quinta-feira, 7 de janeiro de 2016








EU E A MÚSICA - RIO ANTIGO
(a visita do estranho poeta)
(Revisado – anteriormente publicado em 24/12/2014)

Quero um bate-papo na esquina
Eu quero o Rio antigo com crianças na calçada
Brincando sem perigo
Sem metrô e sem frescão

O ontem no amanhã...”
(“Rio Antigo” – Nonato Buzar e Chico Anysio)

De repente o poeta surgiu do nada.
Não me conhecia, foi-me apresentado – “este é Augusto Pellegrini, faz um programa de jazz aqui na rádio” – e parece que não prestou muita atenção.
Aliás, a rigor ele dava a impressão de que nunca prestava atenção em nada, pois seus sentidos estavam mais ligados no irreal, no surreal, no abstrato, de onde lapidava as suas frases, seus pensamentos e os seus acordes.
Sua filosofia de vida.
O poeta estava triste, havia morrido seu irmão, me contaram, e ele deixara o habitat que escolhera, a cidade do Rio de Janeiro, para cumprir com seus deveres fúnebres em São Luís e, depois de fazê-lo, resolveu procurar os amigos.
Como era dia, foi a uma emissora de rádio e depois às ruas do Centro velho; fosse à noite, talvez os procurasse pelos bares das quebradas.
O poeta não era só poeta.
Cantor, compositor e produtor musical, nascido em 1932 no interior do Maranhão na pequena Itapecuru-Mirim (naquele tempo, muito pequena), Raimundo Nonato Buzar foi brilhar no Rio, para onde viajou aos 21 anos num verdadeiro mergulho no meio do desconhecido.
Na verdade, sua intenção era estudar Engenharia, mas a magia envolvente da Cidade Maravilhosa falou mais alto e ele acabou contagiado pela música, que se transformou no seu projeto de vida. 
Fez seu debut nas noites cariocas cantando e tocando as suas composições nos bares da moda – Bottle’s e Little Club – e logo teve o seu talento reconhecido por dezenas de artistas e frequentadores da noite, e também por proprietários de casas noturnas, diretores de gravadores e produtores artísticos. E pelo público, que lotava as casas onde ele se apresentava.
Nonato Buzar compôs um total de 162 canções, tanto solo como ao lado de parceiros como Paulo Sérgio Valle, Ronaldo Bôscoli, Carlos Imperial, Chico Anysio, Chico Feitosa, Torquato Neto, Nelson Motta, Paulinho Tapajós, Roberto Menescal, Durval Ferreira, Rosinha de Valença, Orlandivo, Tibério Gaspar, João Nogueira, Nosly, Gerude ou Rogeryo du Maranhão. 
Em nível nacional, teve suas músicas gravadas por Maysa, Alcione, Elis Regina, Elizeth Cardoso, João Nogueira, Nana Caymmi, Cauby Peixoto, Jair Rodrigues, MPB4, Wilson Simonal, Silvio César, Erasmo Carlos, Rosinha de Valença, Luiz Gonzaga, Ivan Lins, Milton Nascimento, Nelson Gonçalves e Ithamara Koorax (cuja gravação de “Vesti Azul” feita em 2012 num álbum chamado “Got To Be Real” foi “top ten” na Europa por ocasião do lançamento).
Nonato Buzar também atacou de produtor, sendo responsável na RCA Victor por discos de Jair Rodrigues, Wilson Simonal, a Turma da Pilantragem, Regininha e Jimmy Cliff e também por um álbum que registrou o Festival Internacional da Canção, um concurso de músicas criado por Augusto Marzagão para a TV Globo entre os anos 1966 e 1972.
Além de ter chegado às paradas europeias com “Vesti Azul”, Nonato compôs um punhado de temas de abertura que se popularizaram em novelas de televisão – “Verão Vermelho”, “Irmãos Coragem” (com Paulinho Tapajós), “O Homem Que Deve Morrer” (com Torquato Neto), além de outras músicas para as novelas “O Cafona”, “Minha Doce Namorada” e “Anjo Mau”.
Compôs temas para outros programas de tevê – “Chico City”, “Brasil Pandeiro”, “Saudade Não Tem Idade” e para filmes diversos – “O Donzelo” e “Aventuras De Um Detetive Português”.
O poeta, simples como um detalhe da natureza, não era pouca coisa não, mas não vivia sobre seus louros. 
Sujeito estranho, mas simpático, quando chegava ao Maranhão, seu feudo, desdenhava completamente a aura do sucesso obtido lá fora, e curtia os bares do Mercado Central e as barracas da Ponta D’Areia com a mesma disposição que curtia os bares e a praia de Copacabana, cultivando amigos e novos amigos com o mesmo desprendimento e a mesma afeição.
Depois de cinco minutos de conversa nos corredores da emissora, ele me confidenciou que devido ao seu luto familiar não se sentia animado para cair na farra quando chegassem as tentações da noite, pois sabia que se encontrasse a turma da boemia nos bares da vida, a coisa iria inexoravelmente descambar para tal.
Pediu, então, meu endereço e prometeu me fazer uma visita, para espairecer um pouco, posto que tinha passagem marcada de volta para o Rio na manhã seguinte.
Passei o endereço e as referências – “aquela rua do supermercado, na esquina do posto de gasolina, depois de um muro amarelo cheio de pichações” – e ele anotando tudo mentalmente, sem maiores problemas, numa cidade que conhecia muito bem.
Veio a noite, eu estou com a televisão ligada falando para as paredes enquanto leio um delicioso romance de Campos de Carvalho – “A Lua Vem Da Ásia” – quando ouço palmas no portão.
Da porta da sala vislumbro a silhueta do meu novo amigo-poeta, faço-lhe a devida vênia e carrego com ele para a sala de jantar, onde meu filho e seu amigo confabulam sobre uma nova composição para a banda em que tocam. Pop-rock.
Nonato Buzar é universalista.
Para ele não existem jovens nem velhos, e as suas músicas que mesclam irreverência, força e ternura tanto podem ser apreciadas e tocadas tanto por um grupo de menestréis setecentistas como por uma banda de rock inconformista.
Ele pede uma dose de uísque e um violão.
Tudo à mão, é atendido com reverência e tem a seu dispor uma plateia composta por três pessoas. Bebe a primeira dose como um retirante sedento e a segunda com um pouco menos de sofreguidão. Só então se lembra do gelo.
O uísque é de boa procedência – Chivas Regal 12 anos – e ainda não havia sido inaugurado.
Entre um gole e outro, com pouca conversa, sucedem-se as canções, debaixo de um silêncio respeitoso e sob o olhar de quem flerta com o inesperado.

