AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 5 – O SONHO
O sol declinava no fim da tarde, e fazia entrar uma réstia de luz oblíqua pela janela ornada por cortinas semicerradas dentro do estúdio sóbrio, mas elegante.
A parede era revestida por uma espessa tapeçaria semelhante às usadas nos castelos medievais, cuja tonalidade variava do dourado para o castanho, contendo desenhos filigranados em azul, e a decoração era completada por um cortinado de um rubro sanguíneo.
No chão, sobre o assoalho encerado, havia uma esteira de linóleo brilhante que conduzia até a porta de entrada, com as cores em mosaico combinando com o ambiente.
O estúdio era chique, porém discreto. O espaço não era muito arejado, dentro dos padrões das salas de visita dos anos 1940, um ambiente escuro sem ser fúnebre, e se impunha pela presença de um majestoso piano negro de cauda, que tomava inteiramente conta da paisagem. Ao lado do piano, bem à mão do pianista, havia uma mesa de centro de madeira trabalhada, com algumas xícaras contendo um frio resto de café, além de uma taça com um pouco de água, um cinzeiro repleto de tocos de cigarro e alguns cigarros virgens espalhados ao lado de três ou quatro folhas de partituras.
Na parede nua, ao lado da porta, um majestoso quadro se impunha, mostrando o retrato de uma dama imponente, embora sorridente.
Dwight Spencer, jornalista de algum renome na cidade, estava sentado numa cadeira de espaldar alto diante da mesa de centro, tendo à mão um bloco de anotações, e praticava o seu ofício conversando com o pianista, cuja figura se agigantava na sala, não só pelo seu tamanho avantajado, mas principalmente pelo seu porte nobre e altivo.
O som grave e pausado da sua voz era por vezes acompanhado por acordes ou trinados aleatórios, que pareciam estar compondo mais uma das suas mil melodias.
O repórter falou:
”O que é preciso para se compor uma música?” – de repente a pergunta lhe pareceu um pouco idiota, mas já havia sido proferida. O que Dwight queria saber, na verdade, era se seria necessário que o compositor se munisse de algum espírito ou de alguma emoção especial antes de começar a desenhar as notas e as figuras musicais sobre a partitura, tendo como referência apenas a sua criatividade.
A resposta óbvia seria “inspiração, uma ideia na cabeça, disposição momentânea” ou até mesmo “obrigação contratual”, mas ela veio diferente e desconcertante.
“Sonhar...” – respondeu o maestro.
“Sonhar?!” – e o jornalista levou alguns segundos para assimilar a resposta do maestro, assim como a maioria das pessoas levavam algum tempo para entender a sua harmonia, oblíqua como o sol da tarde.
“Eu sabia que não seria fácil entrevistar Duke Ellington!...” – pensou o repórter.
Ellington parecia totalmente envolvido no som do seu piano, e talvez nem estivesse prestando atenção nas perguntas.
De fato, ele não encarava o repórter; ao invés disso, fitava o teclado e ia além, com o olhar às vezes penetrando a caixa de madeira e se perdendo por entre os marteletes de feltro e se fixando no semblante emoldurado na parede. Obedecendo ao seu olhar, os dedos tocam as teclas, num acorde que faz os martelos vibrarem contra as cordas e criarem um som etéreo, o que provocou um estranho arrepio no jornalista.
Mas Ellington estava atento à conversa de Dwight.
“Yes, sir!, sonhar me traz idéias!” – confirmou Ellington, e enquanto falava, seus dedos corriam céleres sobre o teclado, num arpejo poderoso.
“Nada disto existe, tudo isto é sonho... Vê?” – e ele lança um olhar inquisitivo para Dwight Spencer – “Isto não é música, isto não é um piano, isto é... sonho!...”
Spencer sorriu, mas não fez nenhuma anotação.
“Eu sonho o tempo todo, quando toco e quando componho. É a única maneira possível de se fazer música” – encerrou Ellington, enigmaticamente.
