quinta-feira, 23 de janeiro de 2020






A MACHADINHA  
(Segundo Excerto)

Antes do alvorecer, ouvem-se passos descompassados como um coração em sobressalto. Os passos vêm das ruas mal calçadas do outro lado da cidade e a esta altura alcançam o chão pavimentado com pedras, onde algum dia as carruagens deixaram a sua marca tão forte que até hoje sente-se nos ouvidos o poc-potoc das patas dos cavalos.
Alguém  deixou a luz do quarto acesa, e a janela embaçada pela névoa cinzenta parece uma lua irregular e impressionista dependurada no alto da praça.
Ele cambaleia levemente por causa de algum passo em falso, se recompõe, passa pelo chafariz sem vida e olha para o alto onde a janela teimosamente acesa começa a formar um quadro com o escuro do céu já não tão negro, emprestando devagar as cores do alvorecer. Depois, passa pelos becos onde latas de lixo se confundem com insetos e ratos que não dormem.
Penosamente o caminhante alcança o prédio onde mora, abre a porta pesada que geme nas dobradiças  e sobe lentamente um lance de escadas cuja madeira range pelo peso do tempo.
Entra enfim no seu aposento singular, exausto como um sodado batendo em retirada, trêmulo como um assassino compulsivo, arfante como quem cumpriu penosamente com o seu dever.
Joga a valise e o boné num canto, tira o casaco e mostra uma camiseta encardida e manchada se sangue. Há um rasto escarlate também no seu rosto suado, tisnando a barba mal feita.
Senta-se pesadamente ao pé da cama e olha para o chão em direção às botinas enlameadas, depois ergue os olhos e se depara com a bacia da ágate cheia de água onde vai lavar os seus pecados.
Está farto das madrugadas sombrias e do cheiro da morte.
Estia farto de tanto sangue, do gemido surdo, da faca afiada, do rasgar de ventres e da machadinha a dilacerar ossos, está farto da sua sina.  
Ainda pela manhã ele vai ao escritório do frigorífico no qual trabalha para pedir demissão do serviço penoso que faz há anos como magarefe no matadouro da cidade, todas a noites decepando membros, sangrando e esfolando bois.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020





DESCANSO 

(Bossa composta por Augusto Pellegrini lá pelos anos 1960)

Descanso
É gostoso de ver
As nuvens brincando
E figuras formando
Bem alto, no alto do céu
Não penso
Quero fugir da vida
Como o dia perdido
No qual eu fugi de ti

Morreu o sol
Escurece depressa
Igual ao momento
Em que escureceu
No dia sem luz que eu vivi
Desperto
Meu descanso não era
Era sonho, quimera
Eu não fujo, eu não posso fugir


domingo, 19 de janeiro de 2020





POEMA FELIZ
(Augusto Pellegrini)

Felicidade foi-se embora
Escapuliu pela janela
De uma casa pequenina
Pois você não estava nela

Ela é leve como a pluma
Levada ao leu pelo vento
Não para de forma alguma
Inquieta a cada momento

E também brilha no ar
Como se fosse uma estrela
Só quem não percebe o brilho
É aquele que não quer vê-la

A felicidade existe
É só uma questão de ter
É viver na companhia
Daquele que se quer bem

Trechos de felicidades
Extraídos da algibeira
De Seu Jorge, Arlindo e Lupe
Janeci, Fabio e Moreira

São poetas que retratam
Felicidade sem fim
Versejada por Toquinho
Vinicius e Tom Jobim

Felicidade é um momento
O espocar de uma centelha
Mas pode ser bem marcante
E durar a vida inteira

Basta você regressar
Pra mim, naquela casinha
Que a felicidade volta
Para ser minha, todinha

Janeiro 2020