sexta-feira, 18 de setembro de 2020

 



...E A BANDA NÃO TOCA

(Augusto Pellegrini)

 

          Zé do Café era o garçom que servia a diretoria de uma importante usina siderúrgica inaugurada havia poucos anos e considerada a cereja do bolo da indústria nacional e o cartão de visita do progresso e da modernização, tendo em vista as questões comerciais e diplomáticas com relação a outros países.

            Recém-saídos de uma revolução militar acontecida dois anos antes, o país vivia reflexos de grandes mudanças na sua política econômica e estrutural e o novo poder constituído exercia uma intensa vigilância sobre as atividades e procedimentos das empresas consideradas estratégicas para os interesses da nação.

            Com isso, reuniões entre os diretores da usina e altas patentes militares eram frequentes, sendo discutidos atrás das portas trancadas assuntos de grande relevância para a segurança nacional. O único momento em que se permitia alguma descontração era a hora do cafezinho, quando entrava em ação o nosso personagem.

Era o instante em que Zé do Café, desconfiado como bode embarcado, chegava para exercer seu ofício, postando no rosto um sorriso falsificado e tentando algumas frases supostamente engraçadas para baixar a tensão, quando na verdade desejaria estar naquela hora a centenas de metros daquela sala.

Naquela sexta-feira fatídica, Zé adentrou o recinto sagrado equilibrando uma bandeja de prata com um bule cheio de café cheiroso, um açucareiro, e as respectivas xícaras e colherinhas, e começou o ritual da trégua pacificadora da reunião, o que sugeria uma leve descontração no clima pesado existente entre três militares graduados e quatro dirigentes do mais alto escalão da empresa.  

Um cigarro aqui, um pigarro acolá, e eis que o inesperado acontece.

Um vacilo momentâneo, um passo dado fora do compasso ou um gesto mal calculado fez com que a xícara do café destinada ao general mais cheio de estrelas sofresse um estremecimento, deslizasse sobre o pires e entornasse o precioso líquido sobre as medalhas e condecorações do militar.

Fez-se o silêncio dentro do silêncio, aquele vazio abafado que antecede a tormenta. Os diretores da usina se entreolharam sem mexer a cabeça, o pânico estampado na face.  

Zé do Café, suando como uma panela destampada cozinhando o seu futuro, colocou a bandeja sobre a mesa, olhou desalentado para os juízes da sua condenação e balbuciou de si para si, mas de forma bem audível:

“É, doutor... é foda. É foda, e a banda não toca...”

Meio segundo depois, os sisudos senhores caíram na gargalhada, como se estivessem todos despertando de um sonho para a realidade.

Um dos dirigentes então falou – “Zé, leve o general para o banheiro onde ele poderá limpar o estrago que você fez. Na volta, traga mais café, mas tome mais cuidado”.

 

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