quarta-feira, 15 de julho de 2020





AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 4 - A LÓGICA DO ABSURDO
(continuação)

As orquestras do norte do país, que interpretavam a música branca dos primeiros anos do século vinte utilizando acordes e passagens harmônicas convencionais originárias da Europa, se viram de repente diante do jazz tradicional negro e da sua estrutura de blues, com uma harmonia semitonada e cheia de improvisos criativos.
Os músicos dessas orquestras acabaram se encontrando com os músicos negros vindos do sul, e por força do ofício, começaram a dialogar musicalmente com eles através dos seus instrumentos.  
Em virtude deste encontro, o dixieland fez incorporar nas orquestras convencionais a sua nova noção harmônica, pontuada por blue notes e pelo off-beat – elementos que diferenciavam o jazz da música convencional – e promoveu as paráfrases e o improviso individual, mesmo quando este “improviso” era previamente escrito em partituras, ou mesmo quando o músico tinha que obedecer a um número limitado de compassos.
As orquestras brancas, por seu lado, também influenciaram o dixieland, que começou a perder a pulsação pesada imposta pelo bumbo e pela tuba. Elas suavizaram a interpretação agressiva dos músicos do stomp, fazendo florescer uma música mais refinada, que acabou sendo denominada “jazz chicago style”, ou simplesmente “chicago”.
Esta miscigenação musical veio demonstrar, para a alegria de uns e provavelmente para o desagrado de outros, que pelo menos no campo da arte musical, negros e brancos conseguiam se harmonizar e coexistir pacificamente, embora normalmente fizessem parte de grupamentos diferentes.
Quando as big bands começaram a tomar conta do panorama musical do norte-nordeste da América, ficou evidente o respeito e a admiração que os músicos brancos e negros tinham uns com os outros. Com isso a música evoluiu, independentemente da cor da pele do intérprete ou da proibição dos donos de hotéis e restaurantes para que negros não tocassem em locais de brancos – e vice-versa.
As big bands, desde o tempo em que eram chamadas de “orchestras”, já estavam habituadas a tocar profissionalmente em hotéis, restaurantes e clubes, porque os proprietários destes estabelecimentos faziam muito dinheiro com os bailes e jantares dançantes dirigidos para as classes mais abastadas.
Mas, com a modernização da música, a classe abastada não foi a única a tirar proveito da alegre diversão dos salões de baile. A classe média logo aderiu à novidade, e transformou os anos 1920 numa época jovial e elegante, onde a música fazia o pano de fundo para todo o contexto festivo vivenciado pelo povo americano, embalado por um som refinado e envolvente, romântico e por vezes até “blasé.
A miscigenação musical entre brancos e negros logo começou a render seus frutos.
O Graystone Ballroom de Detroit, por exemplo, conseguia abrigar nas noites de segunda-feira cerca de três mil pessoas – brancas – para dançar ao som dos McKinney’s Cotton Pickers, orquestra negra comandada pelo baterista e showman William McKinney. E este fenômeno se repetia no Paramount, no Cataract ou no Strand (todos em Nova York), no Arcadia Ballroom (em Detroit), no Alcazar (em Baltimore), no Aragon (em Chicago), no Ali Baba (em Oakland – Califórnia), no Moonlight (em Canton – Ohio), no Twilight (em Fort Dodge – Iowa), e no Palomar Ballroom (em Los Angeles).
É claro que a presença do público cairia vertiginosamente depois da quebra da Bolsa de Valores em 1929, mas mesmo assim a grande maioria das big bands de qualidade se manteve em franca atividade, inclusive a McKinney’s, então dirigida por Don Redman, e a esta altura o envolvimento de músicos negros e brancos já estava consolidado.
O problema é que a partir daí, a oferta de trabalho ficou em baixa, e manter o emprego se tornava cada dia mais difícil em todos os campos de atividades. Para sobreviver, muitos profissionais dos mais diversos ramos – contadores, operários, professores, músicos e outros – tinham que vender maçãs expostas sobre caixotes improvisados em bancas de frutas em plena Quinta Avenida, ou então viviam de expedientes.
A fim de continuar tocando, e desta forma manter seus empregos, os músicos de orquestra muitas vezes tinham que pegar o trem e se deslocar centenas de quilômetros para fazer apresentações não tão glamorosas como as feitas nos salões de Chicago ou de Nova York. Muitas vezes as orquestras tinham que tocar em pequenas cidades para um pequeno público que não fazia bem ideia do que estava ouvindo, e muitas vezes o maestro saía da cidade sem receber um tostão sequer.
No entanto, apesar da guerra, das dificuldades e do racismo, e por mais desagradável que fosse a situação, havia sempre o prenúncio e a esperança de que coisas boas pudessem novamente acontecer. Afinal, conforme diz um ditado comum nos Estados Unidos, “every cloud has a silver lining”, que significa – “toda nuvem tem um halo prateado” (o que pode ser interpretado como “não existe nada de tão ruim que não tenha o seu lado bom”).
Este aforismo se fez presente na história da música americana da primeira metade do século vinte, quando acontecimentos que se prenunciavam sombrios acabaram por produzir suculentos frutos.
Da mesma forma como a interdição dos bares e cabarés de Storyville – o bairro boêmio de Nova Orleans – foi um dos fatores que determinaram o êxodo dos músicos de jazz tradicional para o Rio Mississipi acima, promovendo uma saudável expansão da cultura musical do sul, também as dificuldades advindas da Recessão forçaram a diáspora de muitos músicos para os diversos recantos do país, funcionando como um fator multiplicador.
O jazz tradicional começara a ocupar sistematicamente todos os quadrantes dos Estados Unidos durante a década de 1920, de Montana ao Texas e da Califórnia ao Maine. Na década seguinte, foi a vez da invasão do swing. Em ambos os casos, o país acabou sendo o grande beneficiado, pois enriqueceu muito em termos de música e de cultura.
Centenas de bandas brancas e negras se deslocavam incessantemente de trem ou de automóvel, cobrindo todo o território americano num ir e vir constante, saindo de Illinois e Nova York e passando pelo Mississipi, pelo Colorado, Nebraska ou Kansas, tocando às vezes cada noite em uma cidade diferente, e colaborando desta forma para a divulgação do jazz – dixieland, chicago ou swing – num país musicalmente conservador, que ainda misturava a placidez das valsas européias ou da interpretação dramatúrgico-operística com a popular western country music típica do interior americano.
Estas caravanas musicais e a crescente divulgação dos discos de jazz através do rádio e das lojas começavam a unir o país de uma forma homogênea e foram aos poucos mudando os hábitos do cidadão comum, o que ajudou a consagrar o swing como a música americana por excelência, diferente de tudo o que se fazia ou que se fizera até então.
Apesar de, lá fora, o mundo enveredar por caminhos tenebrosos, os Estados Unidos passavam por uma recuperação financeira e moral, dentro da qual o swing não só serviu para unir os americanos em torno de uma ideia como também transformou esta ideia em algo que significava amor pela causa americana.

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