sábado, 20 de janeiro de 2018




A JUSTA ENTRE O ZÉ DA ROSINHA E O MAL-AFAMADO AGOSTINHO

(Conto premiado em 1º lugar no XXIII Concurso Literário Cidade de São Luís, em 1997, e depois publicado no livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 2)

É nessas paragens que reina absoluto Zé da Rosinha, um cantador de sete costados e às vezes de sete cordas, filho de dona Rosinha engomadeira, o mais talentoso entre os oito paridos, um verdadeiro Cícero na eloquência e um corisco na velocidade com que faz da viola a cítara, um engenhoso vate que com sua garganta afinada à base de conhaque com mel-cabaú improvisava seus versos ferinos e impressionava com suas rimas bem colocadas qual um Caruso da caatinga com a veia de Emílio de Menezes.
Zé da Rosinha, como todo grande cantador, podia passar horas enfileirando versos de cordel decorados, de cor e salteado, de trás pra frente e de um lado pro outro, mas também improvisando com muita malícia e picardia, fazendo enrubescerem as mocinhas e as mães das mocinhas e fazendo pigarrearem os pais das mocinhas e os namorados das mocinhas, todos olhando para o alto disfarçados de nuvem.
Zé da Rosinha se esmerava em rimas, fazendo céu com bordel, mata com sirigaita e cebola com baitola e lamentava não existir nas redondezas outro cantador de respeito “pra mode fazê um disafio”.
O nosso poeta-cantador, além de invulgar habituée da mesa do bar, para amuo do Celestino, e da porta da igreja ao final da missa, para o desagrado do Rolho, dava também suas audições perto da janela da delegacia, não sem antes fazer uma afinada revisão mental a respeito da galhofice dos seus versos matreiros a fim de não despertar a ira do cabo Lupércio e do delegado Vicente e não ser obrigado a passar algumas horas emparedado a dois por dois naquele aposento mal arejado e cheirando a arenque defumado que eles chamavam de xadrez.
Casou a Dalva, filha do Zé Lutero, com Mano Bento, lá vai Zé da Rosinha pra musicar a festa. Seu Eurico voltou de viajem mais rico, lá vai Zé da Rosinha entoar odes à burra. Coronel Pelópidas assou mais um churrasco para os colhedores de cana, lá vai Zé da Rosinha encomendar a alma do bode. Dona Jovina se recuperou do nó nas tripas, lá vai Zé da Rosinha desatar seus nós dolentes nas cordas do seu alaúde.
Zé da Rosinha era o tom maior que movia as engrenagens da vida pacífica de Catolé do Mato, um tangará atrevido, um Guido D’Arezzo dos trópicos, um menestrel de dedeira.
Até que um certo dia o si-lá-sol calou, o verso impudico quebrou, Demóstenes mordeu a língua e engoliu a pedra, o colibri amanheceu de voz pífia.
Roubaram a viola do Zé da Rosinha.
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Agostinho era a vergonha de Catolé do Mato.
Sua fama de safado já ultrapassara as fronteiras das cidades circunvizinhas, de Cajazinho a Ximangó, mas como os delitos cometidos eram todos de pequena monta, as suas penitências usuais era ouvir as perorações do Rolho, de quem fugia lépido como um azougue enquanto o pároco, redondo como um barril, se esbaforia ao sol com o suor porejando na calva e o vento abanava seu hábito preto, levantando a poeira calcinada da rua.
Fugia também dos conselhos do bem vivido Petrônio, oitenta e tantos anos no lombo e muita erudição às custas das colunas de jornal, e evitava qualquer confronto direto com Lupércio, que acompanhava as suas proezas à distância com uma boa disse de paciência.
