sábado, 3 de fevereiro de 2018





A MACHADINHA

(Conto publicado no livro “À noite, todos os gatos” em 1998)

(Parte 1)

Ao badalar da meia-noite, ele se mira no espelho quase apagado pela luz fraca das quarenta velas que vêm da lâmpada incandescente sobreposta ao armário do quarto e vê seus olhos fundos e cansados, o cabelo em desalinho como sempre e a barba geralmente por fazer.
Ele caminha pelo cômodo único à procura dos seus pertences, uma pequena maleta com alguns apetrechos esparsos atirada num canto da cama e um pequeno crucifixo de metal escurecido que jaz sobre a mesa ao lado de uma bacia com água.
Faz frio. Ele veste uma camisa xadrez de flanela por sobre a camiseta de um branco encardido e depois um casaco já bastante usado por sobre a camisa, enfia o boné na cabeça, apanha a maleta e sai pela porta escura de madeira envelhecida levando no rosto a expressão dura e embrutecida e os olhos opacos dos desajustados, tranca a porta com uma chave presa a uma argola, que enfia no bolso lateral do casaco junto com o crucifixo e desce o lance de escadas que o separa da porta da rua, a madeira rangendo a cada passo dado.
A noite está terrivelmente feia, uma dessas noites propícias para grandes crimes, para assassinatos sem testemunhas.  
Ele caminha lentamente na rua como se procurasse algo, levanta a gola do casaco para suportar a navalha de vento que lhe rasga a nuca e vê a sua sombra ora se alongando ora dele se aproximando a cada poste alcançado, na sua luz amarela com jeito de morgue.
O calçamento de pedras brilha, umedecido pela neblina espessa e viscosa e a sua mente é um torvelinho confuso, a cabeça cheia de imagens capazes de atentar o próprio fute, a mão apertando o crucifixo e a chave com força, como se fossem dois talismãs.
Um guincho repentino e um ruído de latas batendo contra as pedras do calçamento são os únicos sons que se interpõem à sinfonia dos passos, e uma ratazana correndo em direção a um bueiro do outro lado da rua quebra a paragem da cena.
Na esquina está à sua espera um vulto que bem poderia ser humano, estático como um criminoso aguardando pela chegada da vítima, mas é apenas uma árvore, esquálida e quase sem folhas. Enquanto isso, ele segue resoluto em direção ao seu destino, apesar do seu destino...   
A cidade dorme, embora não completamente.
Reina o silêncio nos quartos de janelas fechadas, nos bordéis de luzes prematuramente apagadas por falta de clientes, nos bares vazios com mesas e cadeiras empilhadas, na praça do mercado onde caixotes dormem amontoados uns sobre os outros, e também no cemitério malcuidado e arruinado pelas ervas daninhas, embora haja movimentos de agonia no necrotério em anexo, na chefatura de polícia, no leito quase frio de algum moribundo e no matadouro público.
No céu não existe lua, e mesmo se existisse o seu brilho teria sido sufocado pelo denso enevoado de chumbo que circunda os quatro cantos da cidade. Em noites como estas nem os policiais saem para além dos arredores da delegacia, nem as putas atrevidas se arriscam a colocar o pescoço para fora da gaiola, nem os ébrios circulam, nem os loucos. Apenas ele, de casaco roto e a mão no bolso segurando o tilintar abafado da chave com o crucifixo – a outra mão segurando a valise com os dedos roxos – segue sua caminhada em direção ao que lhe reserva o destino.
Por que ele, se outros dormem no calor dos acolchoados, no abraço da amada, no abrigo de um litro de conhaque, no albergue da Prefeitura?
Por que ele, por que somente ele tem que caminhar desta forma e neste início de madrugada, resoluto, embora irresoluto, cheio de ódio e cheio de dúvidas, os saltos de couro das botinas pliqueplaqueando nas pedras como um sapateador, o barulho ecoando estranha e lugubremente pelos cantos da noite, pelos becos escuros cheios de detritos, pelas praças abandonadas cheias de árvores vazias, pelos canteiros ressecados ao redor do chafariz que não funciona há anos?       
Ninguém, nem mesmo um mendigo bêbado cruza o seu caminho e a cidade parece crescer assustada e tensa dentro da madrugada molhada e banhada pela luz turva das lâmpadas suspensas nos postes.
Nem um gato vagabundo e sem dono se aventura a deixar o seu canto e vagar por esta madrugada com cheiro de enxofre.
E ele caminha em direção à saída, como se a cidade tivesse saída, como se aquela rua agora sem calçamento que abafa os seus passos e enlameia as suas botas de sola de couro pudesse levá-lo para longe do seu fadário em vez de conduzi-lo para ele, mesmo arrastado, mesmo sendo como que puxado por uma corda invisível com nódoas de terra e sangue, com a força da tração da morte.
“Cling!” – bate a chave no crucifixo, ao mesmo tempo em que uma espécie de carruagem puxada por dois cavalos cruza a praça onde o chafariz seco conserva a poeira acumulada durante o dia com o sereno da noite e seu ruído é infernal dentro do silêncio reinante, e a carruagem, que surgiu do nada já desaparece no lado esquerdo da praça em direção ao mercado provocando um repentino acender de luzes em dois ou três edifícios antigos que têm hábitos noturnos de repousar em silêncio e se sobressaltam pela barulheira que os afronta e incomoda.
Alguém abre a janela, olha para a praça cheia de fantasmas, roga uma praga que ecoa feito um trovão e bate as folhas de madeira com estrépito.
As luzes dos postes projetam imagens sem movimento e sem nitidez e a neblina se torna mais densa e mais pegajosa.

