AS CORES DO SWING
Capítulo 1 - O Rei do Jazz
Capítulo 1 - O Rei do Jazz
(continuação)
Muito embora o
tipo de música que Paul Whiteman estivesse executando no momento não fosse
exatamente o que se podia chamar de jazz, a conversa daquela noite no Joe’s e a
sua persistência acabaram lhe valendo, em 1928, o título de “O Rei do Jazz”.
Tudo começou
quando Ferde Grofé lhe falou a respeito de um trompetista de nome alemão que
andava à solta pela cidade liderando no momento um pequeno grupo chamado Bix
Beiderbecke and His Gang – nada apropriado para uma cidade onde o banditismo
corria à solta sob a tutela dos mafiosos, cujo nome mais temido era um certo Al
Capone.
Chicago vivia o
esplendor dos chamados “selvagens anos 20” – “the roaring twenties” – misturando glamour e vício,
romantismo e violência, e era sem dúvida a mais agitada cidade dos Estados
Unidos, agregando muita diversão – como música, jogos e entretenimentos – com
uma boa dose de selvageria e contravenção.
A Lei Seca,
promulgada em 1920, proibia a venda de bebidas em quase todos os estados
americanos. A bebida – contrabandeada ou falsificada e de má qualidade – a
prostituição e o jogo ilegal eram combatidos com mão de ferro pela polícia e
pelas autoridades, mas nem por isso deixavam de existir. Os músicos, na sua
grande maioria, se viam obrigados a tocar em locais escondidos, ainda que
repletos de gente, o que causava um misto de temor e indignação em Paul, que
preferia tocar em hotéis e auditórios abertos, de preferência contando com um
público seleto interessado em ouvir e dançar.
Foi neste cenário
que Bix Beiderbecke, um rapaz muito sensível, natural de Davenport, no Iowa,
filho de boa família e trompetista de raro talento, se viu jogado. Possuindo
uma formação clássica, embora não formal, Bix era apreciador de Schöenberg,
Stravinsky, Ravel e Debussy, todos eles compositores eruditos, modernos e
aclamados internacionalmente, o que ia de encontro ao gosto pessoal de Whiteman.
Bix também tocava jazz e era branco, ao contrário da maioria dos músicos que
interpretavam este novo estilo.
Sua competência
chegava a ser comparada à de Louis Armstrong, e por conta disso ele era
considerado um dos maiores jazzistas brancos do local (embora ele próprio não
se desse conta do fato), talvez o maior, se ficássemos apenas no trompete.
Paul queria saber
mais detalhes sobre este novo fenômeno, e este era mais um motivo para o seu
encontro com Ferde Grofé.
O jantar
transcorreu quente e animado. Ferde Grofé apresentou algumas sugestões para
apimentar o estilo açucarado de Whiteman. Este, por sua vez, ainda relutava e,
entre uma baforada e outra do seu charuto, tentava encontrar uma boa resposta
para não deixar a coisa escapar demais do seu controle.
Finalmente, o
assunto passou a ser Bix Beiderbecke. O trompetista era, na visão de Ferde, o
diferencial que poderia dar à orquestra de Whiteman um caminho em direção ao
jazz sem violentar os seus princípios.
Após ouvir os
argumentos de Grofé e contando posteriormente com o aval do saxofonista Frank
Trumbauer, Paul decidiu fazer uma experiência com o tal trompetista de jazz que
no momento andava meio à deriva. Recentemente, Bix Beiderbecke havia feito
parte da orquestra de Jean Goldkette, até que Jean resolvera dissolver a banda.
Mesmo tendo depois formado a sua banda de dixieland,
que ele chamava de “Gang”, Bix continuava aparentemente insatisfeito com o que
fazia e estava à procura de um novo trabalho.
