RETALHOS
E REBOTALHOS
(Parte
Três)
Todos os dias é a mesma coisa, a mesma
alternativa cruel.
O que mata não é a rotina, mas a chatice
subliminar da rotina, principalmente quando a gente esbarra nos pilares do bom
gosto, o que faz tudo desmoronar, esmagando a arte e o refinamento como um
Sansão atormentado faria com um templo repleto de filisteus.
Soprando meu saxofone cor de ouro no
ermo do meu apartamento eu me sinto iluminado. Passeio pelas frases construídas
por Coltrane, copio a aspereza de Gordon, e outro dia me comovi na aventura
inenarrável de guinchar como um morcego
no cio, de um jeito que talvez nem Ornette Coleman fizesse melhor.
Os vizinhos surpreendentemente concordam,
ou pelo menos não vivem reclamando com o síndico nem com a ronda policial mais
próxima.
Isto não tem partitura, nem academicismo.
Basta ouvir, deixar a música penetrar em
cada poro, sentir as notas correndo pelas veias e suar o sangue da harmonia que
foi absorvida pelo organismo como uma vitamina numa simbiose perfeita, eu e a
música.
Quando saio do meu apartamento carregando
o estojo negro junto com o meu próprio corpo, começa a alternativa cruel.
Eu me dirijo como um autômato para o
mesmo “night-club” onde me aguardam
um conjunto musical bem ensaiado – uma banda, como dizem os jornais – aquele
garçom simpático e aquele outro carrancudo, e também o sócio-gerente daquele
lugar que é mais chegado a “vaudeville”
do que a “American bar”, para tocar os grandes sucessos da
moda e fazer a alegria daqueles que jamais farão a nossa alegria.
Para ouvir estas músicas não é preciso
sair de casa com o bolso recheado de cartões de crédito, enfrentar o trânsito
cada dia mais confuso, brigar pela vaga do estacionamento e ter que dar gorjeta
para aquele cuidador de carros que jamais irá cuidar de coisa alguma. Basta
refestelar-se na poltrona da sala, desligar a televisão com as suas mesmices e
ligar o rádio em qualquer estação de efe-eme, que dizem ser mais nobre.
Tocar, sim, mas tocar a música deles e
tocar essa música pra eles é o que me enfara e me enfada.
Mas é dali que surgem os trocados que me
permitem prosseguir na faina dos estudos – prática, composição, contraponto e regência
– e pagar o absurdo do aluguel do apartamento para aquele judeu safardana que
além de me descascar e espremer como a um limão tem o desplante e a desfaçatez
de todo mês, no dia marcado para o acerto de contas do aluguel, fazer uma
vistoria minuciosa nos meus aposentos para ver quantos pregos foram enfiados na
parede, quantas lajotas de piso foram riscadas de preto pelo salto de borracha
do meu sapato barato, quantas baratas se escondem por detrás do armário e por
dentro do ralo do banheiro, quantos azulejos estão se soltando do reboco e
quantas marcas de dedos foram deixadas na sala, naquela pintura duvidosa feita
à base de cal hidratada.
Ele é o tipo do sujeito capaz de
desenrolar todos os rolos de um fardo de papel higiênico só pra constatar se de
fato cada rolo contém os quarenta metros mencionados na embalagem. Depois faz o
cálculo do consumo mensal e distribui um pedaço para cada membro da
família.
Ainda outro dia ele se achegou num acesso
de verborragia sócio-econômica acerca da nova lei do inquilinato, aquela que
cada vez que é renovada permanece com os mesmos defeitos: “esta lei, senhorr Porfírrio, só favorrece o locatárrio, o senhorr
entende que com essa pouquinha coisa que o senhorr paga não dá pra juntarr
dinheirro pra reformarr o imóvel quando o senhorr forr embora!” – e eu pensando – “ou para o dia em que este velhaco bater as botas e tiver vontade de levar tudo consigo para além túmulo,
dinheiro e apartamento, ações e
debêntures e aquelas peças de ouro que estão depositadas no banco, velhote miserável!” – mas acabo apenas
retrucando com um simples assentir de cabeça e um sorriso desbotado, vendo-o
caminhar em direção ao elevador e depois sumir com o seu corpo mirrado e a
cabeça calva, fazendo lembrar um cogumelo – “então até logo e muito obrigado!” (“muito obrigado?!”), e corro de volta para a sala para soprar o
desabafo em um prolongado lá maior sem vibrato.