SEGUE


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018





POEMA PAQUISTANENSE

(Baseado num poema paquistanês que foi declamado por Hammad Irfan Ghouri no idioma original em 02/02/2018 – e depois traduzido)

Olhei a minha musa lá no alto da janela
Nem mesmo a bela lua parecia ser tão bela
Pintei minha paixão com as cores da aquarela
E parti pro meu destino sem deixar de pensar nela

Tempos depois voltei, seu semblante ainda gravado
Procurei pela janela e só vi um acortinado
Ouvi então uma voz triste em um tom desafinado
Que chorava – “agora é tarde, não devias ter voltado!”
           








quarta-feira, 31 de janeiro de 2018






TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Epílogo)


Garçons corriam como galinhas espantadas. Carlino, o dono, pôs as mãos na cabeça, a senhora gorda desmaiou e o empertigado da calva pronunciada engasgou com o risoto de frutos do mar e estava azul de tanto tossir.
Levantei-me calmamente olhando para o semblante traquinas de Calcedônia que mirava o bilhete jogado sobre o prato regado a finas ervas e me dirigi à porta onde outra melindrosa artisticamente desenhada por entre os caixilhos sorria como Jacqueline Baker.
Dei a volta por detrás da máquina de café instantâneo – “crema caffè naturale funziona senza vapore” – enquanto via Fiordermundo enlouquecido como um lutador de “catch-as-can” sendo seguro firmemente pelo robusto porteiro e pelo maître, ainda berrando – “velhaco!”, “vagabundo!” – para o corpo inerte outrora belo lambuzado de crema di noci e mortalmente ferido, se não na sua saúde, pelo menos no seu orgulho.

-0-

De volta à calmaria das ruas, decidi que retornaria no dia seguinte para pagar a conta, isso se Carlino não computasse tudo por conta do prejuízo e pespegasse uma nota de despesas avolumada na conta do professor.
Decidi também que voltaria a procurar o professor depois desta ação de pugilato para voltarmos a conversar sobre assuntos não ortodoxos como os que regaram o nosso lauto almoço junto com os Valpolicella, Strega & Cia. e também para melhor observar suas reações de Homo sapiens, pois agora eu tinha certeza de que ele era realmente o tipo ideal para estrelar o meu próximo romance. É lógico que eu iria manter uma considerável distância de Calcedônia, que já mostrara do que era capaz em termos de provocar encrencas.
Passei pelo bilheteiro que continuava sentado ao lado da jardineira apreciando o cinza da tarde, pensando em de que forma os palpites podem acontecer no nosso dia-a-dia – o galo cantador, o leão indomável, o pavão presunçoso, a vaca gaiteira...
Isso posto, considerei com certeza que gato, cachorro ou macaco, eu tinha comprado o bilhete errado.   
   



