AS CORES DO SWING
(Livro de Augusto Pellegrini)
CAPÍTULO 11 - O REI DO SWING
(continuação)
O senhor
David Goodman era
um judeu russo que havia imigrado para os Estados Unidos no fim do século dezenove
para fugir do anti-semitismo. David trabalhava como alfaiate em Varsóvia, mas
na América teve que completar a renda com um emprego menor em um frigorífico de
Chicago, participando da matança dos bois e da limpeza do pátio onde o gado era
esfolado.
O salário era
também pequeno, do tamanho do seu serviço, e mal dava para sustentar a família
composta de mulher e doze filhos.
Sua principal
atividade era livrar o pátio do frigorífico das vísceras, da gordura e do sebo
que se acumulava a cada degola, enfiando as botas de cano longo até a altura do
tornozelo naquela massa sangrenta e disforme enquanto utilizava uma pá para
jogar os detritos dentro dos recipientes adequados.
Quando David
chegava em casa, um quarto e cozinha alugado na Maxwell Street, o pequeno
Benjamin – a quem chamavam de Benny – lá estava esperando para abraçá-lo cheio
de alegria, embora mal conseguisse suportar o mau cheiro que dele exalava.
Benny tinha muita
pena do pai, e mesmo sendo ainda uma criança, imaginava o que poderia ser feito
para livrá-lo de tal pesadelo. Sonhava em aprender alguma profissão para ajudar
nas despesas da casa, e a sua preocupação o tornava uma criança arredia, pouco
sujeita a brincadeiras com outros meninos da sua idade.
Como judeu
praticante, Benny ia regularmente à sinagoga de Kehelah Jacob, onde havia uma
modesta escola de música. Começou a se interessar pelo clarinete e a ter
contato com o instrumento através do professor James Sylvester.
Sylvester
entremeava suas aulas práticas com noções de teoria musical, e pelo
desenvolvimento surpreendente e prematuro de Benny ele logo pressentiu que o
garoto teria futuro. Tendo isso em mente, tão logo sentiu que o momento era
apropriado o professor o incluiu numa banda de meninos formada por crianças
pobres cuidadas por uma dama de nome Jane Adams, que administrava uma casa de
caridade chamada Hull House.
Ele ainda usava
calças curtas quando resolveu, junto com um amigo da Hull House – Dave Tough –
se juntar a um outro grupo de adolescentes que tocava na Austin High School,
uma escola das redondezas. A banda tinha o sugestivo nome de Austin High School
Gang.
Benny teve um
crescimento rápido como músico, tendo inclusive a oportunidade de participar da
orquestra de Benny Meroff, onde imitava o então famoso clarinetista Ted Lewis,
um bem sucedido músico branco que tocava na Original Dixieland Jass Band.
Quando menos
esperava, Benny começou a se apresentar como profissional e a ganhar algum
dinheiro, dando-se conta que a partir de então sua música poderia representar
para ele um futuro promissor, e para o pai a redenção e uma velhice melhor.
Benny tinha
dezesseis anos quando foi chamado por Ben Pollack para ir a Los Angeles a fim
de ingressar na sua orquestra, a Ben Pollack and His Californians, dezessete
quando participou das suas primeiras gravações, e dezenove quando viu pela
primeira vez o seu nome impresso no selo de um disco.
Tudo parecia estar
caminhando dentro do que Benny esperava, mas o velho David Goodman andava muito
irritado com a situação, pois não se conformava em ver um filho pagando as suas
contas.
É claro que David
não chegava ao ponto de sentir saudade dos tempos em que havia trabalhado como
carniceiro, emprego que abandonara na tentativa de se dedicar apenas à profissão
de alfaiate, mas se sentia bastante incomodado no seu orgulho de pai de
família.
O velho David se
achava incompetente e ficava envergonhado consigo mesmo por não bancar os
recursos da casa como um chefe da família deveria fazer. Com a demanda de
clientes em baixa, ele saía de casa pela manhã para perambular pelas ruas até a
hora do almoço, chegando em casa não mais cheirando a gado morto, mas a bourbon falsificado.
Numa das suas idas
e vindas, o pior aconteceu: o senhor David Goodman foi atropelado por um
automóvel quando descia de um bonde. Levado inconsciente para um hospital de
Chicago, ainda conseguiu sobreviver por dois dias, mas não resistiu e morreu.
A morte de David
deixou um vazio na vida de Benny, que muitos anos depois ainda se confessava
ressentido por não ter tido o tempo necessário para dar ao pai uma vida
decente, depois de tantos dissabores – a mudança da Polônia para os Estados
Unidos na condição de imigrante pobre, o sub-emprego, as humilhações que
passara por ser judeu, os dias em que sentia o estômago doer de fome e a morte
inglória.
