sábado, 10 de outubro de 2015







DE PERNAS PRO AR 

O São Paulo F.C. sempre passou a imagem de ser um clube organizado e movido pelas boas regras da etiqueta.
Seus diretores são chamados pela imprensa e pela torcida de “cardeais”, e a sua postura sempre foi a de um clube que estava muito além do prosaico futebol.
Mas, igual com o que acontece com muitos milionários falidos, quer porque não se adaptaram às novas exigências do tempo, quer porque os filhos plantaram dissidências internas insuperáveis, o tricolor teve em seus dois últimos presidentes a quebra total do seu paradigma e começou a ostentar todos os barracos existentes nos seus rivais diretos no futebol tupiniquim.
Até que, em meio a uma crise financeira e a uma crise técnica que culminaram com a saída do treinador e o descontentamento de muitos jogadores do elenco, o que poderá ainda dar muito pano pra manga, o vice-presidente de futebol meteu literalmente a mão na cara do presidente do clube em uma reunião realizada num hotel chique da capital paulista, rompendo com uma lealdade construída em nome da governabilidade da agremiação e, de quebra, provocando a queda de todo o corpo diretivo.
Tem mais: na semana passada, durante uma partida disputada por uma liga amadora de Minas Gerais, um árbitro sacou de uma arma e ameaçou um jogador, só não atirando porque foi contido e dissuadido pelos próprios auxiliares e porque os jogadores, sabiamente, abriram espaço.
As coisas estão ficando de pernas pro o ar.
Isto lembra 1967, quando o jornalista João Saldanha se desentendeu com o goleiro Manga na festa que comemorava o título carioca na sede náutica do Botafogo, no Mourisco, e sapecou-lhe alguns tiros, fazendo com que o jogador pulasse um muro de três metros de altura (dizem), assustado, mas satisfeito com a má pontaria do João Sem Medo.
Mas isto aconteceu numa época em que o mundo não era ungido pelo espírito da paz e da fraternidade, como deveria ser hoje em dia.
No final do século passado, futurólogos, astrólogos, quiromantes e palpiteiros em geral teciam alvíssaras para o novo século que chegava, começando a contagem regressiva para a Era de Aquário, mesmo que ela viesse a explodir somente lá pelo ano de 2150.
A Nova Era, precedida por muita expectativa e tendo como aval a chegada ao século 21, preconizava a paz e um acelerado desenvolvimento cultural, social, científico e humanístico que iria colocar a humanidade em patamares nunca antes vividos.
Pois bem, o século 21 chegou, e parece que o planeta Terra tomou um porre tão marcante na noite do seu réveillon histórico que até agora não conseguiu encontrar o seu rumo.
A partir daí, o mundo, que já era complicado, desatinou de vez, quer seja pela vulgarização dos mitos, pelo culto à violência, pela ganância desenfreada ou pela busca insana por alguma coisa que ninguém sabe ao certo o que seja.
Nunca se matou tanto por tão pouco e nunca o homem foi tão refém do outro homem. Nunca a natureza foi tão maltratada.
As notícias absurdas, algumas inéditas, se sucedem. Somente nos últimos dias a força militar americana bombardeou um hospital humanitário no Afeganistão, o governo sírio auxiliado pelos russos desencadeou um bombardeio sem precedentes no seu próprio território e, na França, operários demitidos de uma montadora automobilística tentaram linchar toda a diretoria.
No Brasil, o motorista de um senador agrediu um deputado durante um desentendimento causado no estacionamento do Congresso.
Parece que ao invés da era de Aquário nós estamos entrando da Era do Apocalipse.
Com todos estes indicadores, o esporte não poderia ficar de fora.
Espocam escândalos em todas as áreas e em todos os países. Nunca antes tantos dirigentes sérios e sisudos forem desmascarados como escroques e nunca os esportistas se doparam tanto.
E diretores de clubes tradicionais, que estão no cargo para manter o equilíbrio e dar tranquilidade aos jogadores e esperança aos torcedores, trocam tapas entre si como numa briga de rua.