Não obstante todos estes cuidados, era de fato impossível imaginar que outro, a não ser ele, pudesse roubar no peso da batata, no recolhimento do óbolo por ocasião da Santa Missa ou no troco mal contado.
Agostinho trabalhava como ajudante do Próspero, dono de uma próspera oficina do tipo conserta tudo e todo mundo se admirava da prosperidade crescente do dono mesmo tendo tal figura a lhe ajudar. Alguns olhavam com desconfiança para patrão e empregado suspeitando que fossem comparsas de algum crime muito rendoso feito às escondidas, arquitetado na calada da noite de maneira impecável.
O fato é que Agostinho tinha aquela qualidade indispensável a qualquer escroque que tenha a intenção de subir na vida – era melífluo como um duende, insinuante como uma cobra, magnetizante como um prestidigitador e popular como artista de capa de revistas femininas, e isto servia como alternativa para eventuais trambiques, trapaças ocasionais ou esquecimentos lucrativos.
Chegou até a namorar com a Dalva, filha do Zé Lutero, austero magarefe, que ao ser informado da má noticia esfolou o pobre do boi morto com tal violência a ponto de o funcionário do matadouro, impressionado, correr para implorar a Agostinho que rompesse o engajamento sob pena de ter os bofes rompidos por um terçado bem afiado.
Zé Lutero lançou impropérios regados a sangue de boi, nem tanto preocupado pela discutida honestidade do ladravaz, mas pelos parcos recursos que ele poderia oferecer à donzela como dote de casamento – Agostinho não tinha onde cair morto e seria um peso morto nas suas costas, pois estava de olho não propriamente nas graças da Dalva mas principalmente em ter onde se encostar e no futuro – quem sabe? – participar do espólio do bem fornido sogro.
A visão pouco confortável de Zé Lutero irado, tendo à mão um formidável facão ou quem sabe de uma cartucheira de dois canos foi definitiva, e Agostinho escafedeu-se de volta às suas origens, abrindo vaga para Mano Bento preencher as necessidades da mocinha prendada.
No bar do Celestino, o caderno de fiado já desfiava páginas de pendura alimentado pela candura dos pedidos – “amanhã eu pago menos uma parte, pois fiz um negócio da China com o Aguiar”... – e todos, de Celestino a Aguiar vão entrando na história como Pilatos no Credo enquanto o caderno se avolumava na coluna do “haver”.
Tudo corria aparentemente sob controle nesse clima ameno de Catolé do Mato aos quarenta graus à sombra, a cidade se movimentando lógica como uma máquina, a noite sempre chegando após o dia, a fumaça das queimadas se elevando aos céus, os esgotos destratados correndo para rio, Hilário envelhecendo civilizadamente como as suas piadas e o Rolho engordando a olhos vistos como a filha do Zé Lutero um mês após o casamento, para a desconfiança de Inácio, o obstetra, e de dona Jovina, a do nó nas tripas.
O bonde andava em cima dos trilhos, ou andaria, caso houvesse bonde, os intestinos funcionavam regularmente, o relógio da igreja atrasava o seu minuto diário regulamentar, Covas andava já meio preguiçoso por falta de alguém para enterrar, e até as peraltices de Agostinho tinham o gosto folclórico de pura traquina, quando de repente irrompeu o vendaval.
O ar ficou irrespirável, o relógio desandou a atrasar um minuto a cada meia hora, Zé Lutero entendeu todo o drama e ficou matutando se não teria sido obra do Agostinho, o céu se toldou de chumbo e a cidade se convulsionou, atirando o eventual bonde para fora dos trilhos.
Roubaram a viola do Zé da Rosinha.    

