AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 4 - A LÓGICA DO ABSURDO
Pode parecer
estranho que um fenômeno alegre e contagiante como a explosão das big bands nos
Estados Unidos tenha se dado durante a inquietante década de 1930, um período
bastante conturbado tanto dentro das fronteiras americanas como em quase todo o
mundo, especialmente na Europa.
A Depressão
acontecida no final da década anterior havia trazido reflexos absolutamente
negativos na economia mundial, pois com a quebra da Bolsa de Nova York, as
Bolsas das grandes capitais europeias como Londres, Paris, Roma e Berlim também
sofreram impactos atordoantes.
Os
Estados Unidos enfrentavam a mais terrível recessão doméstica da sua história.
Esta recessão iria perdurar até 1939, exatamente quando a intervenção nazista
na Europa Central, nascida com a invasão da Polônia, faria eclodir a mais
violenta conflagração mundial da história, envolvendo os cinco continentes.
Durante a década
de 1930, o panorama econômico na maioria dos países não era diferente da
situação vivida pelos Estados Unidos. Na Europa, o fascismo e o nacionalismo exacerbado
cresciam, muito em função de governos fracos e de economias arrasadas, enquanto
a fome e o desemprego recrudesciam. A inflação havia chegado a níveis
aterradores. A Alemanha se encontrava no olho do furacão de um processo de auto-destruição
política, econômica e social.
Um pão, que
custava pouco mais de meio marco em 1918, chegou a custar 100 bilhões de marcos
em 1923! A guerra civil espanhola, as perseguições políticas feitas pelo regime
comunista de Stalin, os sonhos de Mussolini em restaurar o Império Romano no
norte da África e a mistura de loucura e sede de poder de Hitler eram os
ingredientes explosivos que faziam da Europa um barril de pólvora.
Hitler estimulou a
invasão das regiões fronteiriças da Alemanha apoiado nas “necessidades” das minorias
germânicas que ocupavam territórios da Polônia, da Checoslováquia e de outros
países do leste europeu, o que compôs um quadro desanimador que fatalmente
levaria o mundo a uma violência sem precedentes.
Os americanos,
desde o término da Primeira Guerra, se arvoravam em ser os líderes do chamado
“mundo livre e democrático” e eram frontalmente contrários à ideia fascista,
contra a qual em breve se poriam em armas. Eles tinham, no entanto, um problema
social doméstico que não conseguiam – ou não queriam – resolver: as diferenças
raciais.
Assim, chega a
parecer uma piada de mau gosto que o todo-poderoso Capitão América, personagem
de história em quadrinhos criado por Joe Simon e Jack Kirby em 1941 para
exaltar as qualidades morais do povo americano e declarar uma guerra paralela
ao nazi-fascismo e a outras práticas hediondas, não percebesse a ignomínia que
se desenrolava dentro de seu próprio território, como a discriminação racial
que impedia brancos e negros de frequentarem os mesmos lugares e de terem os
mesmos direitos civis.
Afinal, a batalha
que os americanos travavam contra a política expansionista de Hitler não se
limitava a questões territoriais. Dentro da luta para preservar a liberdade dos
povos havia uma linha de pensamento muito clara que condenava a prática do
racismo nazista imposta contra judeus, eslavos, asiáticos e negros,
considerados pelos arianos como “raças impuras” (além de ciganos, deficientes e
homossexuais).
Na verdade, por
detrás desta simplória justificativa social que usava o racismo como motivo,
tanto nos Estados Unidos como na Alemanha nazista existia toda uma complexa
rede de circunstâncias denunciando a necessidade explícita de dominação daqueles
que estavam no comando da situação. Os brancos – na América – e a “raça ariana”
– na Alemanha – queriam continuar mantendo a sua reserva de domínio conquistada
ao longo do tempo, ameaçada por minorias que para eles estavam se transformando
“perigosamente” em maioria.
Os brancos não
eram, tradicionalmente, “os donos” da América, que fora habitada há séculos
pelos índios de diversas tribos que tinham em comum suas práticas nativas e a
sua pele avermelhada.
Estes índios
haviam sido pouco a pouco dizimados, sem nunca terem chegado a ser uma ameaça
urbana, nem mesmo na época das épicas batalhas travadas contra os intrépidos
batalhões da cavalaria do exército. O establishment
conseguira confiná-los em localidades específicas e rigidamente delimitadas, as
quais chamaram de reservas indígenas, e nas primeiras décadas do século vinte o
conformismo que se abateu sobre as tribos outrora valentes e agressivas –
Cherokees, Apaches, Comanches, Cheyennes, Sioux, Navajos, e tantas outras –
mostrou que o problema estava sob controle.
Mas os negros
foram chegando e crescendo, confinados em guetos, é certo, mas se espalhando
devagar sem necessidade de travar batalhas. Desde o início do século dezessete até
as últimas décadas do século dezoito chegaram da África milhões de escravos que
aos poucos foram incorporando a sua cultura aos costumes locais. Com o fim da
escravidão em 1863, os negros, agora legítimos cidadãos americanos, foram se
multiplicando, até que no início do século vinte começaram a incomodar o
conservadorismo dos antigos senhores, pois as cidades economicamente mais importantes
do país já contavam com uma crescente população negra. Em apenas dez anos, de
1910 a 1920, por exemplo, a população negra de Chicago havia dobrado.
Os negros estavam
ocupando cada vez mais espaço e a situação começava a alarmar os brancos, que
viam nesse crescimento um grande risco de perderem poder, território, força de
trabalho e, conseqüentemente, riqueza.
Na Alemanha, a principal
ameaça eram os judeus, que trabalhavam de uma forma organizada e começavam a ter
um peso sobre a economia do país. Os nazistas temiam que se os judeus fossem
deixados à vontade para desenvolver as suas atividades, em pouco tempo a nova
República de Weimar se transformaria num país sionista, com prejuízos para os
germânicos “de raiz”. Hitler convenceu o povo alemão que os responsáveis pelos
seus problemas eram o humilhante Tratado de Versalhes, imposto pelos Aliados
após a rendição germânica na Primeira Guerra, e também culpou aqueles que não se
identificavam com os ideais arianos – eslavos, negros, latinos, indianos,
comunistas e principalmente os judeus.
Tanto num caso
quanto no outro, as razões apresentadas para a violência – contra os negros e
os não-arianos – pareciam apenas justificar os interesses mesquinhos de cidadãos
na defesa do seu espaço vital.
O absurdo da
lógica mostra, porém, que a política exterior dos Estados Unidos, que
confrontava entre outras coisas o racismo nazista, era paradoxalmente oposta à
política social praticada dentro do próprio país, onde negros eram rejeitados
também em nome de “uma classe superior”. Até porque negros e brancos, que
combateriam lado a lado na Europa, no norte da África e no Pacífico, não podiam
dar-se ao luxo de tomar uma cerveja em paz na mesma mesa de bar, quer seja em
Birmingham-Alabama, quer seja em Austin-Texas, quer seja na cosmopolita Nova
York.
Uma simples
lanchonete ou qualquer cinema de bairro possuía duas portas de entrada,
geralmente alguns metros distantes uma da outra. Uma porta era encimada por uma
placa com a palavra “white”, e a
outra com a palavra “colored”, um
eufemismo idiota que tentava suavizar a aspereza do termo “black”, como se negros não fossem negros, e sim pessoas coloridas
de verde, azul, ou cor-de-rosa.
É,
no entanto, incrível que este mesmo assunto, aparentemente irreconciliável,
conseguisse ser manejado com certa habilidade dentro do campo da música.
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