 

 

(Artigo publicado no caderno SuperEsportes do jornal O Imparcial de 09/10/2015)

 

terça-feira, 6 de outubro de 2015





                                                            EU E A MÚSICA

TRÊS ATOS COM BILLY PAUL
(360º de Billy Paul)
Existem certas coincidências que acontecem na vida da gente que valem a pena ser lembradas, por insólitas que são.
A marchas e contramarchas da vida me levaram a conhecer o pacato e venerando cidadão Paul Williams, hoje com respeitáveis oitenta anos, na época em que ele era cenicamente conhecido como Billy Paul, um divertido e versátil cantor e um artista de grande talento, utilizando com maestria a sua voz e o seu corpo a serviço da black music, com muito soul, funk e swing.
Não fossem, porém, as ditas coincidências puramente circunstanciais, eu talvez nunca tivesse assistido a um show seu nem tivesse tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
O fato é que, sem nunca ter procurado pelo seu show e sem jamais ter gasto sequer um tostão com ingressos, acabei, ao longo de vinte anos, assistindo não a um, mas a três shows de Billy Paul. 
A primeira vez em que Billy Paul veio ao Brasil, no início dos anos 1970, eu ainda morava em São Paulo e tinha uma legião de amigos que eram, à sua moda, envolvidos com música – proprietários e atendentes de lojas de discos, divulgadores de gravadoras, cantores de boates e relações públicas de artistas.
Dercy Gonçalves, homônimo da comediante e às vezes tão engraçado quanto ela, era divulgador da gravadora Continental e estava preocupado com a entrevista coletiva que Billy Paul daria à tarde num hotel da cidade. Em virtude de eventos paralelos, o intérprete contratado pela gravadora e pela Rádio Bandeirantes, parceira no evento, não poderia estar presente, então Dercy lembrou-se de mim, um amigo que “arranhava” o inglês e que poderia ajudar na coletiva com as perguntas de praxe e a posterior tradução.
A irresponsabilidade é muitas vezes companheira da criatividade e do sucesso.
Para o bem geral de todos, a coletiva não apenas transcorreu de uma maneira melhor que o esperado como deixou os promotores muito satisfeitos. Billy Paul também se divertiu bastante com a entrevista improvisada, ou pelo menos assim me pareceu.
É bem verdade que ele estava praticamente iniciando a sua carreira internacional e que tudo lhe parecia novo e interessante, e que naqueles tempos românticos estes assuntos técnicos não eram tratados com o rigor de hoje em dia.
Ao término da entrevista, a produção do show agradeceu a minha participação e me deu, provavelmente à guisa de pagamento, ingressos para “o show de logo mais à noite”.
Assim eu, que até então nunca tinha sequer ouvido falar de Billy Paul, fui pela primeira vez a um espetáculo seu, realizado no Teatro Paramount, sendo apresentado aos seus sucessos “Me And Mrs. Jones” (Kenny Gamble e Leon Huff), “Your Song” (Elton John), e “It’s Too Late” (Carole King), com os quais fiquei imediatamente encantado.
O tempo correu e desembocou na década de 1980.
Certo dia estava eu fazendo nada no estúdio da Rádio Mirante-FM em São Luís-Maranhão,  quando o locutor César Roberto, que também provavelmente fazia nada, posto que o seu programa já havia terminado, perguntou se eu “aguentaria uma dose de música pop num show que aconteceria à noite” (era uma pequena provocação, ou então uma cândida tentativa de fazer piada, porque minha atividade na emissora era produzir e apresentar música de jazz).
Quando retruquei que “dependia do show”, ele foi mais explícito – tratava-se de soul music, com um dos grandes nomes internacionais do estilo, Billy Paul. César Roberto havia recebido alguns ingressos da produção do cantor para distribuir entre o pessoal da radio.
Deliciado com a coincidência, pois o show seria um revival daquela noitada alegre do Paramount, é claro que concordei, e à noite fomos nos acomodar nas cadeiras ordenadamente distribuídas na quadra de tênis descoberta do Hotel Quatro Rodas.
Era noite de lua cheia – ou plenilúnio, como diriam os parnasianos – e o céu dos trópicos cintilava de estrelas. A brisa suave que vinha do mar a poucos metros do local não conseguia refrescar o calor emanado pelo show, e o cheiro da maresia era atenuado pelo sabor da cerveja comprada dos estandes ao redor ao pista e pelo leve odor do perfume usado pelo público que estava mais chique do que o evento exigia.
Billy Paul, que naquela noite estava extraordinariamente animado, desceu do palco para cantar e dançar no meio da plateia, que naquela altura arrastou as cadeiras do lugar e transformou a quadra de tênis numa autêntica discoteca ao ar livre.
Aproveitei para conversar com Billy e comentar sobre o evento da Radio Bandeirantes em São Paulo, do que ele evidentemente não se lembrou, mas gentilmente fez de conta que havia me reconhecido.
Mais uma década se passou.
Eu estava novamente em São Paulo, desta vez cuidando da edição do meu livro “Jazz – Das Raízes Ao Pós Bop”, quando meu amigo Eduardo Sérgio Fracalanza convidou-me para jantar, após o que iríamos a um show de jazz na casa mais conceituada da cidade.
Depois de uma excelente anchova na manteiga com amêndoas, regada por uma cerveja geladíssima (e não por um bom vinho, como o maître queria), partimos para o Bourbon Street para afinal descobrir que naquela noite especial não teríamos o tradicional jazz do local, mas uma apresentação de... Billy Paul!
O repertório não havia mudado muito nos últimos vinte anos e não faltaram os seus velhos sucessos – afinal, era o que o público queria ouvir – e Billy continuava bastante jovial.
Com a nossa mesa relativamente longe do palco, poupei a ele a gentileza de mais uma vez “se lembrar” dos nossos encontros anteriores.  
Mas contei a Fracalanza a singularidade da minha relação com o pop-star.

