O
TIO E A TIA
(Parte Dois)
E lá saímos em direção ao campo, caminhando em fila indiana, o tio na frente com a lanterna, eu no meio e a tia atrás, a me proteger.
O céu estava escuro, acho que vai mesmo chover, e a gente caminha resoluto em direção à casa da velha. O silêncio do campo é cortado pelo som de aves que guincham e batem asas - devem ser as tais corujas agourentas.
A caminhada é breve e não chega a cansar apesar do terreno irregular e estreito, a casa da dona Hermília fica mesmo logo depois do descampado com o mato fora da trilha batendo nas canelas.
Logo chegamos ao nosso destino e eu fico absorto a contemplar as chamas de um fogão à lenha onde ferve pacientemente uma chaleira com água enquanto outra velha muito magra me observa com um olhar curioso.
Poucas palavras são trocadas e faz-se um respeitoso silêncio enquanto a tia sussurra alguma coisa - um sortilégio ou uma oração – com os olhos semicerrados, quase sem mexer os lábios.
Dever cumprido, injeções, conselhos, curativos e agradecimentos, eis-nos de volta.
No meio do campo, afastado da trilha por onde caminhamos, vê-se na distância uma pessoa vestida de branco. Na caminhada, nos aproximamos e percebemos que é um homem, parece um militar e chega a brilhar na escuridão da noite. Está imóvel, como uma sentinela, e não responde ao cumprimento do tio – “boa noite!” – que, nervoso com a mudez do outro, acende mais um cigarro e segue em frente, resmungando.
Olho para trás uma, duas vezes, e o homem ainda está lá, impávido. Na última olhada não o vejo mais, ninguém o vê mais, sumiu como um inseto noturno se escondendo no capim crescido, sumiu como se tivesse sido tragado pelo mato do campo. Já estávamos distantes do local da imagem, mas mesmo assim prudentemente estugamos o passo.
Sem maiores aventuras chegamos enfim em casa, nos desfizemos dos apetrechos de viagem e entre um comentário e outro e uma caneca de leite quente o tio e a tia finalmente me convencem a dormir.
O sono custa a chegar, mas quando chega é como uma cortina escura que me protege do mundo, dos temores e do cansaço da caminhada noturna.
-0-
Manhã seguinte, sol a pleno e som de batida de palmas no portão, junto à cerca de madeira ornamentada por flores silvestres. Zezinho latindo, alvoroçado.
É a vizinha, comentando a plenos pulmões: “Dona Irene, a senhora já soube? Mataram um soldado ontem à noite, no campo. Uma facada no coração!”