quarta-feira, 28 de julho de 2021

 


TEXTO 2

PÁGINAS ESCOLHIDAS

COISAS (1988)

IMPRESSÕES COLHIDAS NO INFERNO

Tudo é incompreensível como um criptograma, ilógico como um paradoxo, anômalo como um eunuco. As tampas das panelas tremiam sob o vapor bem cheirante, o Domingo de Páscoa estava claro e cheio de sol, os pássaros voavam fora das gaiolas e o gato se espreguiçava sob um telhado de zinco.
Na Sexta-Feira, todos cantavam tristezas atrás do andor e se persignavam diante do altar, e todos beijavam os pés de gesso do Cristo morto, assassinado por eles próprios. Agora, todos matam novamente o Salvador com hipocrisia e farisaísmo, todos piedosos dentro das conveniências – esmigalhariam homens, mulheres e crianças como quem massa um inseto, arrebentariam suas cabeças e cuspiriam nos cadáveres dilacerados, mas sempre com os olhos meigos voltados para o sacrário, com os lábios balbuciando preces que nunca entenderam.
Os piedosos sapateiam na lápide. O ruído eu ouço daqui.


 

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