SEGUE
          
  

   

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018





A JUSTA ENTRE O ZÉ DA ROSINHA E O MAL-AFAMADO AGOSTINHO

(Conto premiado em 1º lugar no XXIII Concurso Literário Cidade de São Luís, em 1997, e depois publicado no livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 1)

O Nordeste é pródigo em cantadores e contadores.
Cantadores do agreste, com a viola de cordas de metal, a história e as histórias se propagando de geração em geração, de cantador em cantador, quer na beira da fogueira quando da caçada árida e sem urzes, quer na mesa da quitanda ao lado da cangibrina ardida e do tabaco picado, quer na praça do mercado entre frutas e peixes que exalam a graveolência acre do fim das feiras.
Já os contadores são uma espécie de cantadores sem viola e sem rima, dissecando num dedinho de prosa situações inteiras, cômicas ou patéticas, picantes ou constrangedoras, fazendo chegar aos ouvidos do escutante fatos narrados e fantasiados com entonações precisas e criando um clima apropriado para o grande final, dai mostrando orgulhoso a sua porção artista, fazendo vênia às gargalhadas dos ouvintes com a expressão peralta nos olhos.
Um exemplo de bom contador é meu amigo João Rodrigues Casemiro, mais conhecido como João Lito dado o seu profundo envolvimento com litografia, rotogravura e outras habilidades gráficas.
Foi de João Lito que eu ouvi a história do cantador Zé da Rosinha e do ladrão Agostinho, e é baseado nela que eu transformo o contador em prosador sem receio de estar plagiando uma obra, pois em sendo apenas uma espécie de contador de um contador eu me considero simplesmente um recontador.
Então, vamos à história.
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Quem não conhece Catolé do Mato, com seus três mil e tantos habitantes, encravado por detrás da Serra dos Maturrangos, deveria conhecer.
A cidade, que se insinua entre um presépio de mesa e um cenário de novela, é um verdadeiro achado numa região perdida, a algumas horas de cavalgada até uma cidade de porte médio.
Ela não tem um bar de encontros, uma igreja para missas, uma praça com bancos de madeira, uma delegacia de delegado e cabo, um coronel de terras e um coronel de gentes. Ela tem o bar, a igreja, a praça, a delegacia, o coronel açambarcador de glebas e o coronel primo terceiro do ex-futuro prefeito e atual vereador, tudo assim no singular.
Isso torna a vida muito mais fácil, primeiro porque não é preciso a gente escolher nada, o que você precisar já está pronto ou você encomenda, qual salgadinho de festa – aqueles que dão azia no mesmo dia – e depois não é necessário inovar, pois tudo pode seguir o mesmo ritual e a mesma rotina, livrando a cara e o coração do estresse e da competitividade da vida da cidade grande tão nociva às artérias e às vênulas, às narinas e aos pulmões.
Afinal, lá existem Celestino, o dono do bar, o pároco Heráclio, mais conhecido como “o Rolho”, seu Petrônio, patrono e patrimônio da praça onde ocupa o seu banco cativo e lê sentado diariamente o jornal de antes de ontem que chegou esta manhã da capital, Lupércio, o cabo, e o delegado Vicente, que além de delegado faz as vezes de juiz de pequenas causas, o Coronel Prudentino, proprietário permanente da justiça eleitoral e também o Coronel Pelópidas, dono da Fazenda Termópilas, que ao contrário do que se pode pensar não fica num desfiladeiro, mas numa planície achatada como a sua cabeça.
Existem também, e se não existissem deveriam existir por força o chaveiro Chaves, Leite, o leiteiro, Antenor, o instalador de antenas, Carneiro, o açougueiro, Pinto, o pintor de paredes, Aguiar, o motorista, de praça, Mário, do armarinho, Porto, o porteiro da escola, Inácio, o obstetra, o barbeiro Barbosa, o contador de anedotas Hilário, o marceneiro Márcio, o coveiro Covas e last but not least, Pedro, o pedreiro – todos catolenses de primeira água e participantes involuntários desta história.   
A vida sonolenta e pacata da cidade só era tumultuada pelas festas do mês de junho e pela repetidora da Globo que teimava em derramar como se fosse ficção os absurdos e as desgraça do mundo distante, as inacreditáveis façanhas da civilização exacerbada pela intriga, pelo ódio e pelo crime, pelo desequilíbrio, pela insegurança e, desculpem a má palavra, pela improbidade.
Por isso é que você deveria conhecer Catolé do Mato com seus três mil e tantos habitantes, o Shangri-lá do sertão, onde a simplicidade abunda.


SEGUE

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018





SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 10/06/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA

THE BUD POWELL TRIO

Excepcional pianista de jazz, Bud Powell faz parte de uma geração de músicos que infelizmente não viveram muito tempo para continuar um trabalho de vanguarda que se dispuseram a fazer. Powell teve muitas influencias. Teve a formação de "piano stride" através do seu pai, também pianista profissional e de Art Tatum, um dos modelos para todo pianista da época. Foi amigo de Thelonious Monk, com o qual trocou experiências a ponto de o estilo de ambos ter muita semelhança nas dissonâncias. Powell adicionou ao seu jazz o trinado do "stride" que pode ser percebido mais tarde por Errol Garner, Bill Evans e Oscar Peterson, todos influenciados por Powell e pelo seu lirismo cheio de dedos. O programa desta sexta-feira mostra uma apresentação antológica de Bud Powell feita em estúdio tendo como parceiros o baixista George Duvivier e o baterista Art Taylor, num cardápio que é servido através de um som que vai do contemplativo até os acidentes próprios do bebop, sua maior marca. 

Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini


quarta-feira, 17 de janeiro de 2018





EU E A MÚSICA – EPISÓDIOS NOTURNOS

(Uma conversa com o MPB-3)

A morte do cantor Ruy Faria – o Ruy do MPB4 – em 11 de janeiro de 2018, me trouxe tristeza, nostalgia e algumas lembranças. Tristeza porque o desaparecimento de verdadeiros artistas deixa ainda mais incerto o panorama musical brasileiro deste início de século, que chega a ser preocupante. Nostalgia porque Ruy me lembra a melhor época da chamada MPB e uma das melhores da minha vida, e me faz assinar embaixo o artigo do blogueiro Mauro Ferreira, onde ele diz ser Ruy a voz do MPB4 (e eu completo “da mesma forma como Severino Filho foi a voz de Os Cariocas”). Eu diria mais, ambos não foram só a voz, mas também a cara e a alma dos conjuntos vocais dos quais participavam. As lembranças ficam por conta de uma noite nos longínquos anos 1960, na qual Ruy participou da minha existência por algumas horas.
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No final dos anos 1960, a Vila Buarque concentrava boa parte do encanto da Paulicéia Desvairada, como bem definia a cidade de São Paulo o poeta Mario de Andrade uns quarenta anos antes.
Um quadrilátero limitado pela Praça da República por um lado e pela Avenida Angélica do outro, e pela Faculdade Mackenzie e a Rua da Palmeiras pelos lados adjacentes, possuía talvez a maior quantidade de noctívagos por metro quadrado da capital, agrupando desde jovens estudantes ou escriturários que saíam do serviço e lotavam os barzinhos na hora do “happy hour”, onde sempre existia alguém cantando e tocando violão – com direito a todo mundo cantar junto – até figuras engravatadas que procuravam “American bars” mais sofisticados, com um trio piano-contrabaixo rabecão e bateria, passando por quem procurava aventuras caras ou baratas, dependendo da boate e da companhia que iria se sentar ao seu lado, estes, cavalheiros mais velhos, de preferência casados apreciadores de uma fuga semanal acompanhada por um uísque duvidoso. Isto sem deixar de lado o chope boêmio do Bar e Restaurante Redondo, ao lado da Praça Roosevelt.
Meu habitat predileto era o bar “Sem Nome”, que realmente não tinha nome e era simplesmente uma garage com porta de correr onde o dono adaptou um balcão de mármore e instalou meia dúzia de mesas e cadeiras insuficientes para a quantidade de fregueses que sempre tinham alguma novidade como entretenimento e se apinhavam em pé ao lado do balcão tomando a especialidade da casa, que eram as batidas e caipirinhas.
Por lá eu tive a oportunidade de cantar junto com Chico Buarque – na época despontando com seu “Pedro Pedreiro” – Zé Keti – que atendia aos pedidos para cantar “Opinião”, um sucesso do momento no Teatro de Arena, lá na Rua Teodoro Baima, com a peça do mesmo nome ao lado de João do Vale e Nara Leão, depois Maria Bethânia – e o maranhense Chico Maranhão que empolgava com o frevo “Gabriela” quem eu viria a reencontrar vinte e cinco anos depois em São Luís.
O hino oficial do Bar Sem Nome era a música de Ismael Silva “O que será de mim” (“Se eu precisar algum dia de ir pro batente não sei o que será / Pois vivo na malandragem, e vida melhor não há”) – os jovens paulistanos substituíam a palavra “malandragem”, muito carioca, por “boemia”, que tinha mais a cara deles.
(Aqui em São Luís, Chico Maranhão mencionou o episódio no palco do Teatro Alcione Nazaré – na época Teatro Praia Grande, do Centro de Criatividade Odylo Costa, Filho – quando fazia o show de lançamento do LP “Quando as palavras vêm”, produzido por mim no início dos anos 1990. Chico falou brevemente sobre nossos encontros em São Paulo e dedicou a mim a música título, que começa assim – “Encontrei por aqui um antigo amigo...”, autoexplicativa).
Certa noite, lá em São Paulo, eu descobri um outro lugar no pedaço, pertinho da Praça da República, no início da Rua Marquês de Itu. A casa tinha um longo corredor e abria uma grande clareira no fundo, com mesas colocadas debaixo de árvores. Logo a chegar divisei um conhecido numa mesa com outras cinco pessoas e me juntei ao grupo.
Apresentações feitas, percebi estar ao lado de três dos MPB4 – Ruy, Miltinho e Magro – que num bate papo descontraído me colocaram por dentro de algumas coisas de bastidores.
Seguindo a mesma linha do Bar Sem Nome, alguém tocava violão e cantava numa mesa ao lado, e o violão circulava, passando de uma mesa para outra.
Cerveja rolando, o violão chega na nossa mesa e Ruy começa a cantar uma canção de Noel Rosa, com Miltinho acompanhando no pinho.
Foi quando dei uma sugestão destrambelhada, pedindo para os três cantarem algum dos sucessos do grupo, como “Lamento” (de Pixinguinha com letra de Vinicius), ou “Gabriela” (aquela do Chico Maranhão). Ruy então me explicou didaticamente que não era possível cantar porque não dava para repetir a harmonia do grupo faltando uma voz – Aquiles estava ausente.
Aprendi mais uma coisa na vida e me contentei em ouvir solos de “Com que roupa?” e “Feitiço da Vila”, dentro de uma afinação impar e acordes belíssimos de violão.
Naquele momento eu me abstive de cantar, e a própria audiência alvoroçada diminuiu o falatório ao perceber que estavam diante de uma celebridade.     
    





