quinta-feira, 24 de março de 2022

 


A VERDADE E A  MENTIRA
(Augusto Pellegrini)

A mentira tem olhos azuis e um rosto angelical
Tem gestos que nos seduz e uma beleza sem par

A verdade, nua e crua, tem a cara bem fechada
Não inventa ou insinua nem tenta ser engraçada

Da mentira todos gostam, porque a verdade espanta
E pouca gente se importa se na verdade ela adianta

A verdade às vezes choca, mas a mentira alivia
Vive-se uma vida torta nesta espúria companhia

A mentira serve, às vezes, pra que outros sejam felizes
Ninguém gosta de reveses e nem aceita deslizes

A verdade às vezes dói, mentira tem perna curta
Vale a pena ser sincero ou mentir por causa justa?

Por outro lado, a mentira provoca a infelicidade
Quando mentimos a alguém com preconceito e maldade

Enquanto isso, a verdade, por mais amarga que seja
Busca por felicidade, por ser fruta benfazeja

Com os fatos distorcidos, a coisa vai, volta e vira
E nos deixa convencidos que este mundo é uma mentira

Enquanto a mentira berra, a verdade só sussurra
E o recado que isto encerra se ouve, mas não se escuta

Portanto, mesmo a mentira sendo coisa corriqueira
Devemos ser verdadeiros, não importa de que maneira
Construindo um mundo honesto sem trapaça ou bandalheira
Tendo a decência como alvo e boa-fé como bandeira

2018

 

terça-feira, 22 de março de 2022

 

                                  Na foto: Ataulfo Alves

COMO NASCEM AS CANÇÕES
(Augusto Pellegrini)
 

(Parte 4) 

Sempre vale a pena rever os registros de uma interessante sequência de músicas de Ataulfo Alves nascidas em virtude do romance que a cantora Carmen Costa (por quem Ataulfo era apaixonado) mantinha com um compositor menos famoso chamado Mirabeau Pinheiro.

As deliciosas provocações nunca passaram das noitadas de violão, embora chegassem a ser gravadas, inclusive pelos próprios Ataulfo e Carmem, num mesmo disco.

Entre as músicas, podemos citar algumas preciosidades de Ataulfo como “Pois É”, onde ele ironiza uma briga de Mirabeau e Carmen (“Pois é, falaram tanto / Que desta vez a morena foi embora / Disseram que ela era a maioral / E eu é que não soube aproveitar / Endeusaram a morena tanto, tanto / Que ela resolveu me abandonar...”), respondida pela própria cantora com “A Morena Sou Eu”, de Mirabeau e Milton de Oliveira (“Aqui você rirá dizendo a todos / Pois é, pois é, pois é / Quem sabe a quentura da panela / É a colher, é a colher / Chega o que ela já sofreu / Quem de vocês já conhece / Que a morena sou eu...”), que foi respondido magistralmente por Ataulfo com “Sai Do Meu Caminho” (“Eu nada lhe perguntei / Não há razão pra você me responder / A carapuça na cabeça não lhe cabe / Meu caso é outro / Eu bem sei que você sabe / Sai do meu caminho / Não estrague os dias meus / Deixe-me em paz pelo amor do Santo Deus / Pois a morena que eu falava na minha canção / É diferente da sua insinuação”).

As canções também podem nascer a partir de homenagens prestadas a músicos que partiram e fizeram falta, abrindo uma lacuna irreparável sentida por ouvintes, amigos e admiradores.                

Quando Francisco Alves morreu em 1952 num acidente automobilístico na Via Dutra – rodovia que liga Rio a São Paulo – houve uma comoção nacional. O cantor, verdadeiro ídolo da música popular brasileira estava no auge da fama, e acabou sendo objeto de inúmeras homenagens, como a prestada por Nássara e Wilson Batista com o samba “Chico Viola” (“Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira / todo o Brasil emudeceu / chora o mundo inteiro / o Chico Viola morreu...”). Na segunda parte da música, Wilson Batista relembrou seu antigo desafeto Noel Rosa, quando coloca Francisco Alves no mesmo patamar dele (“Na voz do seu plangente violão / ele deixou seu coração / partiu, disse adeus, foi pro céu / foi fazer, foi fazer / companhia pro Noel”).

O mesmo Noel também recebeu um tributo através do samba-canção “Escuta Noel” composto e interpretado por Maysa em 1957 (“Onde estás, Noel, que não escutas / Os plágios das tuas músicas / Que se ouvem por aí / Frequentaste tanto tempo academia de melodia / O samba não se faz por amizade ou simpatia /  O samba agora criou outro estilo / Sambista só sabe sambar pra granfino / E a favela agora é ponto de turista, de soçaite, de artista / A poesia acabou / Vem Noel, vem fazer a serenata / Tua música faz falta e ninguém nunca igualou”).

 

                                                             

                                               


                                                 PÁGINAS ESCOLHIDAS

O FANTASMA DA FM (1992)
(Augusto Pellegrini)

 O FANTASMA DA FM

Todas as madrugadas ele aparece no jardim, vindo do nada, trazido pelo vento, e passa por entre as plantas cuidadosamente espalhadas, que estremecem com a sua aproximação, na aragem fria e úmida das duas horas.

Ele se encaminha para a sala de recepção protegida por uma imensa parede de vidro e por um par de portas também de vidro que ele atravessa sem tocar, passa pelo porteiro semiadormecido que fita a tela da televisão com os olhos fechados, vaga  pelo corredor deserto, sobe as escadas geladas pela força do ar condicionado e  vai espiar Adalgisa pelo vidro retangular no alto da porta do estúdio.

O telefone da recepção toca seu ruído estridente dentro daquele silêncio, e o porteiro enfim acorda e tem a sensação desagradável de que por ele passou alguém e com a incômoda impressão de ter dormitado num banco duro de velório.
Do outro lado do vidro as plantas se movimentam ao vento qual vultos humanos de braços compridos num teatro de silhuetas, enquanto o telefone para de gritar.

No estúdio as luzes estão baixas como numa catedral vazia e os sons se alternam – Pink Floyd, Genesis, Beatles, Queen – na voz de veludo de Adalgisa.
De repente, um leve tremor e um par de olhos espreitando do lado de fora do retângulo envidraçado da porta que parece se abrir sem qualquer ruído, enquanto John Lennon balbucia “…you and me together, we are in our place…” e o sonho vai mais além – as luzes se apagam, Lennon emudece e a respiração fica ofegante.

Adalgisa balança a cabeça, espanta o pesadelo, volta a se concenrar no microfone com o painel vermelho indicando “NO AR” e a sua voz de veludo transmitindo romance e encantamento ao som de Coleman Hawkins soprando Body and Soul.

 

(A seguir, nosso próximo programa – “Jazz na madrugada”…)