AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 4 - A LÓGICA DO ABSURDO
(continuação)
As orquestras do norte do
país, que interpretavam a música branca dos primeiros anos do século vinte utilizando
acordes e passagens harmônicas convencionais originárias da Europa, se viram de
repente diante do jazz tradicional negro e da sua estrutura de blues, com uma harmonia semitonada e
cheia de improvisos criativos.
Os
músicos dessas orquestras acabaram se encontrando com os músicos negros vindos
do sul, e por força do ofício, começaram a dialogar musicalmente com eles
através dos seus instrumentos.
Em
virtude deste encontro, o dixieland fez incorporar nas orquestras convencionais a sua nova noção
harmônica, pontuada por blue notes e pelo off-beat – elementos
que diferenciavam o jazz da música convencional – e promoveu as paráfrases e o
improviso individual, mesmo quando este “improviso” era previamente escrito em
partituras, ou mesmo quando o músico tinha que obedecer a um número limitado de
compassos.
As
orquestras brancas, por seu lado, também influenciaram o dixieland, que
começou a perder a pulsação pesada imposta pelo bumbo e pela tuba. Elas
suavizaram a interpretação agressiva dos músicos do stomp, fazendo
florescer uma música mais refinada, que acabou sendo denominada “jazz
chicago style”, ou simplesmente “chicago”.
Esta
miscigenação musical veio demonstrar, para a alegria de uns e provavelmente
para o desagrado de outros, que pelo menos no campo da arte musical, negros e
brancos conseguiam se harmonizar e coexistir pacificamente, embora normalmente
fizessem parte de grupamentos diferentes.
Quando as big
bands começaram a tomar conta do panorama musical do norte-nordeste da
América, ficou evidente o respeito e a admiração que os músicos brancos e
negros tinham uns com os outros. Com isso a música evoluiu, independentemente
da cor da pele do intérprete ou da proibição dos donos de hotéis e restaurantes
para que negros não tocassem em locais de brancos – e vice-versa.
As big bands,
desde o tempo em que eram chamadas de “orchestras”, já estavam
habituadas a tocar profissionalmente em hotéis, restaurantes e clubes, porque
os proprietários destes estabelecimentos faziam muito dinheiro com os bailes e
jantares dançantes dirigidos para as classes mais abastadas.
Mas, com a
modernização da música, a classe abastada não foi a única a tirar proveito da
alegre diversão dos salões de baile. A classe média logo aderiu à novidade, e
transformou os anos 1920 numa época jovial e elegante, onde a música fazia o
pano de fundo para todo o contexto festivo vivenciado pelo povo americano,
embalado por um som refinado e envolvente, romântico e por vezes até “blasé”.
A miscigenação
musical entre brancos e negros logo começou a render seus frutos.
O Graystone
Ballroom de Detroit, por exemplo, conseguia abrigar nas noites de segunda-feira
cerca de três mil pessoas – brancas – para dançar ao som dos McKinney’s Cotton
Pickers, orquestra negra comandada pelo baterista e showman William McKinney.
E este fenômeno se repetia no Paramount, no Cataract ou no Strand (todos em
Nova York), no Arcadia Ballroom (em Detroit), no Alcazar (em Baltimore), no
Aragon (em Chicago), no Ali Baba (em Oakland – Califórnia), no Moonlight (em
Canton – Ohio), no Twilight (em Fort Dodge – Iowa), e no Palomar Ballroom (em
Los Angeles).
É claro que a
presença do público cairia vertiginosamente depois da quebra da Bolsa de
Valores em 1929, mas mesmo assim a grande maioria das big bands de qualidade se manteve em franca atividade, inclusive a
McKinney’s, então dirigida por Don Redman, e a esta altura o envolvimento de
músicos negros e brancos já estava consolidado.
O problema é que a
partir daí, a oferta de trabalho ficou em baixa, e manter o emprego se tornava
cada dia mais difícil em todos os campos de atividades. Para sobreviver, muitos
profissionais dos mais diversos ramos – contadores, operários, professores,
músicos e outros – tinham que vender maçãs expostas sobre caixotes improvisados
em bancas de frutas em plena Quinta Avenida, ou então viviam de expedientes.
A
fim de continuar tocando, e desta forma manter seus empregos, os músicos de
orquestra muitas vezes tinham que pegar o trem e se deslocar centenas de
quilômetros para fazer apresentações não tão glamorosas como as feitas nos
salões de Chicago ou de Nova York. Muitas vezes as orquestras tinham que tocar
em pequenas cidades para um pequeno público que não fazia bem ideia do que
estava ouvindo, e muitas vezes o maestro saía da cidade sem receber um tostão
sequer.
No
entanto, apesar da guerra, das dificuldades e do racismo, e por mais
desagradável que fosse a situação, havia sempre o prenúncio e a esperança de
que coisas boas pudessem novamente acontecer. Afinal, conforme diz um ditado
comum nos Estados Unidos, “every cloud has a silver lining”, que significa – “toda nuvem tem um halo
prateado” (o que pode ser interpretado como “não existe nada de tão ruim que não tenha o seu lado bom”).
Este
aforismo se fez presente na história da música americana da primeira metade do
século vinte, quando acontecimentos que se prenunciavam sombrios acabaram por
produzir suculentos frutos.
Da
mesma forma como a interdição dos bares e cabarés de Storyville – o bairro
boêmio de Nova Orleans – foi um dos fatores que determinaram o êxodo dos
músicos de jazz tradicional para o Rio Mississipi acima, promovendo uma
saudável expansão da cultura musical do sul, também as dificuldades advindas da
Recessão forçaram a diáspora de muitos músicos para os diversos recantos do
país, funcionando como um fator multiplicador.
O
jazz tradicional começara a ocupar sistematicamente todos os quadrantes dos
Estados Unidos durante a década de 1920, de Montana ao Texas e da Califórnia ao
Maine. Na década seguinte, foi a vez da invasão do swing. Em ambos os casos, o país acabou sendo o grande beneficiado,
pois enriqueceu muito em termos de música e de cultura.
Centenas
de bandas brancas e negras se deslocavam incessantemente de trem ou de
automóvel, cobrindo todo o território americano num ir e vir constante, saindo
de Illinois e Nova York e passando pelo Mississipi, pelo Colorado, Nebraska ou
Kansas, tocando às vezes cada noite em uma cidade diferente, e colaborando
desta forma para a divulgação do jazz – dixieland,
chicago ou swing – num país musicalmente conservador, que ainda misturava a
placidez das valsas européias ou da interpretação dramatúrgico-operística com a
popular western country music típica do interior
americano.
Estas caravanas
musicais e a crescente divulgação dos discos de jazz através do rádio e das
lojas começavam a unir o país de uma forma homogênea e foram aos poucos mudando
os hábitos do cidadão comum, o que ajudou a consagrar o swing como a música americana por excelência, diferente de tudo o
que se fazia ou que se fizera até então.
Apesar de, lá
fora, o mundo enveredar por caminhos tenebrosos, os Estados Unidos passavam por
uma recuperação financeira e moral, dentro da qual o swing não só serviu para unir os americanos em torno de uma ideia
como também transformou esta ideia em algo que significava amor pela causa
americana.
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