sábado, 2 de setembro de 2017




OS SAPATOS DO SENADOR
(QUARTA PARTE – FINAL)

O senador foi comemorar a sua posse no Automóvel Clube profundamente contrariado com o mistério dos sapatos desaparecidos, mas como a noite era de festa, ele logo desanuviou. As conversas com os aliados e a expectativa de conseguir adesões entre os opositores cuidadosamente escolhidos para o evento funcionavam como um perfeito afrodisíaco, e o mistério do desaparecimento dos sapatos passou para um segundo plano.
A filha mimada – e um pouco desmiolada, ponderava ele, com desprazer – havia trazido um namorado novo para a festa, mas ele prestou pouca ou nenhuma atenção no rapaz porque isto não acrescentava nada no seu projeto político. Além do mais ele sabia que o rapaz seria mais um a ser descartado tão logo a paixão de Danielle pelo brinquedo arrefecesse e surgisse um brinquedo novo.
Num determinado momento do coquetel, Dani foi ao jardim trocar ideias com algumas amigas, assim poderia ouvir as primeiras impressões que a ala feminina estava tendo do seu príncipe encantado.
Ancelmo ficou sozinho e à vontade para conhecer melhor o ambiente e paquerar de leve algumas garotas e também algumas madames que ele achou “interessantes”, sozinhas e descartadas num canto do salão, enquanto seus maridos mais faziam confabulações do que propriamente se divertiam – essa era a tônica deste tipo de confraternização.
Sem a companhia de Dani, Ancelmo flanava pelo amplo espaço da festa, entre damas e cavalheiros da mais fina estampa e garçons carregando bandejas com taças de champanhe e copos de uísque e outras com delicados “petits-fours”, sentindo-se totalmente descompromissado e antevendo uma noite de intensa diversão.
Ele andava de um lado para outro procurando por alguém que estivesse registrando ou reportando a festa, buscando sempre oferecer o seu melhor ângulo para provocar – quem sabe? – o interesse de algum diretor de arte pelo seu perfil a fim de dar o tiro de partida numa promissora carreira de modelo e ator.
Só que o tiro saiu pela culatra, pois no meio do caminho tinha, não uma pedra, como diria Drummond, mas uma Rocha, de carne e osso, calçando um par de sapatos usados.
Anacleto Guedes Beirão da Rocha perdeu a respiração e arregalou os olhos quando olhou para os pés do rapaz – aquele namoradinho da sua filha – e se deparou com o belo par de calçados Ferragamo legítimo, fabricado artesanalmente em cromo alemão, preto e luzidio como uma pedra preciosa, ainda virgem.
O senador encerrou polidamente a conversa que mantinha com o vice-cônsul da República da Guiné Bissau, deu alguns passos vagarosos mas resolutos em direção ao rapaz como quem não quer espantar a presa e, enquanto sinalizava para um segurança que se plantava feito um poste próximo à parede, dirigiu-se a Ancelmo em voz baixa, para não quebrar o protocolo:
“Seu playboyzinho de merda” – e então, quase sussurrando – “então, você está calçando meus sapatos, heim?”
E continuou, enquanto Ancelmo olhava para a iracunda figura com a expressão lívida e os olhos arregalados – “Só não mando lhe prender agora mesmo porque não quero provocar confusão na festa e sei que isto é coisa da maluca da Danielle, que vive fazendo graça com os seus namorados usando o meu dinheiro”
E então, aumentando gradativamente o tom da voz – “Só que desta vez usando o meu dinheiro e os meus sapatos!”
O segurança que fora chamado já estava diligentemente ao seu lado, aguardando as ordens. E as ordens vieram de pronto:
“Coloque este cidadão no olho da rua. Mas antes, faça-o descalçar os sapatos e os entregue para o meu motorista!”
Com firmeza, mas muito discretamente, para não causar má impressão – enquanto os convivas bebericavam o champanhe e o uísque das bandejas itinerantes e se deliciavam com canapés diversos ao som de um grupo de cordas que tocava uma peça de Albinoni – Ancelmo, o Bacana, foi colocado na rua como se fosse um saco de lixo. Sem direito a dizer uma só palavra.
Em vão ele procurou divisar a figura salvadora de Danielle entre as pessoas por quem passava, mas finalmente, entendendo o motivo da sua expulsão daquele ambiente ao qual ele definitivamente não pertencia, compreendeu que nem ela, com toda a sua força de persuasão iria mudar o humor e a decisão do velho nem fazer com que o segurança descumprisse uma ordem de tal magnitude.
As aventuras de Ancelmo, o Bacana, sofriam um momento de máxima desventura nesta noite de inesquecível anti-climax, e ele percebeu com clareza, pela segunda vez em poucas horas com os pés pisando o chão nu e frio, que para bacanas como ele existem na vida limites a serem obedecidos.
Dani somente veio entender o desaparecimento do namorado no dia seguinte, após ouvir uma sonora descompostura do pai.