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015





EU E A MÚSICA
                                                   PARADA DE SUCESSOS!
Estranhamente, para uma crônica que se propõe comentar aventuras musicais, falar sobre futebol parece francamente uma excrescência, embora vozes saudáveis costumem muitas vezes relacionar as duas coisas e eu próprio ter como atividade cultural tanto uma coisa – música – como a outra – futebol – nas minhas digressões literárias.
Assim, num certo dia de 1953, um rapaz de pernas tortas, a quem chamavam de Garrincha – possivelmente pelo seu hábito de, desde criança, caçar passarinhos do mesmo nome – entrou no gramado de treino do campo do Botafogo, lá na Rua General Severiano.
Garrincha foi escalado para jogar na ponta-direita, num espaço de campo defendido por um lateral de nome Nilton Santos, que desde 1948 reinava absoluto no Botafogo e pintava na seleção brasileira, e que viria a ser chamado enfaticamente de “A Enciclopédia”, pois sabia tudo de futebol.
Garrincha não se importou nem um pouco com a fama do seu adversário e começou nesta mesma tarde a sua campanha mundial de desmoralização dos marcadores que a partir de então, até meados dos anos 1960, teriam a infelicidade de enfrentá-lo.
Dizem aqueles que viram o famoso Nilton Santos tomar um grande baile sem música daquele novato desengonçado, que ao término do treino o lateral foi o primeiro a recomendar a sua contratação ao então presidente Ibsen de Rossi.
Considerando que este duelo aconteceu num treino sem maiores pretensões, num dia de semana sem qualquer significado especial e cercado de nenhuma expectativa, a quantidade de gente que garante ter estado presente é assustadora, pois de longe suplantaria a lotação do estádio, que era de vinte mil pessoas.
Este prólogo vem a calhar quando se fala do nascimento da bossa nova.
Aqui não se trata de vinte mil, mas de vinte milhões de brasileiros que de uma maneira ou de outra contam como vivenciaram o evento e como as suas vidas mudaram a partir de então.
Parece que todos passaram por uma experiência semelhante à que eu passei ao serem apresentados à novidade que estremeceria as bases da cultura musical brasileira e modificaria o seu futuro de forma definitiva.
Meu relato é semelhante a milhares de relatos correlatos e a sensação de que algo de muito importante estava acontecendo com a música brasileira é compartilhada com estes milhares de felizardos.
Era 1958, talvez agosto, talvez setembro. Meio-dia.
O sol brilhava, o céu estava colorido de um azul radiante, o Brasil ainda estava eufórico com a conquista da Copa do Mundo na Suécia em junho e tudo parecia cor-de-rosa.
Eu estava no pequeno jardim da minha aconchegante casa no bairro da Aclimação, em São Paulo, que era cercado por um gradil baixo de madeira no estilo Hollywood, com o portãozinho acolhedor para as visitas bem intencionadas; algumas florezinhas bem distribuídas salpicavam o verde de amarelo, rosa e violeta, enquanto lá na cozinha, nas mãos da cozinheira minha mãe, o feijão exalava seu perfume generoso.
O aparelho de rádio – uma portentosa peça do móvel conjugado rádio-e-vitrola dotada de um moderníssimo olho mágico verde-esmeraldino – estava ligado, como sempre acontecia nessa hora, no programa “Parada de Sucessos”, transmitido pela Rádio Nacional de São Paulo, que apresentava as músicas mais tocadas e os discos mais vendidos da semana, na voz vibrante de Hélio de Alencar.
O bordão, anunciado ao som de “Saint Louis Blues” tocado pela orquestra de Glenn Miller era – “Paraaada de Sucessosss! – um desfile das músicas que o povo consagraaa! – patrocínio Lojas Assumpção, uma loja em cada bairro para melhor servir você!” – e servia de cenário para 10 caprichados hits da época, entre eles “Balada Triste” (Dalton Vogeler e Esdras Silva) com Agostinho dos Santos, “Escultura” (Adelino Moreira e Nelson Gonçalves) com Nelson Gonçalves,  Interesseira” (Bidu Reis e Murilo Latini) com Anisio Silva, “Meu Mundo Caiu” (Maysa) com Maysa, as internacionais “Cachito” (Consuelo Velásquez) com Nat ‘King’ Cole, “You Are My Destiny” (Paul Anka) com Paul Anka, e as versões “Love Me Forever” (Beverly Guthrie e Gary Lynes) com Lana Bittencourt, “Patrícia” (Pérez Prado) com Emilinha Borba e “Diana” (Paul Anka) com Carlos Gonzaga.