Com
o passamento do pai, Benny voltou de Los Angeles para Chicago, mas a cidade
perdera o encanto. Nem o fato de gozar de um relativo sucesso junto a Ben
Pollack e outros band leaders, com um futuro praticamente garantido no
cenário musical do show business local, fez desaparecer o desencanto que estava sentindo.
Então, Benny fez
as malas e partiu para Nova York, onde seria um mero desconhecido e lutaria
durante algum tempo para se tornar famoso, trabalhando de free-lancer
como músico de aluguel.
Ele tinha alguma
contribuição para dar, pois já esbanjava uma técnica apreciável executando
solos que haviam ficado marcados pelos clarinetistas que ele ouvira na sua
infância, notadamente o pessoal de Nova Orleans, como Johnny Dodds, Leon
Roppolo e Jimmy Noone, misturado com os trinados mais comerciais de Ted Lewis.
Goodman era uma
pessoa arrojada e decidida a subir no mundo artístico que Nova York lhe
proporcionava. Descobriu onde o trompetista Red Nichols realizava os seus
ensaios, num galpão próximo à Rua 52, e para lá se dirigiu tendo em mãos o
estojo contendo o seu clarinete.
Lá chegando, encontrou
pela frente um porteiro mal-encarado que lhe disse Red Nichols estar ensaiando e
que não havia interesse em fazer experiências com novatos. “Músicos como você aparecem todos os dias
para pedir emprego e Red não aguenta
mais ouvir mediocridades”, disse ele com a autoridade de um maestro.
Benny Goodman
retrucou educadamente que já tocava profissionalmente há algum tempo, e tudo o
que queria era mostrar seu estilo para o senhor Nichols, ao que o porteiro replicou
que ele teria que marcar dia e hora para ser recebido – “mas não agora!” – concluiu.
Benny Goodman
agradeceu e fingiu que ia embora. Tão logo o porteiro fechou a porta, ele tirou
calmamente o instrumento do estojo, experimentou o bocal e prestou atenção na
música que a banda estava tocando, uma velha conhecida sua de Chicago, chamada
“King Porter Stomp”.
Goodman
esperou pela hora do solo de piano, quando o volume arrefecia, e atacou um
improviso alto e de bom som. As notas musicais extraídas do seu clarinete
entraram pelo galpão adentro e despertaram a curiosidade de Nichols que
imediatamente parou o ensaio e se dirigiu para o lado de fora a fim de ver o
que estava acontecendo. Ato contínuo, Nichols convidou Goodman para entrar no
galpão e exercitar um pouco com os seus músicos.
Depois dessa
apresentação nada ortodoxa, presenciada pelo porteiro boquiaberto, Benny
Goodman começou a participar extemporaneamente da orquestra Red Nichols and His
Five Pennies, embora preferisse continuar como free-lancer, o que lhe possibilitava tocar com
outras bandas e conhecer outras práticas, além de sempre fazer um dinheiro
extra.
Seu
nome crescia no mundo musical de Nova York, e ele logo se viu convidado a tocar
com Isham Jones, que dirigia uma das mais populares orquestras de dança da
cidade, com quem ficou alguns meses antes de se unir ao seu antigo ídolo Ted
Lewis, remanescente dos melhores grupos de jazz tradicional dos anos 1910.
Tocar com Lewis
trouxe a Goodman uma série de benefícios.
Primeiro, ele
deixou definitivamente de imitar Lewis
ao perceber que tocava melhor do que ele. Goodman extraía do clarinete
seqüências melódicas e paráfrases muito mais bem elaboradas e criativas do que
o antigo ídolo. Depois, ganhou uma admirável noção de como tocar em equipe, e
pela primeira vez teve a certeza de que poderia apostar numa orquestra própria,
com mais brilhantismo do que a de Ted Lewis ou mesmo Isham Jones, desde que
trabalhasse com arranjos mais arrojados e produzisse uma maior leveza no beat da música.
Pouco tempo
depois, em 1932, Benny Goodman, no vigor dos seus vinte e três anos, montava o
seu primeiro grupo orquestral, recrutando músicos aqui e ali, a maioria dos
quais participantes de sessões free-lance, como ele.
Em 1934, Goodman
já possuía no elenco figuras de proa do jazz novaiorquino, como o trompetista
Bunny Berigan (logo depois vieram também Harry James e Ziggy Elman), o pianista
Jess Stacy e o baterista Gene Krupa. Mais tarde Goodman aprimoraria os
arranjos, trabalhando com alguns cadernos sofisticados adquiridos de Fletcher
Henderson.
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