EU
E A MÚSICA
YEAH,
THE BLUES!
Augusto Pellegrini
(o
Brasil no circuito mundial dos festivais)
Parte
4
Boa parte das histórias ouvidas nos bastidores do Festival acabaram se tornando
descartáveis, e serviram apenas para
ilustrar alguns dos meus programas radiofônicos, mas uma conversa, em especial,
ficou registrada, posto que histórica.
Bo Diddley, nascido Ellas Otha Bates, tinha sessenta e dois anos na ocasião do
festival, embora aparentasse mais.
Ao contrário da maioria dos artistas presentes, que esbanjavam vitalidade,
Diddley mantinha uma atitude melancólica, cansada e pouco sorridente, embora aparentemente
tudo corresse sem qualquer problema na turnê blueseira.
Bo Diddley era o “low profile” que
não combinava com a vibração do evento.
Cantor, guitarrista e compositor (suas músicas eram assinadas como Ellas
McDaniels), Bo Diddley com sua guitarra quadrada foi talvez a figura mais emblemática
do festival. Ele se constitui num dos elos mais importantes de um tipo de
música que uniu o blues ao rock and roll e influenciou, entre
outros, os astros Buddy Holly, Jimi Hendrix, Eric Clapton e Elvis Presley, além
de Beatles e Rolling Stones. O que não é pouco.
Foi exatamente a menção a Elvis Presley que esquentou o assunto e soltou a
língua do velho bluesman.
Apesar de ser mundialmente reconhecido como um dos maiores artistas do blues e do rhythm & blues, Bo Diddley reclamava que a sua carreira poderia
ter sido muito mais bem sucedida se alguns produtores de discos e de shows não
tivessem interferido de forma tão negativa e decisiva no seu desenvolvimento.
Ele, Diddley, teria sido o pioneiro a mostrar nos palcos a famosa performance
do “rebolado do rock and roll” que se
imortalizou com Elvis “The Pelvis” e que
o público pudico dos anos 1950 considerava obscena e atentatória aos bons
costumes (mas os jovens rebeldes sem causa simplesmente adoravam).
“Possivelmente”, prosseguiu Diddley,
“tenha sido um outro negro, Chuck Berry,
quem realmente iniciou aquele tipo de dança lasciva, mas Berry podia ter tudo –
ritmo, drive, empolgação – mas não conseguia passar para o público nem um pingo
de malicia ou de sensualidade. Chuck era mais feio do que eu”. E riu, pela
primeira vez durante a nossa conversa.
Na sua própria descrição, Bo Didley era negro, feio e não tinha a estatura
necessária para estar dentro dos padrões de beleza universalmente aceitos. No
entanto, a novidade deste tipo de dança na nova música era tão empolgante que os
produtores de shows decidiram que o rebolado devia ser incrementado por algum
outro cantor, desde que fosse branco, bonito, atlético e sensual.
Assim, nos meados dos anos 1950, Bo Diddley foi descartado e caiu no limbo do rock and roll, derivando seu talento
para uma área com menor apelo mercantil, o
blues.
Os produtores saíram então em campo à cata do homem com o biótipo ideal que
tivesse o DNA para vender discos e aguçar o espírito da juventude, e
descobriram um jovem cantor e guitarrista natural do Mississipi que estava
fazendo um relativo sucesso no rádio e na televisão cantando uma espécie de ballad-country e de rock-blues.
Seu nome era Elvis Presley, ex-motorista de caminhão que estourou para o grande
público com o blues “That’s All Right Mama” (Arthur Crudup) e
“Blue Moon Of Kentucky” (originalmente
uma valsa escrita em 1946 por Bill Monroe), músicas que receberam um tratamento
diferente por parte do guitarrista Scotty Moore e do baixista acústico Bill
Black, nascendo daí – junto com o trabalho de outros pioneiros – o estilo “rock-a-billy”, uma fusão da country music com o rhythm & blues.
O rebolado pra valer começou em 1957 com “Jailhouse
Rock” e “King Creole” (ambas de
Jerry Leiber e Mike Stoller), depois de uma série de baladas românticas, que no
futuro iriam se constituir no ponto alto das suas interpretações – como “Love Me Tender” (George R.Poulton, W.W.
Fosdick e Ken Darby) e “Lovin’ You” (Jerry Leiber e Mike
Stoller).
De acordo com Diddley, foi nestas circunstâncias que os produtores “roubaram” a sua ideia e que
um eventual título, “The King of Rock‘n’Roll”, lhe teria sido
usurpado.
O depoimento histórico foi encerrado abruptamente com a chegada de alguém da
produção convocando Diddley para uma foto, a pedido de um repórter. Não tenho certeza, mas ficou a impressão de
que sobrou no rosto do velho bluesman
um certo ar de alívio quando ele se despediu de mim, o que provavelmente
acontecia por quase quarenta anos sempre que seu coração se abria para algum
desconhecido.