I REMEMBER KAFKA
Conto publicado no livro “O Fantasma da
FM” em 1992.
(Parte1)
Estou mudando de residência.
A reentrância do tubo de esgoto onde eu
mantinha o meu aprazível logradouro passou a não mais me satisfazer depois que
começaram a usar um produto detergente à base de amoníaco que me revolta as
vísceras e me afugenta e me atordoa os sentidos a cada banho tomado.
Na verdade, somos seres indefesos, sempre
à mercê dos homens que insistem em nos desbaratar à sua maneira, uma delas é
degradar a natureza com seus agentes químicos e desengordurantes, atacando até
as paredes dos sumidouros e também a camada de ozônio lá no alto, abrindo um
buraco para que algum dia o sol derrame toda a sua irradiação sobre a crosta do
planeta, aniquilando com a vegetação, fervendo a água dos mares e cozinhando os
peixes e crustáceos numa imensa caldeirada, derretendo cidades e assando vivos
bilhões de seres humanos além de transformar outros em mutantes radioativos.
Só nós, seres indefesos é que tentaremos
sobreviver nos aprofundando nas fendas e nas cavernas como temos feito nos
últimos milênios.
Mas mesmo assim estou mudando de
residência.
Achei um armário bem confortável de
madeira onde guardam cereais e farinha e lá não descobri vestígio algum de
veneno. Meu avô me ensinou que nós sempre devemos desconfiar de certas guloseimas
que nos parecem saudáveis, mas que escondem bioletrinas, butóxicos de
piperonitas e octibiciclohepteno – dicarboximidos na aparência de bolachas de
chocolate ou gelatina em pó.
Mas o avô vem de outra época, hoje todos
nós sabemos que ninguém é suficientemente imbecil para colocar estes tipos de tóxico
perto da própria comida, dentro de um armário cheio de maisena, arroz, orégano
e canela em pó, embora eu saiba perfeitamente que alguns deles são suficientemente
imbecis para ingerir o próprio tóxico em orgias desenfreadas e proibidas por
lei (mas este tipo de tóxico eles não guardam em armários de cozinha ou, se
assim o fazem, disfarçam muito bem para evitar o escândalo – isto é cocaína ou
araruta?), com a polícia farejando cada fresta de porta e cada salto de sapato
e cada fundo de gaveta à procura de evidências.
Aqui neste cantinho eu me sinto
confortável.
Aqui tem o agradável calor que provém do
fogão a gás bem à minha esquerda e as migalhas derramadas me servem de cama,
igual àquele gordo de camiseta que assiste televisão esparramado na poltrona
babando na sua lata de cerveja, apanhando punhados de amendoins com a mão
cabeluda e derramando sal e restos por toda a região circunferencial ocupada
por suas protuberâncias.
Nas noites de verão me arrisco a dar um
passeio pelo jardim para encontrar alguns amigos, discorrer sobre os perigos
desta vida e curtir o verde entre vagalumes e besouros e aquela flor perfumada
que dizem se chamar “dama da noite” e que nos faz ter a impressão de que este
mundo é realmente uma maravilha.
Às vezes faço minhas incursões pelos
intestinos da casa – tudo tão quente, abafado e escuro – como um engenheiro
inspecionando um abrigo antiaéreo, é por aqui ou mais embaixo que começa a se
reunir o nosso exército que algum dia ainda dominará o mundo, não importa a
guerra química de que somos vítimas nem a discriminação ou o comportamento que
as pessoas têm a nosso respeito.
É verdade que também temos nossos
inimigos, outro dia eu vi uma companheira acossada por um turbilhão de formigas
gigantes e nada pude fazer para defendê-la, para intimidar as malditas ou mesmo
para minorar o seu sofrimento. A cada ferroada um tremor de dor e de pavor,
morrer sim, que todos somos mortais, mas não devorado vivo, sem clemência ou perdão.
Mas a natureza que nos fez odiados e
repelidos foi a mesma que nos fez indefesos e inofensivos. Não atacamos, não
mordemos, não mutilamos nem devastamos o ecossistema, e talvez por isso sejamos
perseguidos como seres danados.
Na busca constante pela verdade e na
troca de experiências com a vida e com os outros seres vivos a gente a gente
aprende que a discriminação que nos aflige não atinge somente a nós, mas a
milhões de outros que são caçados e esmigalhados como se com isso fosse possível
destruir toda a nossa espécie de invertebrados.
Esses homens são tolos.
Nossa família é de certa forma
interminável, pois embora mortais na individualidade somos imortais na essência,
crescemos e nos multiplicamos progressivamente e acredito até que tenhamos uma
certa semelhança com Deus, por isso Ele não permite que sejamos dizimados até o
extermínio final.
SEGUE