A MACHADINHA
(Conto publicado no livro “À noite,
todos os gatos” em 1998)
(Parte 1)
Ao badalar da meia-noite, ele se mira no
espelho quase apagado pela luz fraca das quarenta velas que vêm da lâmpada
incandescente sobreposta ao armário do quarto e vê seus olhos fundos e
cansados, o cabelo em desalinho como sempre e a barba geralmente por fazer.
Ele caminha pelo cômodo único à procura
dos seus pertences, uma pequena maleta com alguns apetrechos esparsos atirada
num canto da cama e um pequeno crucifixo de metal escurecido que jaz sobre a
mesa ao lado de uma bacia com água.
Faz frio. Ele veste uma camisa xadrez de
flanela por sobre a camiseta de um branco encardido e depois um casaco já
bastante usado por sobre a camisa, enfia o boné na cabeça, apanha a maleta e
sai pela porta escura de madeira envelhecida levando no rosto a expressão dura
e embrutecida e os olhos opacos dos desajustados, tranca a porta com uma chave
presa a uma argola, que enfia no bolso lateral do casaco junto com o crucifixo
e desce o lance de escadas que o separa da porta da rua, a madeira rangendo a
cada passo dado.
A noite está terrivelmente feia, uma
dessas noites propícias para grandes crimes, para assassinatos sem testemunhas.
Ele caminha lentamente na rua como se
procurasse algo, levanta a gola do casaco para suportar a navalha de vento que
lhe rasga a nuca e vê a sua sombra ora se alongando ora dele se aproximando a
cada poste alcançado, na sua luz amarela com jeito de morgue.
O calçamento de pedras brilha, umedecido
pela neblina espessa e viscosa e a sua mente é um torvelinho confuso, a cabeça
cheia de imagens capazes de atentar o próprio fute, a mão apertando o crucifixo
e a chave com força, como se fossem dois talismãs.
Um guincho repentino e um ruído de latas
batendo contra as pedras do calçamento são os únicos sons que se interpõem à
sinfonia dos passos, e uma ratazana correndo em direção a um bueiro do outro
lado da rua quebra a paragem da cena.
Na esquina está à sua espera um vulto
que bem poderia ser humano, estático como um criminoso aguardando pela chegada
da vítima, mas é apenas uma árvore, esquálida e quase sem folhas. Enquanto
isso, ele segue resoluto em direção ao seu destino, apesar do seu destino...
A cidade dorme, embora não
completamente.
Reina o silêncio nos quartos de janelas
fechadas, nos bordéis de luzes prematuramente apagadas por falta de clientes,
nos bares vazios com mesas e cadeiras empilhadas, na praça do mercado onde caixotes
dormem amontoados uns sobre os outros, e também no cemitério malcuidado e arruinado
pelas ervas daninhas, embora haja movimentos de agonia no necrotério em anexo,
na chefatura de polícia, no leito quase frio de algum moribundo e no matadouro
público.
No céu não existe lua, e mesmo se
existisse o seu brilho teria sido sufocado pelo denso enevoado de chumbo que
circunda os quatro cantos da cidade. Em noites como estas nem os policiais saem
para além dos arredores da delegacia, nem as putas atrevidas se arriscam a
colocar o pescoço para fora da gaiola, nem os ébrios circulam, nem os loucos.
Apenas ele, de casaco roto e a mão no bolso segurando o tilintar abafado da
chave com o crucifixo – a outra mão segurando a valise com os dedos roxos –
segue sua caminhada em direção ao que lhe reserva o destino.
Por que ele, se outros dormem no calor
dos acolchoados, no abraço da amada, no abrigo de um litro de conhaque, no
albergue da Prefeitura?
Por que ele, por que somente ele tem que
caminhar desta forma e neste início de madrugada, resoluto, embora irresoluto,
cheio de ódio e cheio de dúvidas, os saltos de couro das botinas
pliqueplaqueando nas pedras como um sapateador, o barulho ecoando estranha e
lugubremente pelos cantos da noite, pelos becos escuros cheios de detritos,
pelas praças abandonadas cheias de árvores vazias, pelos canteiros ressecados
ao redor do chafariz que não funciona há anos?
Ninguém, nem mesmo um mendigo bêbado
cruza o seu caminho e a cidade parece crescer assustada e tensa dentro da
madrugada molhada e banhada pela luz turva das lâmpadas suspensas nos postes.
Nem um gato vagabundo e sem dono se
aventura a deixar o seu canto e vagar por esta madrugada com cheiro de enxofre.
E ele caminha em direção à saída, como
se a cidade tivesse saída, como se aquela rua agora sem calçamento que abafa os
seus passos e enlameia as suas botas de sola de couro pudesse levá-lo para
longe do seu fadário em vez de conduzi-lo para ele, mesmo arrastado, mesmo
sendo como que puxado por uma corda invisível com nódoas de terra e sangue, com
a força da tração da morte.
“Cling!” – bate a chave no crucifixo, ao
mesmo tempo em que uma espécie de carruagem puxada por dois cavalos cruza a
praça onde o chafariz seco conserva a poeira acumulada durante o dia com o
sereno da noite e seu ruído é infernal dentro do silêncio reinante, e a
carruagem, que surgiu do nada já desaparece no lado esquerdo da praça em
direção ao mercado provocando um repentino acender de luzes em dois ou três
edifícios antigos que têm hábitos noturnos de repousar em silêncio e se
sobressaltam pela barulheira que os afronta e incomoda.
Alguém abre a janela, olha para a praça
cheia de fantasmas, roga uma praga que ecoa feito um trovão e bate as folhas de
madeira com estrépito.
As luzes dos postes projetam imagens sem
movimento e sem nitidez e a neblina se torna mais densa e mais pegajosa.
SEGUE