sábado, 19 de setembro de 2020

 



AS CORES DO SWING
           (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 12 - MÚSICA E LÁGRIMAS

Definitivamente, aquele 15 de dezembro não parecia ser um dia propício para grandes aventuras.

O frio e a possibilidade de neve iminente pairavam sobre a região de Bedfordshire, no leste da Inglaterra, e desencorajavam desde a simples abertura de uma fresta de janela até uma rápida chegada à tabacaria mais próxima. A temperatura fazia um apelo convidativo para o aconchego de uma sala com a lareira ativada – posto que calefação era um artigo de luxo naquele período de guerra – onde podia ser degustado um chá do tipo Gunpowder com um pouco de brandy, para desespero do caseiro inglês, adepto da mistura com leite.

Era em Bedford, próximo à cidadezinha de Clapham, num lugarejo chamado Twinwood Farm, que a RAF – Royal Air Force – mantinha uma pequena base, de onde partiam aviões pequenos e monomotores, como aquele que se dispunha a conduzir o major Glenn Miller no seu voo até Paris.

Os especialistas, cautelosos, eram favoráveis a que ele adiasse a viagem, pois as previsões meteorológicas para o dia – e para o dia seguinte – não indicavam um voo tranquilo na travessia do Canal da Mancha.

O major Glenn Miller, no entanto, pensava diferente.

Seu comportamento era movido pela música, e não havia condição atmosférica capaz de interferir nos seus planos quando esses planos significavam música, alegria e descontração, mesmo em meio à tormenta social que se abatera sobre a Europa.

Ele havia escolhido o seu destino.

Dono de uma das mais aplaudidas orquestras nos Estados Unidos, Miller resolvera abdicar dos salões glamorosos de Nova York, Chicago e Los Angeles para se alistar no exército americano e se envolver com a violência e a degradação humana que se alastravam por todo o território europeu, com a única finalidade de levar música, alegria e descontração para os soldados do Tio Sam.

Miller deixou de lado os elegantes tuxedos para vestir a si e à sua preciosa orquestra com o uniforme de guerra dos Estados Unidos, e deixou pra trás uma plateia cheia de gente bonita e bem vestida para tocar para um bando de homens ensandecidos que urravam durante a execução da música.

Para tanto, ele se valeu de uma amizade antiga com o general-brigadeiro Charles Young, que convenceu o comando geral sobre a importância da missão do bandleader e enviou o batalhão de Miller para o miolo da guerra empunhando saxofones e clarinetes ao invés de fuzis e metralhadoras.

Oh c’mon”, argumentava Glenn Miller sobre a necessidade de adiar o voo, o que é a ameaça de uma simples tormenta para quem enfrenta bombardeios aéreos e canhonaços com a maior serenidade?

Ele tinha um compromisso importante em Paris, e não seria a cara feia do tempo que iria demovê-lo da ideia de viajar. Miller precisava preparar os detalhes do show de Natal que a sua orquestra iria fazer em homenagem aos soldados americanos e franceses na recém-libertada Cidade Luz, finalmente livre das mãos e das botas dos alemães, depois de quatro anos de tormento.

A França, mais do que qualquer outro país, significava algo muito especial para os músicos americanos, principalmente em se falando de jazz.

Desde o início do século vinte, este país fora um dos preferidos pelos jazzistas dentro do continente europeu, tanto pelo calor e entusiasmo com que o novo estilo havia sido recebido, como pelo precoce aprendizado dos músicos gauleses através de uma surpreendente seleção de nativos bastante competentes que fizeram do jazz a sua segunda pátria musical.

O show da Glenn Miller Orchestra seria realizado no tradicional Teatro Olympia e transmitido ao vivo pelo rádio para todo o país, para a Inglaterra e para outras partes do continente europeu, e a presença do bandleader na sua preparação era necessária por conta dos inúmeros detalhes a serem revistos. Miller gostava de verificar pessoalmente o mapa do palco, a qualidade dos microfones e do sistema de som, e de analisar o repertório em função da atmosfera criada com a expectativa do espetáculo, além de outras coisas bem comezinhas, como acomodação, alimentação e lavanderia para o pessoal da orquestra.

Outra preocupação, é claro, era a análise e a assinatura do contrato comercial, pois Miller temia que os organizadores pudessem exigir a presença de músicos franceses na sua banda e queria se assegurar que os valores a serem pagos estavam de acordo com o previamente acertado.