  

terça-feira, 30 de janeiro de 2018





TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 4)

Fiordermundo me conta detalhes do estúdio onde guarda as suas moedas e seus livros linguísticos. É uma espécie de biblioteca toda fechada, com tapete persa, paredes revestidas com lambris de madeira de lei, escrivaninha com lâmpadas de leitura, gravuras e obras de arte – embora não originais – dependuradas aqui e acolá e uma imensa estante de mogno onde se abrigam centenas de livros e em cujo parapeito repousam conhaques, licores e vinhos.
Toda a cena rescende a Fiordermundo, mas destoa profundamente da personalidade de Calcedônia, cujo estúdio deve ser uma alcova alcatifada mesclando entre o rosa e o celeste onde ela guarda as suas joias, embora nem todas verdadeiras, forrada de paredes com espelhos tipo corpo inteiro, com um pechiché antigo adornado por um abajur com pedestal de anjo esculpido em mármore, estatuetas de miniaturas espalhadas a esmo e uma estante de cristal onde repousam perfumes, colônias, essências e estojos de pintura.
O garçom pergunta se aceitamos um Strega, ao que aquiescemos agradecidos.
O restaurante permanece lotado com pessoas entrando e pessoas saindo e um suave cheiro de especiarias e ervas rescende pelo ar.
O nosso belo vizinho solitário agora se delicia com um crema di noci com crema enquanto olha para o horizonte com o olhar satisfeito de quem acabou de garantir mais uma conquista amorosa – eu me refiro, é claro, à doce Calcedônia – e no íntimo se autocumprimenta, exultante.
Falamos agora sobre Ghandi e a sua enorme capacidade de catalisar a paciência, a persistência e a renúncia, rejeitamos como intelectuais civilizados que somos a violência barata que se espalha pelo mundo e o materialismo exacerbado que conduz o ser humano a extremismos inconvenientes e vemos com igual alegria a aproximação de Calcedônia, tão bela quanto tímida, tão provocante quanto donzela, tão burra quanto esperta, a bolsa segura pela mão direita e a mão esquerda fechada guardando um segredo, os lábios devidamente retocados, a elegância impecável e o ar de princesa.
Ela vem toda Bustamente, chega, para e ao invés de sentar-se permanece em pé ao lado da mesa como uma estátua de busto arfante, para nossa estranheza e curiosidade. Pousa a bolsa delicada sobre a toalha enxadrezada, entre o prato pouco consumido e a taça de vinho pela metade, abre a mão esquerda e apresenta aos olhos mal-entendidos e estupefatos de Fiordermundo o tal bilhete, agora totalmente desdobrado, no qual se lia – “298-6450, depois da duas – Damásio”, um bom palpite para procurar o bilheteiro na saída e comprar vinte frações do galo.
Fiordermundo ficou pálido, teve um estremecimento e olhou atônito para a expressão provocante e infantil de Calcedônia como se pedindo a sua autorização para tomar alguma providência. Calcedônia sorriu e um sorriso de inocência se estampou na sua face, lembrando mais do que nunca uma menina sapeca.
O belo Damásio da mesa ao lado dava as suas doces colheradas admirando o fino calcanhar da sua vítima, um fetiche gelado que, mal sabe ele, logo se transformará num acalorado pastiche em vez do esperado sanduiche de alguma tarde vindoura depois das duas.
Eu fico pensando em o que faria Ghandi numa situação embaraçosa como esta, pra não dizer constrangedora.
O professor olhou mais uma vez para o bilhete querendo não acreditar no que via e no que lia, olhou para mim como que pedindo ajuda, olhou para a esposa como se pedindo orientação, ela agora portando uma expressão desamparada. Ele pediu licença, cortesmente, limpou o canto da boca com o guardanapo branco com ornatos, guardou os óculos no bolso do paletó e levantou-se vagarosa, mas altivamente.
Foi em direção ao abestalhado Damásio e sem pestanejar ou pedir permissão desferiu-lhe um portentoso petardo na ponta do queixo com o punho direito, o atirando com cadeira e tudo contra a mesa ao lado, estragando o regabofe de uma gorda senhora  de colar de pérolas e de um empertigado senhor de calva pronunciada.
Gritos estremecem o restaurante, bolinhas de pérolas voam e rolam pelo chão, o resto do crema di noce foi temperar um cabrito à caçadora perfumado à sálvia e estragão.
Calcedônia agora se senta placidamente ao mau lado para melhor apreciar a cena e o conquistador fica estático, estirado no chão, com os olhos vidrados como se tivesse tido um ataque de estupor.
Fiordermundo berrava, apoplético e gesticulava como Otelo – “canalha!”, “patife!” – e, perdendo a compostura – “filho da puta”!”.
A confusão foi maior do que a minha noite chuvosa de Sûr les Alpes, um prato delicioso para o meu livro de memórias.