Uma selva bastante diversificada, como se vê, reunindo no mesmo pacote sambas-canções, baladas, boleros e a pop music da época.
Esta diversificação de certa forma incomodava uma certa parcela de jovens que, como eu, se interessavam pelo jazz ou por um tipo de música que contivesse uma mensagem que fosse poética e harmonicamente diferenciada – Sylvia Telles, Os Cariocas, Dick Farney, Lucio Alves, Johnny Alf, Chet Baker, Barney Kessell, April Stevens, Julie London, The Hi-Lo’s – fugindo das estruturas comuns, das paixões desesperadas, dos dós de peito ou das rimas pouco sutis.
A gente sabia, no entanto, que estas músicas não vendiam o suficiente para estar numa parada de sucessos e cada qual se contentava em curti-las no seu ambiente particular.
Eu e a minha turma, por exemplo, ingeríamos altas doses de boa música – e um outro tanto de gim-tônica – no recôndito do nosso garage club, batizado com o sugestivo nome de Bop Street, nome de uma música gravada pelo grupo de rock “Gene Vincent & seus Blue Caps”. Ou então nos revezávamos nas casas de outros amigos para ouvir as novidades que faziam bem para os ouvidos e para o espírito.
De volta àquela hora de almoço que iria mudar a história do mundo, as músicas apresentadas no programa eram anunciadas na ordem inversa, começando pelo décimo até chegar ao primeiro lugar, com Hélio de Alencar gritando bem ao seu estilo: “Em décimo lugarrr – Chega de Saudade, João Gilberto, uma novidade em primeira mão!!!”.
João Gilberto? Quem seria? Que diabo de música seria essa?
A resposta veio em seguida, e a partir daí a música brasileira nunca mais foi a mesma: a flauta mágica de Nicolino Copia, o Copinha, começa a introdução que me deixa estático em frente ao portão. Não é samba, não é choro, não é samba-choro. O violão acompanha com uma batida nunca antes utilizada, com uma divisão estranha adornada por acordes dissonantes, funcionando como um suave acolchoado para acomodar as notas da flauta.
De repente surge a voz, intimista como Chet Baker, preguiçosa como um solo de Lester Young, clara, nítida e articulada como Sinatra, e emitida como um sopro, como a voz de Julie London, sem o menor esforço.
Pronto, acabei de ser apresentado a João Gilberto, que descobriria mais tarde tratar-se de um gênio, não devido à minha avaliação, mas a um conceito universal que regula o bom gosto musical.
Nos próximos dez anos ele iria tomar conta do mundo e seria considerado uma unanimidade nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, pelo seu modo de interpretar e de tocar violão. Músicos de jazz e da música standard se curvariam à sua maneira não convencional e absolutamente discreta de mostrar a sua arte.
No Brasil, surpreendentemente, existe um divisor de águas entre aqueles que o idolatram – pela sua genialidade – e aqueles que o desprezam – quer por não entenderem seu modo de interpretar quer por estranharem sua maneira de interagir com o público.
Almocei às pressas o feijão da minha mãe com todos os acompanhamentos, saí de casa, apanhei o trolleybus e fui ao chamado centro da cidade – Rua Barão de Itapetininga – em direção à loja Breno Rossi para adquirir no ato o disco “Chega De Saudade” (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes), com João Gilberto, sua voz e violão em 78 rotações, selo Odeon, arranjos e direção musical de Antônio Carlos Jobim (como no caso de Copinha, vim saber deste detalhe muito depois), o que colaborou com a genialidade da gravação; no lado B, “Bim Bom” (João Gilberto). O LP seria lançado em 1959 incluindo outras preciosidades, como “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça), “Lobo Bobo” (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli) e “Brigas, Nunca Mais” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes).
Esta é a história que, mutatis-mutanti, teve o efeito da chegada do Anjo da Anunciação para os ditos milhões de pessoas que incluem a mim, a minha turma da Bop Street, a turma carioca do Sinatra-Farney e do Dick Haymes-Lucio Alves Fã Clubes, Roberto Menescal, os amigos do jazz, o pessoal de Ipanema e outros bem-aventurados que sentiam estarem sendo abertas naquele momento as portas do Reino do Céu.