      
 


sexta-feira, 1 de setembro de 2017

                                                                               




                                                   OS SAPATOS DO SENADOR

                                                         (TERCEIRA PARTE)
                                                                            
O tempo passou depressa e enfim chegou a noite do grande dia.
Expectativas em alta, tudo estava correndo às mil maravilhas, mas na hora em que Bacana, mais bacana do que nunca, estava se vestindo para o evento, um problema inesperado apareceu.
Ele percebeu, horrorizado, enquanto o stylist se encontrava ocupado providenciando os retoques da hora, que Dani havia se esquecido de comprar os sapatos apropriados para combinar com a indumentária.
O traje de gala estava lá no cabide, observando a cena ao lado da camisa branca de brocados e da gravata borboleta pronta para receber o nó do estilista, e até o finíssimo par de meias de seda já repousava sobre a cama pronto para ser calçado, mas o par de sapatos que ele tinha de mais chique eram os tais mocassins, que absolutamente não combinavam com o protocolo.
Ligou para Danielle diante do olhar inexpressivo do stylist e colocou-a a par do infortúnio.
“Tenha calma” – disse ela – “isso não é nada que não possa ser resolvido”. Aconselhou-o então a ficar totalmente preparado, apenas sem os sapatos, e falou que iria apanhá-lo de carro dali a quarenta minutos na porta do prédio, pois teria problemas para estacionar.
Ancelmo seguiu o seu conselho e continuou com o seu bem vestir. Meia hora depois olhou-se no espelho, aprovou o seu visual e decidiu que era hora de dispensar o stylist, que parecia pouco à vontade com visão apocalítica da falta do par de sapatos, como se o rapaz fosse uma obra faltando acabamento.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, Danielle foi ao quarto de vestir do pai, felizmente vazio naquela hora, invadiu o armário que enfileirava incontáveis pares de sapatos de todos os modelos e cores e escolheu aquele belo produto cortado e costurado à mão no atelier de Salvatore Ferragamo por seus mestres artesãos, fabricado em legítimo cromo alemão, preto e luzidio como uma pedra preciosa.
Carregou com os sapatos, desceu até a garagem, entrou no carro, engatou a primeira marcha e foi ao encontro do seu amado.
Ancelmo aguardava na porta do prédio, cheio de preocupação em ser visto naquela situação por algum morador que chegasse – ou que saísse – parecendo um príncipe encantado de meias pretas pisando o chão frio da noite de outono. Uma espécie de Cinderela sem sapatos.
Os minutos custavam a passar e Ancelmo começou a se sentir incomodado. Tinha a impressão de que todos olhavam para ele de dentro dos carros que passavam, com a mesma curiosidade de quem olha um macaco enjaulado.
Finalmente Dani apareceu ao volante do seu Porsche prateado, com o refinado par de sapatos repousando sobre o banco.
Ancelmo entrou no carro e ato contínuo calçou a preciosidade com muito cuidado. Folgava um pouco nos pés, mas era melhor do que se estivesse apertado.
E aí foram eles, em direção ao Automóvel Clube, onde grandes emoções os aguardavam.
                                                                         -0-
O senador estava ao mesmo tempo confuso e irritado.
“Onde diabos está o par de sapatos de cromo alemão que eu encomendei especialmente para esta festa? Tenho certeza de que os coloquei aqui!” – resmungava ele, olhando para o armário cujas prateleiras desfilavam dezenas de calçados sociais e esportivos.
“Erivélton!!” – o senador chamou o mordomo. “Você sabe onde estão os meus sapatos novos? Aquele sapato preto que eu mandei vir da Itália na semana passada?”.
Erivélton respondeu que não havia aberto o armário de sapatos hoje, mas que se lembrava perfeitamente do par de sapatos pretos brilhando na primeira prateleira. Mas não fazia e menor ideia de porque os sapatos não estavam lá.  
Sem tempo para continuar procurando e sem outra alternativa viável, o doutor Anacleto resolveu lançar mão de um outro par de sapatos, igualmente preto e igualmente importado, que havia sido usado apenas uma vez, na posse do ministro do Supremo Tribunal.

terça-feira, 29 de agosto de 2017






SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 27/02/2015
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA

 MARK GROSS

Mark Gross é um jazzista norte-americano da escola do hard-bop especializado no sax-alto, que há vinte e cinco anos frequenta as altas rodas do jazz. Formado na Berklee School aos 22 anos, desde então ele participa de parcerias sonoras ao lado de músicos de diversos estilos, desde os mais conhecidos como Lionel Hampton, Dizzy Gillespie, Charles Mingus, Nat Adderley, Dave Holland e os irmãos Wynton e Delfeayo Marsalis, até os mais contemporâneos, tendo feito diversas turnês com eles. Esté o quarto álbum solo de Mark Gross, chamado Blackside, no qual ele evoca tanto o mais puro hard-bop como faz incursões nas baladas e na música brasileira e italiana deixando patente o som às vezes áspero e às vezes doce do seu saxofone. 
     
Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini


segunda-feira, 28 de agosto de 2017





OS SAPATOS DO SENADOR

(SEGUNDA PARTE)

Uma das últimas conquistas do Bacana se chamava Danielle Cristina Guedes Beirão da Rocha – Dani, para os amigos – filha de um senador da República.
Quando Ancelmo a conheceu, logo percebeu que ali o buraco era mais embaixo.
Sua classe social estava num outro patamar e ele não teve jeito de ficar enganando: confessou a ela todos os seus pecados, embora, levando em conta o aspecto maternal característico das mulheres, tenha exagerado num desamparo que na verdade não existia.
Ela se apaixonou pela sua natureza bucólica, sofrida e quase órfã. Ele era um menino grande que necessitava de carinho e proteção, e trazia no peito a marca do poeta incompreendido e sofredor, como um Castro Alves moderno.
Dani o tomou sob sua proteção e a passou a desfilar nos pontos chiques da cidade com Ancelmo a tiracolo, como se levasse consigo um cachorrinho de estimação ou um objeto de luxo.
Para ir à festa de aniversário da Dorinha, deu a ele de presente uma camisa de grife, para a reunião da turma da faculdade um par de mocassins importados. Para a Feijoada Chic, uma t-shirt invocada, e no dia dos namorados, um relógio suíço.
Tudo sem nada receber em troca, a não ser amor.
Todavia, mesmo com toda essa atenção, ou provavelmente até por causa dela, Ancelmo já começava a se sentir entediado, para não dizer preocupado, pois o caso com a senhorinha estava começando a ficar sério e a cada dia ele ia perdendo um pouco mais da sua individualidade.
Diferentemente das outras garotas que haviam passado pela sua vida, Danielle tinha realmente tomado conta da situação e tudo indicava que o namoro seria duradouro e possivelmente desfeito somente se e quando ela assim o decidisse.
Uma das coisas das quais ele mais se ressentia era a crescente falta da liberdade, pois suas farras haviam rareado e os amigos começavam a desaparecer agora que o seu tempo livre era totalmente tomado pela mocinha que dele não se apartava.
Na verdade até que isto não era de todo ruim, pois além de muito bonita e carinhosa, Danielle era cheia de graça e de charme, tratava o namorado como um príncipe e fazia com que ele frequentasse o seu círculo de amizades, gente fina e influente, que poderia até – quem sabe? – ajudar no seu projeto de se tornar modelo algum dia.
Talvez, quem sabe?
                                                                               -0-
O doutor Anacleto Guedes Beirão da Rocha, pai de Danielle, candidato da situação, foi reeleito senador como esperava e, para marcar o início de mais um mandato de tranquilidade, ofereceu um jantar comemorativo no Automóvel Clube.
Entre os convidados, o próprio Presidente da República, ministros do seu partido, os atuais aliados entre os seus pares senadores, alguns dos mais importantes empresários do país, e toda uma gama de gente ilustre. No convite, ao lado do necessário RSVP, e das inevitáveis V.Excias., o timbre da cerimônia com a nobre constatação: traje de gala obrigatório.
Dani não teve dúvidas: iria levar seu namorado para a festa oficial e apresentá-lo aos convidados e também ao pai, já habituado com os seus caprichos. Afinal, não era toda garota, filha de senador ou não, que se dava ao luxo de andar com um gato que parecia artista de televisão.
Ela iria fazer inveja a todas mulheres, casadas ou solteiras, bonitas ou feias, elegantes ou não muito, algumas se aproximando da inevitável terceira idade, outras já no auge da quarta idade, plastificadas e pasteurizadas, e algumas poucas ainda no frescor da juventude, como ela.
Para Ancelmo – ela detestava chamá-lo de “Bacana” e fazia questão de apresentá-lo aos amigos como “Ancelmo, com ” – seria a primeira grande oportunidade de aparecer nos holofotes. Cronistas sociais e apresentadores de programas de televisão estariam cobrindo a festa e não iriam deixar passar em branco o escort da filha do senador.
Tendo isto em mente, Dani carregou Ancelmo para uma dessas lojas que aluga trajes para recepções e ficou claro que não haveria problemas em transformá-lo no cliente mais elegante que já passara pelo local.
Para completar, no dia do evento, ela também iria colocar a dispor do namorado um personal stylist, que ajudaria a cuidar ainda mais da sua já cuidada aparência.