Dois dias depois
do jantar no Joe’s, Paul Whiteman ouviu atentamente alguns discos gravados por
Beiderbecke em 1927 – “Clementine” (Henry Creamer e Harry Warren), “I’m Coming
Virginia” (Will Marion Cook e Donald Heywood) e “Singin’ The Blues” (Melvin
Endsley) – e mais especialmente uma fantástica apresentação solo, não de
trompete, mas de piano, na intrincadíssima música “In A Mist”, de autoria do
próprio Bix. Satisfeito, decidiu convidá-lo para fazer um teste na sua família
de músicos.
A entrevista não
foi muito promissora, pois Bix era um músico triste, pouco comunicativo e
aparentemente cheio de problemas. Pior, Paul descobriu que ele não lia
partituras com facilidade, o que poderia comprometer o seu desempenho dentro da
orquestra.
No entanto, Trumbauer lhe assegurou que Bix era
extremamente criativo e que conseguiria acompanhar os demais músicos sem muito
problema assim que conhecesse a melodia e o arranjo – afinal, era desta maneira
que ele havia tocado na orquestra de Goldkette, e de certa forma “este jeito improvisado de tocar não deixa de
ser jazz...”, completou sorrindo, sem convencer.
Paul era um músico
organizado e um maestro exigente, mas acabou cedendo à insistência de Trumbauer
e resolveu aceitar Bix na sua orquestra, embora sujeito a uma futura avaliação.
Começava naquele momento uma nova fase para ambos, que iria render muitos
dividendos, mas também muita dor de cabeça e um bocado de frustração tanto para
um como para outro, pois a visão de futuro do maestro contrastava com a falta
de ambição do trompetista.
Junto com Bix
Beiderbecke chegaram à orquestra o cantor Bing Crosby, irmão do também bandleader Bob Crosby, o grupo vocal The
Rhythm Boys e um novo arranjador chamado Bill Challis.
Com estas
modificações na sua formação, Paul finalmente ingressava num mundo mais
parecido com o jazz, apesar de ainda manter algum formalismo nas suas
partituras. Por outro lado, Bix Beiderbecke considerava ter finalmente
encontrado uma orquestra digna do seu nível artístico.
Não que a vida de
Bix Beiderbecke tivesse sido um fracasso musical até então. Ele havia liderado
uma das mais concorridas bandas de dixieland do eixo Nova York-Chicago,
The Wolverines, e havia encantado diversas plateias antes de entrar em
divergência com o grupo e se desligar em plena turnê, para se juntar a Jean
Goldkette, com quem ficaria pouco tempo.
Surgia agora para
Bix a oportunidade de tocar numa orquestra cujo refinamento fazia seu
pensamento retroceder para os bons tempos em que se ocupava ouvindo os
clássicos. Na verdade, ele confidenciou para alguns amigos que estava
verdadeiramente fascinado pelos arranjos sofisticados que eram escritos para a
orquestra, e que isso faria com que ele crescesse como músico.
Mas Bix era
tímido, nervoso, e apreciava uma bebida alcoólica muito mais do que a sua pouca
idade e a sua saúde frágil recomendavam. É claro que Paul não gostava nem um
pouco dos hábitos do seu novo músico, mas por outro lado ele tinha que tolerar
estes deslizes por conta do crescimento experimentado pela orquestra em direção
à propalada modernização.
Com
Bix tocando trompete, a orquestra de Paul Whiteman conseguiu fazer parte do
seleto clube do jazz, fato atestado pelas gravações de “Love Nest” (Otto
Harbach e Walter Hirsch), “Changes” (Walter Donaldson), “Dardanella” (Felix
Bernard e Johnny Black), “You Took Advantage Of Me” (Richard Rodgers e Lorenz
Hart), “Coquette” (Gus Kahn e Carmen Lombardo) e outros sucessos que, apesar de
estarem mais para o fox-trot,
procuravam justificar o título que os críticos, talvez precipitadamente, lhe
haviam dedicado.