Assim, enquanto se servia de um chocolate quente, que as suas raízes americanas preferiam ao chá do tipo Gunpowder tradicional, ele rabiscava a sequência das músicas e o desenvolvimento do show, considerando tratar-se de um espetáculo comemorativo que, de alguma forma, começava a antecipar a reviravolta aliada que iria redundar na vitória final contra o regime de Hitler dali a menos de um ano.

Glenn sempre fora um incorrigível otimista e um incurável preguiçoso. Ele também apreciava uma pescaria, de preferência sozinho e em lugares isolados, e gostava de assistir uma boa partida de beisebol – Jimmie Foxx, do Boston Red Sox, era o seu jogador favorito. Tinha também uma queda especial para ganhar dinheiro.

A música, no entanto, era a energia que movia a sua vida. Mesmo gostando de dormir horas a fio, ele jamais permitia que o descanso pudesse comprometer o seu trabalho musical.

A apresentação parisiense iria render à orquestra muitos elogios e uma considerável quantia para engordar a conta bancária dos músicos, principalmente a sua, e era sobre isso que Miller estava conversando com o seu arranjador predileto, Jerry Gray.

Gray estava trabalhando com Miller há quase cinco anos, período suficiente para que o bandleader reconhecesse nele não apenas o valor de um grande arranjador, como também de uma pessoa confiável o bastante para ser seu confidente.

Jerry Gray também desaprovava a viagem dentro das condições existentes, mas Miller era um cabeça-dura de tal monta que nem o melhor dos amigos seria capaz de demovê-lo de uma ideia. Iria viajar logo depois do almoço, lá pelas três horas da tarde, e ponto final.

Apesar de alistado regularmente no exército americano e de ostentar no momento a patente de major, Glenn Miller jamais perdera suas características civis, e entre estas características estava a desobediência às ordens ou instruções que estivessem contra a sua maneira de pensar.

Miller se alistara nas forças armadas por puro patriotismo, mas desde o início fora seduzido pela ideia de transformar o front num imenso palco. Para tanto, ele fez um acordo com o seu amigo general-brigadeiro: ele faria uma guerra diferente, na qual estimularia os soldados americanos sem a necessidade de participar efetivamente das batalhas e tocaria swing ao invés de marchas militares.

Um dos itens do acordo era recrutar os músicos da sua própria orquestra a fim de manter a sua conhecida qualidade sem ser preciso contar com outros soldados-músicos regulares mesmo que eles tivessem alguma familiaridade com o jazz.

Por conta disso, apesar de tocar sem receber um tostão na maioria das vezes, por se tratar de uma orquestra oficial do exército americano, por vez ou outra ele promovia apresentações especiais remuneradas, patrocinadas pelo próprio exército ou por algum Mecenas apreciador do swing.

No caso do show de Paris, a sugestão partira do próprio general, que inclusive tivera a preocupação de estabelecer contatos com seus pares franceses de modo que a situação financeira fosse devidamente arranjada como se faz em qualquer produção musical de cunho comercial, isto é, com cachê, divulgação, alimentação, viagem e hotel pagos.

Glenn Miller abria a possibilidade de, no dia seguinte ao show do teatro, fazer uma apresentação grátis ao ar livre num dos melhores pontos de Paris, a fim de permitir que o povo francês tivesse contato direto com o carisma dos seus músicos.

Mas o dia estava realmente feio, e nada recomendava uma viagem aérea no turbulento céu do Canal da Mancha. A imagem vista pela janela era desoladora, mostrando uma manhã cor de chumbo e a pista deserta, sem uma viva alma a transitar nos arredores, enquanto a força do vento fazia tremer as vidraças e varria a esmo alguns pedaços de papel.

Por duas vezes o piloto do monomotor interrompeu a conversa que Miller mantinha com Jerry Gray para sugerir que deixassem a viagem para a manhã do dia seguinte, pois as frias manhãs inglesas de dezembro costumavam ser brindadas por uma réstia de sol.

No way, Chuck!”, foi a resposta seca do major.

Assim, às três horas de uma tarde úmida e opaca, partia de Twinwood Farm o monomotor Noorduyn Norseman tipo C-64, prefixo 44-70285, com destino a Paris, e o que se tem daí para frente passou a ser uma especulação histórica.

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