SEGUE



  

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018





TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 3)

Daqui a vinte anos, eu é que vou escrever as minhas memórias depois de juntar todas as baboseiras que determinaram o encadeamento da minha vida, vou registrar a barba e os óculos do professor – o que confere credibilidade.
Comecei a divagar e tendo a sua voz como fundo musical e a lembrar da soberba noite tropical em que eu vivi algum tempo atrás que também vou colocar no livro – aquela choperia de alta classe com mesas pelas calçadas como na Riviera Francesa, ao som de violinos e banhada à luz argêntea da lua, com o mudo de plantão distribuindo seu alfabeto de mesa em mesa para logo após tentar trocá-los por uns trocados, os garçons lépidos, os fregueses fagueiros, os copos suados e os corpos perfumados, a decoração suíça com um toque de Sûr les Alpes, e de repente a chuva inusitada de verão, surpreendente, forte e quente, fazendo pessoas e copos se levantarem numa debandada como num levante levantino, agora a choperia de fato banhada de argêntea água, todos correndo para o lado abrigado do bar – com licença, com licença – já não tão fagueiros – os garçons ainda mais lépidos recolhendo pratos e enxugando cadeiras molhadas com guardanapos.  
Estava fixamente atento à balbúrdia quando em meio à sarabanda surgiu o mudo da casa já desesperançado de correr atrás dos seus cartões, muitos dos quais já desciam a torrente que marginava a calçada como um batel em direção ao sumidouro.
Desanimado, o mudo se resignou a comer o seu sanduiche, cortesia da casa, e em sorver o seu refresco de maracujá e, sem pensar dias vezes, aboletou-se à minha mesa fazendo uma mesura desmesurada.
Seguiu-se um lento e doloroso diálogo (?!) sobre a chuva que veio estragar a beleza da noite e o seu mal rendoso negócio de cartões de surdo-mudo, nós, que entre mudos, bêbados, boêmios e escritores detestamos as surpresas das intempéries repentinas – estamos de acordo? – afinal, não sou lavoura para gostar deste pé d’água – e o mudo assentindo entre uma mordida e um gole – o que seria uma conversa surrealista se o meu mudo fosse também surdo, individualista por ser somente mudo, psicogênica se ele estivesse se negando a falar por causa de algum protesto ou notavelmente vigarista se ele fosse um pretenso mudo e estivesse se divertindo às minhas custas.
Fui despertado dos meus devaneios quando o professor emitiu um agudo um pouco mais forte enquanto gesticulava animado.
Vejo Calcedônia se levantar, pedindo uma licença muda como o meu mudo da choperia, apanhar a bolsa e se dirigir à toalete. Creio ter percebido um átimo em que o restaurante ficou em silêncio admirando aquela loucura que caminhava estudadamente como se acompanhada por um spot light.
O Rattus Norvegicus mexe o nariz inquietamente para equilibrar melhor os óculos, eu procuro me fixar melhor nos seus olhos cinzentos para acompanhar melhor a linha dos seus pensamentos, mas as íris me traem e acompanham discretamente as curvas da sua esposa com as cadeiras balançantes como num concurso de rainha do bairro.  
Percebo o olhar galante do macho da salata al salmone em direção à cândida Calcedônia, o que denotava um prelúdio de um interlúdio lúdico e lúbrico, enquanto o professor, de costas para a cena, discorria a respeito de filosofemas.   
Arrisquei-me a tecer conjeturas sobre a necessidade de publicar um best-seller e proclamar minha independência financeira, pois eu, mesmo em Henrique sendo, vou aos poucos empobrecendo e vou acabar tendo que arriscar a sorte na loteria – finalmente consegui mencionar o malfadado bilhete!
Fiordermundo fala alguma coisa sobre uma cimitarra de ouro que herdou de um velho tio, lógico que não no seu tamanho natural, mas uma mera miniatura, ao que eu sorri, não pela cimitarra, mas quando notei pelo meu faro de escritor de ficção, uma cena singular, que não era ficção: ao passar pela mesa do belo Petrônio que acabara de comer a sua torta salata al salmone, Calcedônia recebeu das suas mãos de unhas bem tratadas de cavalheiro um pequeno pedaço de papel dobrado.
Ela hesitou, entre o parar e o continuar, olhou levemente para trás e seguiu em direção à porta cujo painel mostrava o desenho de uma melindrosa estilizada.   


