quarta-feira, 29 de julho de 2020






AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 6 - A EXPANSÃO MUNDIAL DO SWING
(continuação)

Sob a influência do ragtime e das orquestras que faziam a alegria de Nova Orleans no final do século dezenove e início do século vinte – como a Jack “Papa” Laine’s Reliance Brass Band, a John Robichaux’s Band, a Buddy Bolden’s Band, a Alphonse Picou’s Columbia Brass Band e a Manuel Perez’s Imperial Orchestra – surgiu o stomp, um misto de alegria burlesca com a pulsação vinda das raízes populares. Eles criaram também o new orleans blues, uma forma específica de interpretação que não respeitava necessariamente a estrutura do blues convencional. O new orleans blues servia tanto para abrilhantar o Mardi Gras como para homenagear algum sujeito benquisto ou razoavelmente importante por ocasião do seu funeral.
A mistura da “música na sua forma bruta” (aquela executada pelos menestréis e pelas bandas de rua, conhecidas como spasm bands) com a “música na sua forma pura” (aquela tocada pelos pianistas, violinistas e outros artistas com formação acadêmica) teve como resultante o "som americano”, que foi se refinando, se ajustando e tomando corpo durante a transição dos séculos dezenove e vinte, tendo como base principal o senso de improviso e criatividade do intérprete.
O ragtime se modificou de acordo com a nova tendência e entrou como ingrediente nessa receita, passando a fazer parte do cardápio do americano do sul do país, para depois rapidamente ganhar adeptos nos seus quatro quadrantes, começando pelo jazz tradicional para logo mais se sofisticar no estilo chicago, e continuar sofrendo sucessivas modificações durante o século, enquanto conquistava espaço.
Dentro deste quadro, Nova Orleans foi única e fundamental, e fazia sentido que assim o fosse.
Misturada com os nativos do lugar, por lá perambulava toda a sorte de indivíduos – aventureiros, jogadores, religiosos de todas as crenças, comerciantes, agiotas, marinheiros, desertores, foras-da-lei, ex-escravos, fugitivos, espertalhões, jogadores, oportunistas, prostitutas, beberrões, intelectuais, poetas e, principalmente, músicos.
Lá, pessoas de todos os matizes e de todas as raças coabitavam numa harmonia invejável, numa mistura de línguas e de culturas, coroada por uma gastronomia absolutamente diferente do padrão americano. Este clima de amistosidade acabou sendo transportado para o campo da música.
A convivência dos opostos musicais era respeitosamente cultivada. A imponência da ópera coexistia com a sutileza da valsa francesa, o mesmo acontecendo entre a força da música germânica, a seriedade dos cânticos de igreja, a malícia da música dos creoles, a picardia da música caribenha e a aspereza melancólica e sincrética da música dos negros.
Esta convivência produziu um som peculiar e inconfundível que tomou conta das esquinas, dos becos e dos cabarés, executado pelas spasm bands, pelos pianistas de ragtime, pelos músicos de honky-tonk – um ritmo pianístico originário dos botequins do Texas – e também pelos bluesmen solitários.
De Nova Orleans partiram as alegres troupes de artistas coloridos que subiam e desciam o Rio Mississipi e aportavam nas cidades ribeirinhas a bordo dos riverboats, barcos que transportavam pessoas e carga e ao mesmo tempo levavam uma quantidade considerável de boêmios e de apreciadores da boa música, que usufruíam das viagens como uma simples aventura musical contada pelo piano, trompete, clarinete, bateria e o que mais houvesse, levando o jazz ao sabor da correnteza, “up and down the river”.
Foi em Nova Orleans, ou nos seus arredores, que nasceram alguns dos fantásticos músicos que ajudaram a escrever a história do jazz – Buddy Bolden, Freddie Keppard, Bunk Johnson, King Oliver, Kid Ory, Jelly Roll Morton, Jimmie Noone, Omer Simeon, Louis Armstrong, Armand J. Piron, Nick LaRocca, Paul Mares, Natty Dominique, Ray Bauduc, Johnny Dodds, Wingy Manone, Lorenzo Tio – e foi lá que as circunstâncias fizeram com que popular e erudito caminhassem de mãos dadas na elaboração de uma música de abrangência nacional que em breve atravessaria as fronteiras e se transformaria numa música universal.
Assim, o sul dos Estados Unidos ditou o tom da nova moda, que se espalhou rapidamente, chegando em pouco tempo em Saint Louis, Chicago e Nova York – e mais tarde em Los Angeles –  graças à diáspora dos músicos  que estavam perdendo espaço em Nova Orleans. Em Chicago, o jazz tradicional encontrou um público mais refinado, que se divertia em salões elegantes ricamente ornamentados, ao som de orquestras também refinadas que interpretavam o fino da música européia de avant-garde.
Do encontro destes estilos – o stomp e o improviso de um lado, e as valsas e mazurcas do outro – aconteceu o inevitável.
Ao mesmo tempo em que os músicos semiletrados do jazz percebiam certas nuances e modulações com as quais não estavam acostumados (e que muitos sequer conheciam), os músicos mais eruditos das orquestras de dança começaram a perceber que havia algo de novo acontecendo debaixo dos seus narizes, com um beat invertido, com um tempo repleto de pausas inesperadas, com o compasso alterado, com surpreendentes paráfrases da linha melódica e – para a sua estupefação! – com uma harmonia delicadamente alterada por sons que não pareciam ser cromáticos e que “desafinavam” sutilmente nas passagens entre os acordes.
Eles aprenderam um com o outro, e ambos adotaram um pouco de cada tendência.
O jazz tradicional, musicalmente rústico e fortemente marcado, assumiu uma personalidade mais soft, o que fez realçar a sua harmonia e musicalidade. A música de salão, por seu turno, que era naturalmente sisuda, comportada e destituída de maiores acidentes, assumiu uma face mais improvisada e brejeira.
Estava instaurado um som intermediário que mantinha a linhagem das grandes orquestras e permitia o improviso e a criação que se escondia por detrás da música aparentemente descompromissada do sul do país.
Foi desta forma que apareceu o swing, estilo que dava à música a conotação do jazz ao mesmo tempo em que mantinha a burguesia se divertindo nos salões. O swing foi surgindo meio timidamente, através de uma ou outra intervenção no meio das valsas e dos tangos, e mesmo que ofuscado pelos arranjos europeizados e cheios de cordas de Paul Whiteman e Art Hickman, foi soltando as amarras e aos poucos assumindo seu lugar na dança de salão com Fletcher Henderson, Chick Webb, Jimmie Lunceford, Cab Calloway, e outros tantos mais.


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