domingo, 27 de agosto de 2017





OS SAPATOS DO SENADOR

(PRIMEIRA PARTE)


A sorte e o azar fazem parte da rotina do cotidiano, pensava Ancelmo (com , como gostava de deixar bem claro). Esta visão filosófica e fatalista lhe servia de alento e de conforto para que ele pudesse suportar os constantes prós e contras da vida.
“A vida é como a maré”, ele conjeturava, “assim, as coisas mudam ou acontecem independentemente da nossa vontade”.
Por causa disso, Ancelmo vivia de uma forma epicurista, para não dizer irresponsável. Conhecido na roda dos amigos como “Bacana”, ele se esforçava no desempenho do seu papel para fazer jus ao epíteto e não desapontar o eleitorado.
Tinha um emprego, sim, mas trabalhava apenas o suficiente para ter algum dinheiro que desse para o gasto e gastava sem se importar com a forma com que gastava nem de que maneira iria repor o numerário.
Ele era o tipo de pessoa que valorizava os fatos, mas não ligava para as consequências, ou seja, não tinha história de passado, dava grande importância ao presente e desprezava o futuro.
Não que Ancelmo fosse destituído de expectativas. Expectativas havia, e todas muito otimistas, mas nada que necessitasse de alguma atenção especial.
Para ele, as coisas se resolveriam ao seu modo, peça por peça se encaixando até formar um quadro favorável e positivo. Ancelmo acreditava que o resultado final da montagem dessas peças sempre lhe seria benéfico.
A sua gastança não era programada e incluía bebida, mulheres, noitadas, e amigos desprevenidos a quem vez por outra patrocinava algumas doses.
Ele também gostava de roupas da moda – embora não necessariamente de grife – e como regra existencial não fazia nenhuma reserva pecuniária porque considerava que, na ciranda da vida, tudo acaba dando certo por si.
Ancelmo tinha uma grande preocupação com a aparência, tanto por uma vaidade que vinha do berço, como também pela idade que já lhe proporcionava alguns retoques de branco na cabeleira preta e bem cuidada, fruto – diziam - da vida mais ou menos desregrada e nada esportiva que cultivava.
Caminhadas, só o estritamente necessário, e a maioria dos exercícios ficava por conta do balanço nas baladas.
Então, para dar alguma contribuição à saúde e para compensar o apelido, Bacana frequentava academia duas vezes por semana, onde “pegava leve”, sem exageros, só pra ficar em forma, manter a barriga enxuta e continuar parecendo alguns anos mais jovem. Esta talvez tenha sido a sua única atitude consistente e duradoura na vida até então.
Para fazer face às despesas, Bacana tinha um emprego de ajudante de tabelião num cartório da cidade, conseguido graças a um relacionamento antigo da família, que morava no distante interior gaúcho, a quase quinhentos quilômetros de Porto Alegre e a quase dois mil do Planalto Central, onde ele residia sozinho numa kitchenette.
Como o salário não era lá essas coisas, apesar dos bem vividos trinta e quatro anos, ele ainda dependia de alguma grana que a mãe, diligente e caridosa, lhe mandava todo mês, sem o aval e o conhecimento do pai, austero fazendeiro e pecuarista de amplos recursos que continuava apostando no futuro do filho, acreditando que ele estava se preparando adequadamente para ser alguém na vida.
De certo modo, Ancelmo também acreditava nisso, pois sonhava em ser algum dia um famoso modelo fotográfico e ter sua cara estampada em comerciais de revista ou – melhor ainda – ter o seu talento exibido em anúncios de televisão, embora certamente talvez não fosse isso que o seu pai esperava.
Apesar de seu comportamento não muito ortodoxo, Ancelmo era um homem de alma pura, e a sua fada madrinha tivera o cuidado em mantê-lo afastado de tentações maiores, como o jogo e as drogas – considerados os piores vilões – e de outras ilegalidades mais corriqueiras, livrando a sua cara até do prosaico vício do cigarro e daquela fezinha enganadora das loterias oficiais.
Então, pelo sim, pelo não, Ancelmo, o Bacana, era o que se podia chamar de “um bom garoto”.
Ele tinha carisma, era alto, simpático, considerado bonito e charmoso pelas mulheres e um sujeito “legal” pelos homens, e em virtude de frequentar os botecos da moda, andava sempre envolvido com alguma garota de boa família, embora em pouco tempo o destino geralmente se encarregasse de mandar cada qual para o seu lado.

(SEGUE)