segunda-feira, 30 de julho de 2018





RIO ANTIGO
(a visita do estranho poeta)
Parte 2

Veio a noite, eu estou com a televisão ligada falando para as paredes enquanto leio um delicioso livro – “A Lua Vem Da Ásia” de Campos de Carvalho – quando ouço um bater de palmas no portão.
Da porta da sala vislumbro a silhueta do meu novo amigo-poeta, faço-lhe a devida vênia e carrego com ele para a sala de jantar, onde meu filho e seu amigo confabulam sobre uma nova composição para a banda de pop-rock em que tocam.
Nonato Buzar é um universalista.
Para ele não existem jovens nem velhos, e as suas músicas mesclam irreverência, força e ternura, podendo ser apreciadas e tocadas tanto por um grupo de menestréis setecentistas como por uma banda de rock inconformista.
Ele pede uma dose de uísque e um violão.
Tudo à mão, é atendido com reverência e tem a seu dispor uma plateia atenta composta por três pessoas. Bebe a primeira dose como um retirante sedento e a segunda com um pouco menos de sofreguidão. Só então se lembra do gelo.
O uísque é de boa procedência – Chivas Regal 12 anos – ainda não havia sido inaugurado, e Nonato prova e aprova.
Entre um gole e outro, com pouca conversa, sucedem-se as canções, debaixo de um silêncio respeitoso e sob o olhar de quem flerta com o inesperado.

Eu estou no céu ou estou no carrossel
De pé pro ar, sou barquinho de papel
À beira-mar, sou criança outra vez
Vi você corar, no espelho sua saia levantar
Na montanha russa vi você gritar
E eu no banco de trás”

(“Dez Pras SeisNonato Buzar e Paulo Sérgio Valle)

“...Dizendo que eu devia vestir azul
Que azul é cor do céu e seu olhar também
Então o seu pedido me incentivou
Vesti azul, minha sorte então mudou
Vesti azul, minha sorte então mudou”
(“Vesti AzulNonato Buzar)

Nada pra fazer, apenas ver
Que a paixão chegou por causa de
você
Quando se descobre ser capaz de amar assim
É alma , é paz, é fim
 
(“Coração Na VozNonato Buzar, Nosly e Gerude)

Num dia igual a qualquer um
Eu despertei dentro de mim
Se fez manhã no meu viver
Se fez igual a terra e o céu
Amanheceu onde eu segui
Me despedi dos rumos onde andei

(“Assim Na Terra Como No CéuNonato Buzar, Paulinho Tapajós e Roberto Menescal)

Manhã despontando lá fora
Manhã, já é sol, já é hora
E os campos se abrindo em flor
Que é preciso coragem
Que a vida é viagem
Destino do amor

(“Irmãos CoragemNonato Buzar e Paulinho Tapajós)

 “...Camisa verde-claro, calça Saint Tropez
Combinando com o carango, todo mundo vê
Ninguém sabe o duro que dei
Pra ter fon-fon trabalhei, trabalhei

(“O CarangoNonato Buzar e Carlos Imperial)

“Menininha sai do portão
Vem também brincar
Vem pra roda, me dê a mão
Traz o seu olhar
Vou girando na roda
Vou cantando à sua espera
Quem me dera um dia ter seus olhos
Cor da primavera

(“Menininha Do PortãoNonato Buzar e Paulinho Tapajós)

Agora que você conhece Charlie Brown
Foi convidado a conhecer nossa nação
Achei legal e resolvi também tornar universal
E exportar mon ami João

(“Mon Ami João” – Nonato Buzar e Durval Ferreira)

“...Um pregão de garrafeiro
Zizinho no gramado, eu quero um samba sincopado
Taioba, bagageiro, e o desafinado
Que o Jobim sacou
Quero o programa de calouros com Ary Barroso
Lamartine me ensinando um lá-lá-lá-lá-lá gostoso
Quero o Café Nice
De onde o samba vem”
(“Rio AntigoNonato Buzar e Chico Anysio)

No silêncio da noite, entre goles e canções, apenas meia dúzia de palavras foram pronunciadas, embora o mestre falasse para si mesmo, os ouvintes não ousando quebrar o encanto da audição.
As palavras vinham com a música.
Fim de uísque, início de madrugada, o poeta se levanta, o semblante aliviado, mas cansado, e me agradece com um abraço e um cálido “boa noite”.
E vai de encontro ao alvorecer, seu parceiro de vida.
O violão, saudoso, repousa sobre a cadeira.
-0-
Nonato Buzar morreu no Rio de Janeiro, cidade que ele escolheu para viver, em fevereiro de 2014 com 81 anos.  Deixou muitas saudades e um livro de crônicas que eu não li – “Planeta Neus”.
E deixou também um vazio na cadeira bem ao lado do meu computador, junto à mesa que ainda recende ao uísque generosamente derrubado naquela noite de festa.
In memoriam.