segunda-feira, 15 de janeiro de 2018




CACHOEIRA DA ILUSÃO

(Samba composto por Augusto Pellegrini e Nelson “Zurumba” Gengo em 1980)

Trago nas mãos as marcas do tempo
Nos olhos um sol de dezembro
Levo a vida, mais um dia se passou
E a ilusão não terminou
Levo a vida, mais um dia se passou
E a ilusão não terminou

Trago no peito a esperança
De quem foi criança
E ainda sonha com a vida
Trago um sorriso guardado
Pra quem for chegado
Sem dor nem partida

E agora
O passado é uma lágrima que rola
Na cachoeira da ilusão
Formada pelo coração

E agora
Na cachoeira da ilusão
O passado é uma lágrima que rola
Formada pelo coração










SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 16/09/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA

 JOÃO GILBERTO

Quando foi batizado como "um dos marcos da bossa nova", o cantor, compositor e violonista João Gilberto disse que ele não cantava bossa nova, ele cantava samba. Evidentemente, João Gilberto cantava samba, mas do seu jeito, sempre acompanhado por si mesmo, com um violão que traduzia o "jeito João Gilberto de ser", uma forma autêntica, moderna e original de dividir os compassos, e que o levou a revolucionar a música brasileira a partir de 1958 e a fazer grande sucesso nos Estados Unidos, Europa e Japão a ponto de ser um dos músicos mais influentes no jazz americano do final do século 20. Na verdade, João canta tudo, e este álbum nos provê de diferentes estilos e nacionalidades, desde o samba autêntico de Noel Rosa até a música latina e o jazz sofisticado de Cole Porter. A gravação do disco "João" foi feita em 1991 e conta com um pequeno grupo a uma portentosa orquestra a acompanhar João e o seu violão inconfundível. 
 

Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini




UMA NOITE SINISTRA

Conto publicado no livro “À noite, todos os gatos” em 1998.

(Parte 3) 