Paul havia sido
aclamado “O Rei do Jazz”, mas nem mesmo aos amigos mais próximos ele chegou a
demonstrar que concordava com tal honraria. Considerando os elogios rasgados
que ele tecia não só a Duke Ellington como também às orquestras de Fletcher
Henderson e de Jimmie Lunceford, era de se esperar que ele próprio não se
achasse a altura de ser um “Rei” dentro de um estilo onde havia melhores e que
ele francamente não dominava, pois as raízes do jazz e do blues não haviam feito parte da sua formação.
Além disso, a
música dançante orquestrada estava em fase de transição e, embora a orquestra
de Paul Whiteman assimilasse o novo estilo jazzístico e progredisse a olhos
vistos, ele ainda encontrava dificuldades em se manter atual, pois as demais
orquestras estavam ficando cada vez mais atrevidas.
As orquestrações
se mostravam dia a dia mais “coloridas” e as orquestras se multiplicavam,
apresentando diferentes qualidades de interpretação que serviam tanto para
aqueles que gostavam de dançar como para aqueles que simplesmente gostavam de
ouvir uma música agradável.
Ao mesmo tempo, as
grandes orquestras começaram a prescindir cada vez mais dos violinos, violas,
violoncelos e harpas e a se transformar em big
bands. O regente passou a ser chamado de bandleader, e a música produzida por estas big bands, invariavelmente rotulada de jazz, passou a receber o
nome específico de swing.
A palavra “swing” (balanço, balançar), talvez
nascida do próprio ritmo da música – em contraponto ao “stomp” (bater com o pé no chão), a batida pesada dos primórdios de
Nova Orleans – passou a fazer parte do vocabulário das novas formações
orquestrais. Alguns historiadores do jazz afirmam que ela foi difundida devido
a uma feliz colocação de Ellington em uma de suas músicas –“It don’t mean a thing if it ain’t got that swing” (“isto não significa nada se não tiver aquele swing”), mas isto será discutido num outro capítulo.
Durante aquela
transição, surgiu um consenso geral entre músicos, críticos e apreciadores de
que jazz e swing seriam rigorosamente
a mesma coisa, opinião que obviamente não era compartilhada pela maioria dos
puristas que haviam vindo do sul.
Louis Armstrong
teria dito, por exemplo – e seu depoimento era o mesmo que se ouvia de muitos
dos músicos de jazz tradicional que se espalhavam pelo país – que “o swing
nada mais era do que uma excrescência musical que se aproveitara do bom momento
vivido pelo dixieland em
Chicago e em Nova York para mascarar uma música essencialmente comercial
produzida para que gente de mente vazia – notadamente os brancos – pudesse se
exibir em maratonas de dança”.
Esta definição
excluía a priori as orquestras
negras, em especial a de Duke Ellington, que na realidade não tocava exatamente
swing, deixando clara a visão que os
músicos negros tinham a respeito dos brancos.
Esta, no entanto,
não era a opinião de muitos músicos de orquestra, brancos ou negros, como
testemunhou um amigo comum sobre o diálogo travado entre Paul Whiteman e Cootie
Williams – um trompetista negro que tocava na orquestra de Duke Ellington – no
intervalo de uma apresentação de Duke no Cotton Club, de Nova York. A uma
declaração de Whiteman de que o swing
nada mais seria do que “o velho e bom
jazz” (soava muito estranho ouvir estas palavras vindas de Paul Whiteman),
Cootie Williams teria respondido que ele, pessoalmente, não percebia nenhuma
diferença – e olhem que Williams era um respeitado intérprete de blues (a sua gravação com a orquestra de
Ellington de “Concerto For Cootie”, uma das favoritas de Whiteman, era uma
prova cabal disso).
Mais tarde, o
próprio Louis Armstrong mudaria o seu discurso e também admitiria que o swing era, de fato, uma outra forma de
jazz.
E toda forma de
jazz vale a pena.
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