O FANTASMA DA FM
(Conto publicado em 1992 no livro “O
Fantasma da FM”)
(Parte 1)
Todas as madrugadas ele aparece no
jardim da emissora, vindo do nada, trazido pelo vento, e passa por entre as
plantas cuidadosamente espalhadas pelos canteiros que estremecem à sua
aproximação, na aragem fria e úmida das duas horas.
Ele segue em direção à sala da recepção
protegida por uma imensa parede de vidro temperado e por um par de portas
também de vidro, que ele atravessa sem tocar, passa pelo porteiro semiadormecido
que fita a tela da televisão com os olhos fechados, vaga pelo corredor deserto,
sobe as escadas geladas por força do ar condicionado e vai espiar Adalgisa pelo
vidro retangular no alto da porta do estúdio.
O telefone toca seu ruído estridente no
silêncio da recepção e o porteiro enfim acorda, com a sensação desagradável de
que por ele passou alguém, tendo a incômoda impressão de que estivera dormitando
num banco duro de velório, pois as vozes saídas da televisão pareciam com os
sussurros daqueles que velam um morto no meio da noite, até que aparece um
anúncio berrante e fora de hora de uma loja de eletrodomésticos para acordá-lo
deste sonho estranho.
Ele olha para as portas fechadas à sua
frente e às suas costas e vê através do vidro as plantas se movendo do lado de
fora como se fosse um teatro de silhuetas, qual vultos de braços compridos e
pescoços esticados como demônios negros se aproximando, e um ligeiro tremor na
dobradiça da porta faz balançar toda a lâmina de cristal que lhe serve como
proteção enquanto a imagem da sala refletida também sofre um leve
estremecimento, assim como a sua própria imagem, ao mesmo tempo em que o
telefone continua a gritar.
Aristides é um porteiro noturno já
acostumado com os incômodos da madrugada, o cabelo negro eriçado emoldurando os
olhos pequenos agora ainda menores com o sono, e o bigode mal aparado se
apoiando no beiço superior, um verdadeiro receptáculo de espuma de cerveja ou
de coriza mal assoada.
Ele já devia estar acostumado com essas
noites mal acomodadas, a televisão ligada até a tela começar a chuviscar e
fazer “bzzzzz”, as plantas se movimentando no jardim e o telefone alfinetando o
sistema nervoso, mas cada plantão parecia ser o primeiro, com as mesmas más impressões
e os mesmos devaneios fúnebres.
Até que enfim ele atende o telefone,
muito a contragosto, e se depara novamente com aquela voz de criança que deseja
falar com a locutora lá em cima como o faz habitualmente apesar do adiantado da
hora, o que serve para irritar ainda mais o combalido Aristides e para livrar
Adalgisa dos seus fantasmas.
Ou então é aquela voz pausada e grave
que sempre pergunta as horas como se estivesse contando a sua contagem
regressiva em direção à foice inevitável. Essa voz nunca pede para falar com a
locutora, o que não deixa de ser um alívio para a coitada, que assim não
precisa de defrontar com aquela mensagem de além-túmulo e aquela voz de
ventríloquo.
-0-
Adalgisa está perdida lá em cima por
entre capas de discos, listas de programação e cartuchos com vinhetas e
mensagens comerciais, e vai cumprindo galhardamente com a sua missão noturna,
agradecida pelo telefonema do garoto que veio lhe fazer companhia com a sua
reconfortante e jovial presença e tingir a madrugada de cor-de-rosa até às seis
da manhã, quando o alvorecer irá trazer Ronaldo, o locutor que vem lhe
substituir abrindo a programação do dia injetando otimismo e bem-estar aos
ouvintes que começam a se espreguiçar para sair da cama tateando em busca dos
óculos sobre o criado-mudo e partir para o ensaboamento e o banho, para a
sagrada mijada matinal e para os cuidados que nos transformam em atores
cotidiano.
Ainda é fim de madrugada e no estúdio as
luzes permanecem baixas como numa catedral vazia e a programação segue quente –
Pink Floyd, Genesis, Led Zeppelin – na voz de veludo e na beleza dos vinte anos
de Adalgisa com a sua moreneza de olhos brilhantes e amenos e som seu sorriso
matreiro, enquanto olhos invisíveis a fitam, em êxtase.
De vez em quando ela tem um leve tremor
e vira o pescoço para trás na esperança de não ver aquilo que não quer ver,
alguma coisa espreitando pelo retângulo do vidro, a porta se abrindo lentamente
e a coisa avançando em silêncio, seu grito mudo de socorro alcançado apenas
pelos ouvidos surdos de John Lennon que sentencia “got to be good looking ‘cause he’s so hard to see...”, as luzes se apagando, Lennon emudecendo e aqueles olhos
rubros e incandescentes brilhando obscenamente no escuro e se aproximando, bem
como o arfar de uma respiração ofegante.
Ela sacode a cabeça, espanta o pesadelo
e se concentra novamente no microfone, o painel agora aceso “no ar” e a voz de
veludo transmitindo romance e encantamento ao som de Coleman Hawkins soprando
bonito “Body and Soul”.
Chegando a manhã, Adalgisa se vai com um
sorriso e um “bom dia!” para o companheiro que chega e Ronaldo se chega com um
sorriso e um “bom dia!” para a colega que vai, enquanto o fantasma se desvanece
no ar.
-0-
SEGUE