Parece uma profecia: chutei a parede.
Não exatamente a parede, mas o primeiro degrau da escada.
É lógico que foi sem querer, embora não tão lógico, mas na minha letargia, andando de um lado para o outro e olhando para cima como se invocando o Altíssimo e todos os santos de menor escalão, alguns anjos e até deuses mitológicos e entidades de luz, não reparei o degrau que se debruçava impunemente como um molhe atrevido para o meio da sala.
Não só chutei a peça de granito e cimento com força e sem chinelos como fui lançado como se por uma catapulta para o primeiro lance da escada, os óculos se me escapulindo da cara e se projetando sobre o vaso com um arranjo de artemijas e a barriga embicando contra a quina do quarto ângulo, a testa no sexto.
Saio rastejando como um ápode, sofregamente no encalço dos óculos cujas lentes já se encontram tão opacas que francamente não faz a menor diferença tê-los ou não tê-los. Depois, inspeciono como medida de rotina as condições do carpo e do metacarpo e de uma falange esfolada que doem tão intensamente que, como eu suspeitava, não me incomodam em absoluto mais do que as outras minhas chagas.  
Acho que estou entrando em um plano astral só conhecido pelos faquires e outros autoimoladores orientais, este sim é o verdadeiro nirvana. Se eu sobreviver a esta experiência autofágica vou pregar a Verdade em praça pública, vou elaborar um tratado sobre o efeito da goiabada cascão sobre a salvação eterna, a mais doce forma de purificação, doce de leite, rapadura e cocada também servem, o importante é sofrer, ser alçado às galáxias e depois sentir a cara repousando sobre um degrau plano, duro e acarpetado enquanto o sono chega em forma de desmaio, o telefone tocando novamente com furor – ou será uma brincadeira pregada pela mente em delírio? – as drogas medicamentosas ingeridas entorpecendo e embotando o raciocínio e os movimentos, e eu me sentindo como se flutuasse. Agora não há frio nem calor, a dor se transformou numa dormência cálida, em um bilhão de partículas que vibram e vão se assenhoreando de todo o meu corpo, do dente ao pé.
Somente a haste dos óculos me incomoda um pouco, pressionando como um torniquete a área compreendida entre a orelha e a fronte.

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Às oito da manhã, pontualmente como sempre, chega dona Ernestina para cumprir com esmerado zelo sua missão de diarista do tipo lava, passa, arruma e cozinha.
Ela cumprimenta a vizinha que varre para o meio-fio as folhas que o outono arrancou durante a noite, abre o pequeno portão, passa por ele e depois o fecha, então caminha pelo piso de lajotas vermelhas que cruza com o também pequeno jardim que está – e ela olha com desaprovação – precisando de uns cuidados.
Abre a bolsa do tamanho de uma sacola, apanha a chave, enfia a chave na fechadura e gira duas vezes para a esquerda, abre a porta e “oohhh!!!” entra em pânico ao ver um corpo de homem caído nos primeiros degraus da escadaria revestida de carpete no topo de cada degrau.
Quer gritar, chamar a vizinha, os bombeiros, a ambulância e a polícia, mas a voz não sai, as pernas tremem e ela não consegue sair do lugar.
É claro que o corpo esparramado na escada sou eu, dormindo enfim com todo aspecto de um morto, bêbado não, pois bêbado que se preza não se embriaga de pijama.
A voz finalmente sai e ela afinal grita, e eu acordo mais assustado que ela.
Acordo todo moído, a luz que vem da janela frontal com as cortinas abertas incomoda os meus olhos, e por detrás do vidro a cara curiosa da vizinha me incomoda muito mais.  
O que importa é que eu estou vivo e surpreendentemente sem dores, apesar de me sentir saído de um liquidificador.
Abro um olho, depois outro, recomponho os óculos e vejo através das lentes sujas a expressão boquiaberta de dona Ernestina e a cara da vizinha impressa na janela e a bolsa que parece uma sacola caída no chão, por onde se espalham as artemijas que foram cuspidas do vaso.
Na falta de algo melhor para dizer que fosse decentemente apropriado e que tivesse o mínimo sentido para explicar a cena dantesca, balbuciei – “eu ia ao dentista, dona Ernestina, mas mudei de ideia e acabei ficando por aqui mesmo” – acreditando que o tom da explicação pudesse quebrar o encanto do inverossímil da cena.
Ato contínuo, levanto-me altivamente como um general que caiu do cavalo e subo com grandiosidade a escada em direção ao quarto para tentar direcionar a minha cabeça e pensar no que fazer da vida.
Na testa, uma marca levemente vermelha.
Dona Ernestina, em pé no umbral da sala, me acompanha com os olhos e com a boca aberta, o coração voltando à normalidade.         

    

domingo, 14 de janeiro de 2018





UMA NOITE SINISTRA

Conto publicado no livro “À noite, todos os gatos” em 1998.