domingo, 28 de janeiro de 2018





TEMPEROS À ITALIANA

(Conto publicado do livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 2)

Foi então que tive a magnífica oportunidade de conhecer Fiordermundo e a bela Calcedônia, como sublinhado nas primeiras linhas destes temperos, um casal remanescente de algum filme de Visconti.
As apresentações foram feitas logo após o arrasta e puxa de cadeiras  - “Fiordermundo Hyppólito Bustamante, muito prazer...”, “Henrique Pena, por parte da mãe, Fortunato por parte do pai...), o prazer é meu...” – “...esta é minha esposa, Calcedônia...”) – “Cai o que?... – os olhos belos porém não muito expressivos me cumprimentam de volta com uma expressão atoleimada.
Depois foi o suave sentar-se à mesa, civilizadamente como exigem as etiquetas, para então começar a comer desbragadamente como dois ostrogodos falando das coisas da vida enquanto a linda esposa com jeito de donzela medieval divagava com o olhar perdido e a face resplandecente, o colo arfante de alvor marmóreo e o braço direito mostrando um discreto sinal de vacina já à altura do ombro.
Durante a nossa conversa eu omiti a compra do bilhete por considerar o assunto possivelmente prosaico demais para os interesses do meu novo amigo, embora tivesse a vontade enorme de lhe perguntar se na sua opinião de homem de larga experiência, um gato correndo atrás de um padre comunista de batina preta pudesse realmente significar cachorro – para mim, o mais apropriado seria macaco, pois é sobejamente sabida a ojeriza que os símios, especialmente os gorilas, têm por religiosos progressistas – mas o ambiente, o local e a cenografia Lehartiana não me pareciam apropriados para um tipo de elucubração a respeito deste reles e popularesco meio de enriquecer, de Henrique ser, muito embora, como dizia o filósofo Boris Yovanovich, “já que por meios racionais não conseguimos fazer fortuna...”.
Prossegui então na minha recatada gula enquanto Fiordermundo falava pelos cotovelos sobre a sua profissão – ele era professor de línguas e linguística com especialização em línguas mortas, o que me fez imaginar o porquê da expressão desalentada de Calcedônia e do seu olhar vazio pretextando desinteresse com seu colo ainda mais arfante, agora ligeiramente corado.    
Nas horas vagas ele cultivava a numismática como passatempo, e declarou possuir não apernas alguns dobrões de ouro, fruto de alguma pilhagem em alto mar, como também alguns sestércios e alguns rublos da época do Império. Eu disse a ele que preferia ouvir ópera, e ele se encantou.
Falamos então de Turandot e de Gianni Schicchi, de Mascagni e Loencavallo e finalmente entramos irremediavelmente no campo da linguística.
Quando lhe falei sobre a minha profissão de escritor ele me olhou com vivo interesse por sobre os óculos que se equilibravam fantasticamente na ponta do nariz e eram presos, por medida de segurança, a uma fina corrente dourada que passava por detrás do pescoço – e eu me divertia a imaginar o nefando par de óculos deslizando de vez rampa abaixo e indo mergulhar no molho de tomate com manjericão, mas ele tinha um talento espantoso para manter os óculos sob controle, parecia que portava calços sobre a base nasal ou controlava o movimento da haste por controle remoto.
Fiordermundo era o tipo ideal e pronto para enriquecer o meu próximo romance que versaria sobre um desaparecido político que na verdade havia sumido por conta própria aproveitando-se de uma ocasião propícia depois de assassinar o amante da jovem esposa e colocar a culpa na repressão policial através de bilhetes forjados, não da loteria, mas da sua própria fantasia.
Ele mantinha a conversa em níveis de alta intelectualidade e disse que apesar de ser professor – e aí discorreu sobre algumas especializações feitas em Lisboa e em Cuernavaca – nunca havia tentado a literatura, mas talvez algum dia tentasse escrever as suas memórias (quase perguntei como ele havia iniciado o seu entrevero com Calcedônia, mas achei o assunto mais inconveniente do que a história do gato que vira cachorro, ou macaco, dependendo do ponto de vista, e me calei como um padre confessor).
Calcedônia Bustamante nada falava e pouco comia, bebericava quando em vez o vinho e, desinteressada pelo assunto da nossa conversa, se comprazia em esticar os olhos para uma mesa próxima onde se sentava um belo espécime macho da raça humana, que tomava vinho branco e comia vagarosamente uma torta salata al salmone.