segunda-feira, 17 de agosto de 2020

 



AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 8 - O LINDY HOP

Pode soar estranho, mas as origens do Harlem, o mais importante bairro negro dos Estados Unidos, não têm nada a ver com a raça negra.

O Harlem foi fundado por holandeses, que em 1658 se estabeleceram no norte de um local que um dia seria Nova York, comandados por um militar de nome Peter Stuyvesant. Em homenagem à cidade de Nieuw Haarlem, que ficava na região costeira da Holanda junto ao Mar do Norte, a nova comunidade se chamou Haarlem, que tempos depois virou Harlem.

Durante algum tempo, aquelas terras foram exploradas pelos holandeses remanescentes da Companhia das Índias Ocidentais que lá exerceram diversas atividades rurais e desenvolveram o lugar até que apareceram os ingleses e os nativos, que juntos puseram todo mundo pra correr, iniciando a lenta reurbanização do local. No final do século dezoito a região estava tremendamente valorizada e servia de habitação para alguns burgueses abastados provenientes da parte de baixo de Manhattan.

A grande invasão negra, de fato, começou apenas na metade final do século dezenove, mas aconteceu de tão forma rápida e eficiente que em menos de trinta anos fez florescer no lugar, de uma maneira inesperada e fascinante, uma forte cultura afro-americana. Este crescimento, principalmente o referente ao período compreendido entre as décadas de 1920 e 1930 ficou conhecido como “Harlem Renaissance”, numa alusão ao Renascimento europeu, que nos séculos quinze e dezesseis elevou as artes – como a pintura, a música e a literatura – a patamares antes nunca vistos.

Durante o período deste Renascimento afro, os negros que habitavam o bairro do Harlem pareciam viver em um território totalmente à parte, imunes aos diversos tipos de preconceito, apesar da política racista da época que imperava em outros rincões dos Estados Unidos. Lá no Harlem o negro se sentia seguro e praticamente inatingível, compartilhando com seus pares um clima de igualdade e fraternidade.

No Harlem havia bares, cabarés e casas de diversão onde praticamente só os negros frequentavam, não porque fosse proibida a entrada de brancos, mas porque os brancos simplesmente não se sentiam à vontade dentro de um ambiente tão especialmente fabricado para os negros, que usavam um linguajar característico e curtiam a sua música e as suas idiossincrasias.

A falta de dinheiro e de oportunidades, e a falta de perspectivas de progresso e de vida eram flagrantes, mas nada disso era empecilho para que os negros do Harlem se divertissem pra valer. Aqueles que tinham habilidades artísticas – cantores, dançarinos, músicos, atores – as exerciam com entusiasmo e maestria.

O Harlem foi a casa de muitos negros importantes em nichos de arte ou humanismo mesmo não tendo qualquer relação com o jazz ou com a música, como o poeta James Langston Hughes, as escritoras Zora Neale Hurston, Jessie Redmon Fauset, Gwendolyn Bennett e Marita Bonner, os escritores James Weldon Johnson, Sterling Allen Brown e Marcus Garvey, o líder trabalhista Philip Randolph, o jornalista Wallace Thurman, e os líderes dos direitos civis Dorothy Height e William Edward Burghardt Du Bois. O bairro era chamado de “Negro Metropolis” – a Metrópole do Negro – pelos intelectuais e noctívagos de todos os tipos que para lá convergiam, entre os quais artistas, intelectuais, pensadores, bêbados e boêmios de todos os padrões.

Quem não tinha o talento do intelecto procurava exercer a sua habilidade de outra forma, e uma das formas mais utilizadas de fazê-lo era dançando. Dançar não custava dinheiro, era estimulante e fazia parte do “nacionalismo” do bairro. Dançar também fez com que os negros explorassem, por muito tempo, o ritmo envolvente e suado do estilo new orleans ou das músicas caribenhas trazidas do sul. Isto até que chegou o swing, que não parecia ser uma música típica da raça, mas era desprendido, arrojado e acrobático e possuía um balanço bem próprio do nome, o que dava condições aos dançarinos de promoverem o exercício da sua criatividade com muita liberdade e prazer.

Os americanos já haviam experimentado diversos tipos de dança, desde as tradicionais valsas e polcas dos salões europeus até o charleston, dança cultivada pela elite branca que surgiu nos salões na década de 1920, solto e atrevido, apreciado pelas classes média e alta, com as mulheres de cabelo curto usando saia também curta e mostrando as pernas sem qualquer pudor. O distante centro-oeste cultivava a square dance, um tipo de quadrilha na qual os casais dançavam ao som de violões, sanfona, rabeca e harmônica de boca, dentro de uma coreografia com passo marcado. Estas danças, porém, pareciam ser excessivamente brancas para os padrões do Harlem.

Lá no Harlem, o beat acentuado do swing e as nuances modernas da música incentivaram o espírito inventivo dos negros. Mesmo com uma razoável “porção branca” embutida, o swing deu grande motivação aos bailarinos, pois os compeliam a movimentar o corpo mais do que o faziam as outras músicas mais ou menos dançantes (ou nada dançantes, como o blues e o spiritual).

Em 1926, quando o Savoy Ballroom se instalou no coração do Harlem, ele trouxe consigo a mania da dança de salão, hábito que se praticava em Chicago e, mais longinquamente, em Los Angeles. Naquele tempo a principal casa noturna do Harlem era a Sans Souci, fundada em 1828, que tocava primordialmente rumba, uma música que havia caído no gosto dos antigos colonizadores e que agora se perpetuava entre os negros, entre os quais se misturavam cubanos, panamenhos e porto-riquenhos.

O efeito Savoy abriu as portas para que o jazz em forma de swing pudesse competir com o traditional jazz e com as músicas afro-cubanas, oferecendo ao praticante uma possibilidade diferente de dançar, fazendo coro ao ritmo e às estruturas musicais modernas. Com isso, a nova casa engoliu o Sans Souci.

A dança que encarnava o swing já estava tomando conta da cidade, mas não havia sido ainda batizada, até que, numa noite de março de 1927, o aviador Charles Lindbergh, que se faria mundialmente famoso dois meses depois ao atravessar o Atlântico voando numa casca de noz, estava presente no Savoy. Um tal de Arnold Buster, frequentador assíduo da casa, fez uma brincadeira maldosa ao declarar que, em homenagem ao aviador, ele iria demonstrar um passo de dança denominado “Lindbergh Hop” (opulinhodo Lindbergh) – “hop em inglês, entre outras coisas significa “o saltitar dos pássaros quando se movimentam no solo” – como se o avião do piloto não fosse levantar vôo, mas simplesmente pular de um lado para outro na pista – do aeroporto, não do salão.

A piada, um tanto desrespeitosa e de mau gosto, pode não ter pegado, pois o avião de Lindbergh decolou de fato, mas a dança, que adquiriu o nome de “Lindy Hop“, acabou se imortalizando e se tornou tão popular que ajudou a concretizar o novo panorama dançante que tomaria conta do país nos próximos vinte anos, prosseguiria através do tempo e ditaria as tendências da moderna dança de salão em todo o mundo.

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