quarta-feira, 1 de julho de 2020






AS CORES DO SWING
          Capítulo 1 - O Rei do Jazz
(continuação)

Muito embora o tipo de música que Paul Whiteman estivesse executando no momento não fosse exatamente o que se podia chamar de jazz, a conversa daquela noite no Joe’s e a sua persistência acabaram lhe valendo, em 1928, o título de “O Rei do Jazz”.
Tudo começou quando Ferde Grofé lhe falou a respeito de um trompetista de nome alemão que andava à solta pela cidade liderando no momento um pequeno grupo chamado Bix Beiderbecke and His Gang – nada apropriado para uma cidade onde o banditismo corria à solta sob a tutela dos mafiosos, cujo nome mais temido era um certo Al Capone.
Chicago vivia o esplendor dos chamados “selvagens anos 20” – “the roaring twenties – misturando glamour e vício, romantismo e violência, e era sem dúvida a mais agitada cidade dos Estados Unidos, agregando muita diversão – como música, jogos e entretenimentos – com uma boa dose de selvageria e contravenção.
A Lei Seca, promulgada em 1920, proibia a venda de bebidas em quase todos os estados americanos. A bebida – contrabandeada ou falsificada e de má qualidade – a prostituição e o jogo ilegal eram combatidos com mão de ferro pela polícia e pelas autoridades, mas nem por isso deixavam de existir. Os músicos, na sua grande maioria, se viam obrigados a tocar em locais escondidos, ainda que repletos de gente, o que causava um misto de temor e indignação em Paul, que preferia tocar em hotéis e auditórios abertos, de preferência contando com um público seleto interessado em ouvir e dançar.
Foi neste cenário que Bix Beiderbecke, um rapaz muito sensível, natural de Davenport, no Iowa, filho de boa família e trompetista de raro talento, se viu jogado. Possuindo uma formação clássica, embora não formal, Bix era apreciador de Schöenberg, Stravinsky, Ravel e Debussy, todos eles compositores eruditos, modernos e aclamados internacionalmente, o que ia de encontro ao gosto pessoal de Whiteman. Bix também tocava jazz e era branco, ao contrário da maioria dos músicos que interpretavam este novo estilo.
Sua competência chegava a ser comparada à de Louis Armstrong, e por conta disso ele era considerado um dos maiores jazzistas brancos do local (embora ele próprio não se desse conta do fato), talvez o maior, se ficássemos apenas no trompete.
Paul queria saber mais detalhes sobre este novo fenômeno, e este era mais um motivo para o seu encontro com Ferde Grofé.
O jantar transcorreu quente e animado. Ferde Grofé apresentou algumas sugestões para apimentar o estilo açucarado de Whiteman. Este, por sua vez, ainda relutava e, entre uma baforada e outra do seu charuto, tentava encontrar uma boa resposta para não deixar a coisa escapar demais do seu controle.
Finalmente, o assunto passou a ser Bix Beiderbecke. O trompetista era, na visão de Ferde, o diferencial que poderia dar à orquestra de Whiteman um caminho em direção ao jazz sem violentar os seus princípios.
Após ouvir os argumentos de Grofé e contando posteriormente com o aval do saxofonista Frank Trumbauer, Paul decidiu fazer uma experiência com o tal trompetista de jazz que no momento andava meio à deriva. Recentemente, Bix Beiderbecke havia feito parte da orquestra de Jean Goldkette, até que Jean resolvera dissolver a banda. Mesmo tendo depois formado a sua banda de dixieland, que ele chamava de “Gang”, Bix continuava aparentemente insatisfeito com o que fazia e estava à procura de um novo trabalho.
Dois dias depois do jantar no Joe’s, Paul Whiteman ouviu atentamente alguns discos gravados por Beiderbecke em 1927 – “Clementine” (Henry Creamer e Harry Warren), “I’m Coming Virginia” (Will Marion Cook e Donald Heywood) e “Singin’ The Blues” (Melvin Endsley) – e mais especialmente uma fantástica apresentação solo, não de trompete, mas de piano, na intrincadíssima música “In A Mist”, de autoria do próprio Bix. Satisfeito, decidiu convidá-lo para fazer um teste na sua família de músicos.
A entrevista não foi muito promissora, pois Bix era um músico triste, pouco comunicativo e aparentemente cheio de problemas. Pior, Paul descobriu que ele não lia partituras com facilidade, o que poderia comprometer o seu desempenho dentro da orquestra.
No entanto, Trumbauer lhe assegurou que Bix era extremamente criativo e que conseguiria acompanhar os demais músicos sem muito problema assim que conhecesse a melodia e o arranjo – afinal, era desta maneira que ele havia tocado na orquestra de Goldkette, e de certa forma “este jeito improvisado de tocar não deixa de ser jazz...”, completou sorrindo, sem convencer.
Paul era um músico organizado e um maestro exigente, mas acabou cedendo à insistência de Trumbauer e resolveu aceitar Bix na sua orquestra, embora sujeito a uma futura avaliação. Começava naquele momento uma nova fase para ambos, que iria render muitos dividendos, mas também muita dor de cabeça e um bocado de frustração tanto para um como para outro, pois a visão de futuro do maestro contrastava com a falta de ambição do trompetista.
Junto com Bix Beiderbecke chegaram à orquestra o cantor Bing Crosby, irmão do também bandleader Bob Crosby, o grupo vocal The Rhythm Boys e um novo arranjador chamado Bill Challis.
Com estas modificações na sua formação, Paul finalmente ingressava num mundo mais parecido com o jazz, apesar de ainda manter algum formalismo nas suas partituras. Por outro lado, Bix Beiderbecke considerava ter finalmente encontrado uma orquestra digna do seu nível artístico.
