UMA AVENTURA DE NATAL
Nem bem tinha fechado os olhos quando
o relógio o despertou.
Dez da noite.
O sono lhe fora pesado e curto.
Os dias de tensão, as noites de
vigília, a semana inteira ordenando as idéias, cigarro após cigarro pensando na
noite de Natal, na importância da noite de Natal, no presente de Papai Noel.
O tilintar do relógio despertador lhe
pareceu o badalar de sinos dentro da caixa craniana, o sobressalto lhe
assaltando, a adrenalina concentrada, os nervos em pandarecos.
Mas tinha que se controlar. Não era
hora de ficar nervoso, o Natal está a poucas horas, a vestimenta de Papai Noel
lhe está sorrindo, acenando e pedindo calma.
Pensou em ficar ainda mais um pouco
deitado, dormitando, bem agora que o corpo havia encontrado a posição ideal,
nenhum mosquito pra incomodar, aquela preguiça, aquela lassidão.
Mas não podia, queria mas não podia, o
dever gritava nos seus ouvidos – hoje é noite de Papai Noel!
Ergueu-se como uma mola.
Se continuasse deitado iria dormir de
novo, iria perder a hora e então, adeus sonho, adeus Papai Noel.
No canto, amarfanhada, a roupa
vermelha e a ridícula barba branca.
Pensou se não teria sido mais fácil
ter deixado crescer a própria barba, embora negra e hirsuta, e depois pintá-la
ou passar água oxigenada nos pelos grossos, mas a idéia lhe foi repugnante.
Dentro da cabeça a expectativa
crescendo, tremendo, fremindo, nesta noite de pura emoção. Outro cigarro aceso.
Lá fora, a grande noite, o céu
estrelado, o vento brando, alguns foguetes espocando aqui e ali, prenúncio de uma
grande noite de Natal.
Aqui, a túnica vermelha com alguns
fios esgarçados pelo uso, os apliques brancos, a bota preta precisando de uma
demão de graxa. No canto, dependurada num prego na parede, a barba branca
continuava sorrindo aquele sorriso sem boca, aquele sorriso de Papai Noel.
Aos trinta e dois anos, mais do que
nunca, acreditava em Papai
Noel.
E nunca Papai Noel lhe fora tão
importante, nunca marcara sua vida com tanta tinta como nesta noite de Natal,
como uma pintura impressionista.
Agora não era mais um simples e puro
sonho de criança, aquele encanto de ficar acordado até que lhe aparecesse o
presente, o pacote cheio de laços, a surpresa envolta em papel de seda e
celofane crepitante, aquela bobagem de renas puxando o trenó, de chaminés, a
meia dependurada na árvore e o sapato na janela.
Agora era real, era vestir a fantasia,
colocar a barba, enfiar o capuz até o meio da testa, calçar as botas um número
mais largas, apanhar o saco cheio de coisas e partir para a maior noite da sua
vida.
Primeiro vestiu a calça fofa, depois
enfiou as botas e os dedos dançaram naquele espaço imenso. Depois a túnica.
Havia uma mancha de gordura bem do lado esquerdo, foi aquele Papai Noel da
lanchonete da última quarta-feira, aquele menino gordinho que deixou cair maionese
daquele maldito cachorro quente – onde já se viu comer cachorro quente com
maionese?, isto é coisa de americano.
Foi ao espelho e, com muito cuidado
começou a colocar a barba, amarrada de um lado e colada de outro, puxa, não
sabia que isto era tão complicado!, o nariz parecendo mais vermelho e
finalmente o sorriso branco, confiante e feliz.
Agora o capuz. Tomara que não vá
atrapalhar, com aquele pom-pom grotesco balançando na ponta – ele continuava
achando absurdo alguém usar este tipo de chapéu, nem o verdadeiro Papai Noel
com seus mil e seiscentos anos de idade dirigindo seu trenó e suas renas pelas
planícies geladas da Lapônia, nem o próprio Polichinelo.
Olhou as horas.
Analisou o conteúdo do saco. Tudo
certo.
Olhou novamente para o relógio.
Onze e trinta e cinco. Lá fora um
cachorro late, e surge um som ruidoso de canções de Natal com harpa paraguaia,
meio fora de moda, gosto duvidoso.
Está na hora de sair.
Puxa o saco não tão pesado para os
ombros, levanta os olhos para o teto como se mirasse a abóboda da Capela
Sistina, como se pedisse aos céus que esta noite fosse, de fato, a noite mais
feliz da sua existência.
Aproxima-se da porta.
Então, o vendaval.
A porta se abre para dentro com um
estrondo, o mundo desabando sobre a sua cabeça, as estrelas da Sistina dançando
ao seu redor, homens gritando, armas, mãos para o alto, “quieto, se não quiser
morrer!”
Papai Noel com as mãos na parede,
somente agora ele notou que tinha se esquecido de calçar as luvas, os olhos
esbugalhados, o suor escorrendo por dentro da barba, o rim doendo pela pancada
da coronha bem manejada, no rosto o ríctus doloroso.
“Tá preso, assaltante safado!”
O plano havia sido descoberto.
No chão, o saco revirado mostra
algumas ferramentas, algumas folhas de jornais velhos, uma pistola trinta e
oito, dois rolos de esparadrapo, uma bomba caseira de má fabricação e seu amuleto
da sorte, uma ferradura de verdade com uma fita vermelha amarrada num dos
furos.
O cachorro ainda late, mas agora se
ouve o Messias de Haendel.
Bate a meia-noite na noite de Natal.
Sinos repicam marcando a hora da Missa
do Galo, o movimento é pequeno, mas sente-se no ar um certo burburinho, como se
estivéssemos dentro de uma garrafa de champanhe.
Na esquina, próxima ao Banco
imponente, todo revestido de mármore preto, um rapaz está encostado ao poste.
Ajeita o boné para frente e enfia a mão no bolso, nervosamente. Olha para os
lados atentamente, como um gato.
A uns cem metros, ao lado de uma placa
de estacionamento proibido, junto ao meio-fio pintado de amarelo, dentro de um
carro escuro, dois homens se questionam – “não está na hora? – e fumam
impacientes, a fumaça toldando o espelho retrovisor.
Em frente ao Banco passa vagarosamente
um outro rapaz, disfarçando alguma coisa, olhando para os lados, ansioso.
Consulta o relógio sob a luz do poste, os sinos batem, os ponteiros se
encontram.
Todos estão esperando por Papai Noel.
Ao longe, os sinos continuam
repicando, se confundindo com o som da sirene que se aproxima.