Este era Duke Ellington, mais do que simplesmente um músico, um intelectual da música. Dwight entendeu o recado, percebeu qual seria o rumo da entrevista e decidiu apostar num trabalho inusitado, preocupado não em conhecer a história, mas em desvendar a alma do maestro.
-0-0-0-
Edward Kennedy “Duke” Ellington era, de fato, uma pessoa inusitada. Nascido e crescido dentro de uma família negra de classe média em Washington D.C. – seu pai nada mais era do que um mordomo, embora um mordomo de alta classe, pois servia a Casa Branca – ele cresceu aprendendo a impor os seus direitos.
Sua mãe, Daisy, que foi sua estrela guia durante toda a vida, lhe mostrou os caminhos que ele deveria seguir e com quais armas ele deveria contar para se sobrepor à intolerância dos brancos, fazendo o possível para viver uma vida tranquila sem jamais perder a dignidade.
Desde cedo, o pequeno Edward se sentiu atraído pela música.
O gênero brilhante e sincopado do ragtime, um legado do sul, já havia chegado à capital federal e particularmente agradava aos seus ouvidos, isto antes de 1910.
Nem bem Edward completara oito anos, sua mãe, percebendo a tendência artística do menino resolveu imediatamente dar a ele uma educação musical formal. O pai se encantou com a ideia, e ambos investiram nela as suas economias, fazendo com que ele iniciasse aulas de piano, com isso acalentando o sonho de vê-lo algum dia se tornar um músico famoso.
Edward era um pequeno cavalheiro e sua maneira educada e elegante lhe valeu o apelido de “Duke” (duque). Ele não apenas se comportava exemplarmente, mas também se vestia com esmero, dentro dos limites que os recursos da família permitiam, e possuía um linguajar que o diferenciava dos negros sem cultura que povoavam a capital.
Mas Daisy lhe ensinou muito mais do que apenas aparecer bem aos olhos dos outros. Ela lhe ensinou a não se intimidar com as vicissitudes causadas pela cor da pele. Se ele próprio se considerasse não superior, mas igual a qualquer branco, negro ou mulato, ele chegaria onde bem entendesse.
Talvez estes ensinamentos tenham produzido em Duke um amor pela sua mãe que ia além do simples amor filial. Ele verdadeiramente venerava Daisy, e a morte dela, ocorrida em maio de 1935 causou nele um poderoso e negativo impacto.
Nesta época eles moravam juntos em um apartamento no centro de Nova York, e a afinidade entre os dois era cada dia maior. Daisy fizera dele um grande homem, que se tornara um negro respeitável e um magistral compositor. Para ele, a sua perda significava muito mais do que a perda de uma mãe, significava a perda de uma parte do espírito e do sentimento, jamais devotado a qualquer outra pessoa.
Ellington, que não tinha o hábito de beber, a não ser socialmente – ao contrário da grande maioria dos músicos de jazz – passou a beber desbragadamente durante semanas seguidas dentro do apartamento, enquanto o estúdio permanecia trancado e envolto no mais profundo silêncio, pois ele havia parado de compor.
De acordo com os poucos amigos que ele permitia se aproximar, ele bebia e chorava o tempo todo, quase sem se alimentar e consumindo um cigarro atrás do outro.
A redenção chegou quando ele finalmente se propôs viajar novamente com a orquestra, que permanecera tocando sem a sua participação. A imagem de Daisy lhe deu inspiração para compor a sua mais longa música até então, tão longa que utilizava os dois lados de um disco de 78 rotações, uma verdadeira raridade na época. A música se chamou “Reminiscing In Tempo”, provocando reações diversas em críticos e músicos.
“Reminiscing In Tempo” é uma música não linear, com a intervenção de instrumentos em momentos inesperados, tentando atingir um crescendo que não se concretiza, e mostra bem o estado de espírito de Duke quando a compôs. Alguns a chamaram de maravilhosa e comovente, outros a acharam pretensiosa demais, e o respeitável crítico e empresário John Hammond simplesmente não a considerou digna do talento de Duke.