“...Eu estou no céu ou estou no carrossel
De pé pro ar, sou barquinho de papel
À beira-mar, sou criança outra vez...

(“Dez Pras SeisNonato Buzar e Paulo Sérgio Valle)

“...Dizendo que eu devia vestir azul
Que azul é cor do céu e seu olhar também
Então o seu pedido me incentivou...

(“Vesti AzulNonato Buzar)

“...Nada pra fazer, apenas ver
Que a paixão chegou por causa de
você
Quando se descobre ser capaz de amar assim...
 
(“Coração Na VozNonato Buzar, Nosly e Gerude)

“...Num dia igual a qualquer um
Eu despertei dentro de mim
Se fez manhã no meu viver
Se fez igual a terra e o céu...

(“Assim Na Terra Como No CéuNonato Buzar, Paulinho Tapajós e Roberto Menescal)

...Manhã despontando lá fora
Manhã, já é sol, já é hora
E os campos se abrindo em flor
Que é preciso coragem
Que a vida é viagem
Destino do amor...

(“Irmãos CoragemNonato Buzar e Paulinho Tapajós)

 “...Camisa verde-claro, calça Saint Tropez
Combinando com o carango, todo mundo vê
Ninguém sabe o duro que dei
Pra ter fon-fon trabalhei, trabalhei...

(“O CarangoNonato Buzar e Carlos Imperial)

“...Vem pra roda, me dê a mão
Traz o seu olhar
Vou girando na roda
Vou cantando à sua espera
Quem me dera um dia ter seus olhos
Cor da primavera...

(“Menininha Do PortãoNonato Buzar e Paulinho Tapajós)

“...Agora que você conhece Charlie Brown
Foi convidado a conhecer nossa nação
Achei legal e resolvi também tornar universal
E exportar mon ami João..
.”
(“Mon Ami João” – Nonato Buzar e Durval Ferreira)

“...Um pregão de garrafeiro
Zizinho no gramado, eu quero um samba sincopado
Taioba, bagageiro, e o desafinado
Que o Jobim sacou...”
(“Rio AntigoNonato Buzar e Chico Anysio)

No silêncio da noite, entre goles e canções, apenas meia dúzia de palavras pronunciadas, embora o mestre falasse para si mesmo, os ouvintes não ousando quebrar o encanto da audição.
As palavras vinham com a música.
Fim de uísque, início de madrugada, o poeta se levanta, o semblante aliviado, mas cansado, e me agradece com um abraço e um cálido “boa noite”.
E vai de encontro ao alvorecer, seu parceiro de vida.

-0-

Nonato Buzar morreu em fevereiro de 2014 com 81 anos no Rio de Janeiro, cidade que ele escolheu para viver.  Deixou muitas saudades e um livro de crônicas que eu não li – “Planeta Neus”.
E também um vazio, na cadeira bem ao lado do meu computador, junto à mesa que ainda recende ao uísque generosamente derrubado naquela noite de festa, in memoriam.