(Parte 2)

Do amor ao dentista em plena madrugada nasceu um grande ódio pela natureza e por essa maldita engenharia biológica que permite dentes cariados, unhas encravadas, furúnculos nas partes mais incômodas, calos na sola do pé, micose e afta, e isso por muitas vezes e por toda a vida afora neste vale de lágrimas, como dizem as Sagradas Escrituras.
Será que Ele chegou também a sentir dor de dentes nas madrugadas palestinas, comendo do pão e bebendo do vinho, e se teve, teria Ele questionado ao Pai, que seja feita a Vossa vontade assim na terra como neste quarto de abajur aceso, lençóis revirados e mãos crispadas?
E, como se não bastasse, o telefone toca.
No silêncio da casa e no adiantado da noite, seu “trimmmm!...” me soa como uma sirene de fábrica ou de um campo de concentração, como um silvo de trem rolando pela pradaria, como um alarme de penitenciária, como uma badalada na torre dos sinos, fosse minha cabeça um campanário.
São três da manhã, ou é algum maluco querendo me impingir a assinatura de um jornal ou de um consórcio de eletrodomésticos, ou é uma notícia aterradora, dessas que a gente recebe às três da manhã, mais uma morte súbita entre os relativos ou algum parente danado vindo do raio que o parta como alma penada a pedir guarida.
Se isso acontecesse a sono pleno, numa noite dessas consideradas normais, eu acordaria assustado e taquicárdico, passaria a mão nos óculos que dormem estáticos de barriga para cima sobre o criado-mudo ao lado da minha cabeceira e borraria as lentes com os dedos gordurosos do calor noturno e suas coceiras, sentiria os pelos se arrepiarem por ação da adrenalina e a camisa do pijama se empapando de suor e, de ouvido em pânico – “trimmmm!”... silêncio... “trimmmm!”... acordava para a realidade... “trimmmm!”... pausa para levantar... “trimmmm!”... enfiando os pés nos chinelos trocados...  “trimmmm!”... cambaleando escada abaixo... “trimmmm!”... ”trimmmm!”... “trimmmm!”... já vou!, já vou!...”trimmmm!” alô!!!, alô!!!,  e então “teng...” “teng...” “teng...” “teng...”, compassado como um aviso de volta às aulas ou um disco de acetato riscado – “oh, merda!!!” – e voltaria para a cama com os olhos acesos maldizendo a tecnologia e ainda ouvindo o sinal de ocupado mesmo com o aparelho novamente no gancho, desligado e finalmente quieto, não sem antes sentar por alguns minutos na poltrona ao lado para recuperar o fôlego, repensar a existência e aguardar uma nova chamada que nunca vem.
Isto se eu estivesse a sono pleno.
Mas como eu estou vagando pelas dependências da casa como um lobisomem sem destino, como um pária sem rumo, como um carpidor velando o seu morto, com a respiração, o dente e as vísceras em desordem, o máximo que faço é descer as escadas caminhando duro como um autômato, cada “trimmmm!” uma potente martelada na cabeça – mas o que é uma martelada na cabeça para quem tem goiabada cascão no nervo exposto do molar superior esquerdo? – e como um robô que mais parece uma figura de Madame Tussaud chego perto do telefone e o retiro do gancho para ouvir o mesmo “teng...” “teng...” “teng...” “teng...” da noite mal dormida.
Com os nervos em farrapos e pragas rogadas contra o bispo, o prefeito, o chefe da repartição, contra Graham Bell e a concessionária, volto a sentir outra agulhada enquanto os ouvidos zunem e o cachorro do vizinho late.
Tenho ganas de dar um chute na parede, assim, quem sabe, o pé se quebra e a dor pelo menos se transfere de lugar, não é possível que o cérebro tenha tanta memória para armazenar mais dores do que as que já sinto, Jacinto.
Se eu telefonar para você agora e desatar o nó das minhas desesperanças, doutor Jacinto, é bem provável que você me convide para uma consulta rápida e sem volta, um curativo, uma extração e depois um tiro na boca, para que eu nunca mais venha a lhe importunar durante as madrugadas, seria capaz até de usar uma britadeira à guisa de broca e arrancar-me a língua, a glote e a epiglote.
É mais prudente, dente por dente, esperar o dia e as coisas clarearem e tomarem a forma de normalidade, uma simples norma de formalidade.


SEGUE