CAPÍTULO 5 – O SONHO
O sol declinava no fim da tarde, e fazia entrar uma réstia de luz oblíqua pela janela ornada por cortinas semicerradas dentro do estúdio sóbrio, mas elegante.
A parede era revestida por uma espessa tapeçaria semelhante às usadas nos castelos medievais, cuja tonalidade variava do dourado para o castanho, contendo desenhos filigranados em azul, e a decoração era completada por um cortinado de um rubro sanguíneo.
No chão, sobre o assoalho encerado, havia uma esteira de linóleo brilhante que conduzia até a porta de entrada, com as cores em mosaico combinando com o ambiente.
O estúdio era chique, porém discreto. O espaço não era muito arejado, dentro dos padrões das salas de visita dos anos 1940, um ambiente escuro sem ser fúnebre, e se impunha pela presença de um majestoso piano negro de cauda, que tomava inteiramente conta da paisagem. Ao lado do piano, bem à mão do pianista, havia uma mesa de centro de madeira trabalhada, com algumas xícaras contendo um frio resto de café, além de uma taça com um pouco de água, um cinzeiro repleto de tocos de cigarro e alguns cigarros virgens espalhados ao lado de três ou quatro folhas de partituras.
Na parede nua, ao lado da porta, um majestoso quadro se impunha, mostrando o retrato de uma dama imponente, embora sorridente.
Dwight Spencer, jornalista de algum renome na cidade, estava sentado numa cadeira de espaldar alto diante da mesa de centro, tendo à mão um bloco de anotações, e praticava o seu ofício conversando com o pianista, cuja figura se agigantava na sala, não só pelo seu tamanho avantajado, mas principalmente pelo seu porte nobre e altivo.
O som grave e pausado da sua voz era por vezes acompanhado por acordes ou trinados aleatórios, que pareciam estar compondo mais uma das suas mil melodias.
O repórter falou:
”O que é preciso para se compor uma música?” – de repente a pergunta lhe pareceu um pouco idiota, mas já havia sido proferida. O que Dwight queria saber, na verdade, era se seria necessário que o compositor se munisse de algum espírito ou de alguma emoção especial antes de começar a desenhar as notas e as figuras musicais sobre a partitura, tendo como referência apenas a sua criatividade.
A resposta óbvia seria “inspiração, uma ideia na cabeça, disposição momentânea” ou até mesmo “obrigação contratual”, mas ela veio diferente e desconcertante.
“Sonhar...” – respondeu o maestro.
“Sonhar?!” – e o jornalista levou alguns segundos para assimilar a resposta do maestro, assim como a maioria das pessoas levavam algum tempo para entender a sua harmonia, oblíqua como o sol da tarde.
“Eu sabia que não seria fácil entrevistar Duke Ellington!...” – pensou o repórter.
Ellington parecia totalmente envolvido no som do seu piano, e talvez nem estivesse prestando atenção nas perguntas.
De fato, ele não encarava o repórter; ao invés disso, fitava o teclado e ia além, com o olhar às vezes penetrando a caixa de madeira e se perdendo por entre os marteletes de feltro e se fixando no semblante emoldurado na parede. Obedecendo ao seu olhar, os dedos tocam as teclas, num acorde que faz os martelos vibrarem contra as cordas e criarem um som etéreo, o que provocou um estranho arrepio no jornalista.
Mas Ellington estava atento à conversa de Dwight.
“Yes, sir!, sonhar me traz idéias!” – confirmou Ellington, e enquanto falava, seus dedos corriam céleres sobre o teclado, num arpejo poderoso.
“Nada disto existe, tudo isto é sonho... Vê?” – e ele lança um olhar inquisitivo para Dwight Spencer – “Isto não é música, isto não é um piano, isto é... sonho!...”
Spencer sorriu, mas não fez nenhuma anotação.
“Eu sonho o tempo todo, quando toco e quando componho. É a única maneira possível de se fazer música” – encerrou Ellington, enigmaticamente.