Não que a vida de Bix Beiderbecke tivesse sido um fracasso musical até então. Ele havia liderado uma das mais concorridas bandas de dixieland do eixo Nova York-Chicago, The Wolverines, e havia encantado diversas plateias antes de entrar em divergência com o grupo e se desligar em plena turnê, para se juntar a Jean Goldkette, com quem ficaria pouco tempo.
Surgia agora para Bix a oportunidade de tocar numa orquestra cujo refinamento fazia seu pensamento retroceder para os bons tempos em que se ocupava ouvindo os clássicos. Na verdade, ele confidenciou para alguns amigos que estava verdadeiramente fascinado pelos arranjos sofisticados que eram escritos para a orquestra, e que isso faria com que ele crescesse como músico.
Mas Bix era tímido, nervoso, e apreciava uma bebida alcoólica muito mais do que a sua pouca idade e a sua saúde frágil recomendavam. É claro que Paul não gostava nem um pouco dos hábitos do seu novo músico, mas por outro lado ele tinha que tolerar estes deslizes por conta do crescimento experimentado pela orquestra em direção à propalada modernização.
Com Bix tocando trompete, a orquestra de Paul Whiteman conseguiu fazer parte do seleto clube do jazz, fato atestado pelas gravações de “Love Nest” (Otto Harbach e Walter Hirsch), “Changes” (Walter Donaldson), “Dardanella” (Felix Bernard e Johnny Black), “You Took Advantage Of Me” (Richard Rodgers e Lorenz Hart), “Coquette” (Gus Kahn e Carmen Lombardo) e outros sucessos que, apesar de estarem mais para o fox-trot, procuravam justificar o título que os críticos, talvez precipitadamente, lhe haviam dedicado.
Paul havia sido aclamado “O Rei do Jazz”, mas nem mesmo aos amigos mais próximos ele chegou a demonstrar que concordava com tal honraria. Considerando os elogios rasgados que ele tecia não só a Duke Ellington como também às orquestras de Fletcher Henderson e de Jimmie Lunceford, era de se esperar que ele próprio não se achasse a altura de ser um “Rei” dentro de um estilo onde havia melhores e que ele francamente não dominava, pois as raízes do jazz e do blues não haviam feito parte da sua formação.
Além disso, a música dançante orquestrada estava em fase de transição e, embora a orquestra de Paul Whiteman assimilasse o novo estilo jazzístico e progredisse a olhos vistos, ele ainda encontrava dificuldades em se manter atual, pois as demais orquestras estavam ficando cada vez mais atrevidas.
As orquestrações se mostravam dia a dia mais “coloridas” e as orquestras se multiplicavam, apresentando diferentes qualidades de interpretação que serviam tanto para aqueles que gostavam de dançar como para aqueles que simplesmente gostavam de ouvir uma música agradável.
Ao mesmo tempo, as grandes orquestras começaram a prescindir cada vez mais dos violinos, violas, violoncelos e harpas e a se transformar em big bands. O regente passou a ser chamado de bandleader, e a música produzida por estas big bands, invariavelmente rotulada de jazz, passou a receber o nome específico de swing.
A palavra “swing” (balanço, balançar), talvez nascida do próprio ritmo da música – em contraponto ao “stomp” (bater com o pé no chão), a batida pesada dos primórdios de Nova Orleans – passou a fazer parte do vocabulário das novas formações orquestrais. Alguns historiadores do jazz afirmam que ela foi difundida devido a uma feliz colocação de Ellington em uma de suas músicas –“It don’t mean a thing if it ain’t got that swing” (“isto não significa nada se não tiver aquele swing”), mas isto será discutido num outro capítulo.
Durante aquela transição, surgiu um consenso geral entre músicos, críticos e apreciadores de que jazz e swing seriam rigorosamente a mesma coisa, opinião que obviamente não era compartilhada pela maioria dos puristas que haviam vindo do sul.
Louis Armstrong teria dito, por exemplo – e seu depoimento era o mesmo que se ouvia de muitos dos músicos de jazz tradicional que se espalhavam pelo país – que “o swing nada mais era do que uma excrescência musical que se aproveitara do bom momento vivido pelo dixieland em Chicago e em Nova York para mascarar uma música essencialmente comercial produzida para que gente de mente vazia – notadamente os brancos – pudesse se exibir em maratonas de dança”.
Esta definição excluía a priori as orquestras negras, em especial a de Duke Ellington, que na realidade não tocava exatamente swing, deixando clara a visão que os músicos negros tinham a respeito dos brancos.
Esta, no entanto, não era a opinião de muitos músicos de orquestra, brancos ou negros, como testemunhou um amigo comum sobre o diálogo travado entre Paul Whiteman e Cootie Williams – um trompetista negro que tocava na orquestra de Duke Ellington – no intervalo de uma apresentação de Duke no Cotton Club, de Nova York. A uma declaração de Whiteman de que o swing nada mais seria do que “o velho e bom jazz” (soava muito estranho ouvir estas palavras vindas de Paul Whiteman), Cootie Williams teria respondido que ele, pessoalmente, não percebia nenhuma diferença – e olhem que Williams era um respeitado intérprete de blues (a sua gravação com a orquestra de Ellington de “Concerto For Cootie”, uma das favoritas de Whiteman, era uma prova cabal disso).
Mais tarde, o próprio Louis Armstrong mudaria o seu discurso e também admitiria que o swing era, de fato, uma outra forma de jazz.
E toda forma de jazz vale a pena.


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