na parede, o tabuleiro de xadrez
desarrumado também, mas o retrato nunca. Talvez Leonardo tivesse passado a
noite naquela sala pincelando até as últimas pinceladas aquele olhar anêmico e
bovino, e aquele sorriso, ah! aquele sorriso, enigmático ou simplesmente
asmático...
De repente o rosto abriu uma careta de
escárnio e se moveu. Espanto!, espanto!, não era um quadro, era ela, a mãe, que
me esperava com os olhos de visagem.
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