Este era Duke Ellington, mais do que simplesmente um músico, um intelectual da música. Dwight entendeu o recado, percebeu qual seria o rumo da entrevista e decidiu apostar num trabalho inusitado, preocupado não em conhecer a história, mas em desvendar a alma do maestro.
-0-0-0-
Edward Kennedy “Duke” Ellington era, de fato, uma pessoa inusitada. Nascido e crescido dentro de uma família negra de classe média em Washington D.C. – seu pai nada mais era do que um mordomo, embora um mordomo de alta classe, pois servia a Casa Branca – ele cresceu aprendendo a impor os seus direitos.
Sua mãe, Daisy, que foi sua estrela guia durante toda a vida, lhe mostrou os caminhos que ele deveria seguir e com quais armas ele deveria contar para se sobrepor à intolerância dos brancos, fazendo o possível para viver uma vida tranquila sem jamais perder a dignidade.
Desde cedo, o pequeno Edward se sentiu atraído pela música.
O gênero brilhante e sincopado do ragtime, um legado do sul, já havia chegado à capital federal e particularmente agradava aos seus ouvidos, isto antes de 1910.
Nem bem Edward completara oito anos, sua mãe, percebendo a tendência artística do menino resolveu imediatamente dar a ele uma educação musical formal. O pai se encantou com a ideia, e ambos investiram nela as suas economias, fazendo com que ele iniciasse aulas de piano, com isso acalentando o sonho de vê-lo algum dia se tornar um músico famoso.
Edward era um pequeno cavalheiro e sua maneira educada e elegante lhe valeu o apelido de “Duke” (duque). Ele não apenas se comportava exemplarmente, mas também se vestia com esmero, dentro dos limites que os recursos da família permitiam, e possuía um linguajar que o diferenciava dos negros sem cultura que povoavam a capital.
Mas Daisy lhe ensinou muito mais do que apenas aparecer bem aos olhos dos outros. Ela lhe ensinou a não se intimidar com as vicissitudes causadas pela cor da pele. Se ele próprio se considerasse não superior, mas igual a qualquer branco, negro ou mulato, ele chegaria onde bem entendesse.
Talvez estes ensinamentos tenham produzido em Duke um amor pela sua mãe que ia além do simples amor filial. Ele verdadeiramente venerava Daisy, e a morte dela, ocorrida em maio de 1935 causou nele um poderoso e negativo impacto.
Nesta época eles moravam juntos em um apartamento no centro de Nova York, e a afinidade entre os dois era cada dia maior. Daisy fizera dele um grande homem, que se tornara um negro respeitável e um magistral compositor. Para ele, a sua perda significava muito mais do que a perda de uma mãe, significava a perda de uma parte do espírito e do sentimento, jamais devotado a qualquer outra pessoa.
Ellington, que não tinha o hábito de beber, a não ser socialmente – ao contrário da grande maioria dos músicos de jazz – passou a beber desbragadamente durante semanas seguidas dentro do apartamento, enquanto o estúdio permanecia trancado e envolto no mais profundo silêncio, pois ele havia parado de compor.
De acordo com os poucos amigos que ele permitia se aproximar, ele bebia e chorava o tempo todo, quase sem se alimentar e consumindo um cigarro atrás do outro.
A redenção chegou quando ele finalmente se propôs viajar novamente com a orquestra, que permanecera tocando sem a sua participação. A imagem de Daisy lhe deu inspiração para compor a sua mais longa música até então, tão longa que utilizava os dois lados de um disco de 78 rotações, uma verdadeira raridade na época. A música se chamou “Reminiscing In Tempo”, provocando reações diversas em críticos e músicos.
“Reminiscing In Tempo” é uma música não linear, com a intervenção de instrumentos em momentos inesperados, tentando atingir um crescendo que não se concretiza, e mostra bem o estado de espírito de Duke quando a compôs. Alguns a chamaram de maravilhosa e comovente, outros a acharam pretensiosa demais, e o respeitável crítico e empresário John Hammond simplesmente não a considerou digna do talento de Duke.
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