sábado, 30 de dezembro de 2017





O AVIÃO

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 1)


O saguão do aeroporto parece um formigueiro.
Pessoas fervilham empurrando carrinhos com malas e volumes, uns vão e outros vêm, alguns fumam impacientemente e consultam o relógio, outros se detém, nas livrarias e alguns relaxam lendo o jornal do dia acomodados nas poltronas e arriscando uma olhada para o painel eletrônico que informa detalhes dos voos.
“Atenção, senhores passageiros que se destinam a Porto Alegre com escalas em São Paulo e Curitiba, queiram se dirigir para embarque pelo portão quatro e boa viagem”.
Lá vamos nós, como bois para o matadouro, o mesmo olhar distante, a mesma expressão inquieta. Não somos revistados como na entrada de um estádio de futebol, nem nossas bagagens são perscrutadas à procura de uma bazuca ou uma bomba atômica que possa levar o pânico à tripulação e aos passageiros.
Enfileirados, contemplamos a nave, um grande pássaro prateado com seu prefixo e a logomarca da companhia aérea, o comissário de bordo recolhendo os cartões de embarque e a aeromoça nos sorrindo aquele sorriso Kolynos de Miss Brasil.
Procuramos o melhor lugar junto ao corredor para poder esticar a perna mesmo com o risco de sermos atropelados pela carrinho de bebidas, somos amassados pela bagagem de mão do cavalheiro da poltrona do meio e observados pela senhora já meio passada que se ajeita junto à janela, apertamos o cinto e olhamos a expressão de expectativa dos nossos circunstantes – nem o lançamento as Colúmbia gerou tanta comoção -  e num repente o paquiderme de asas começa a se movimentar pela pista, o ruído aumenta, a potência aumenta, e lá vai ele, alçando voo como um condor, o bico altivo e o olhar severo.  
Começa enfim a grande aventura.
Enquanto a nave empina os passageiros parecem estar rezando, olhando para o teto ou para o vazio através das janelas-escotilhas.
Houve um tempo em que o lugar que mais se rezava e alevantava o pensamento ao Todo-Poderoso eram as naves das igrejas, deixando em segundo plano as naves aéreas propriamente ditas. Hoje, com a escassez de fieis, com o cisma entre os religiosos progressistas e os conservadores, com o desencanto dos pragmáticos e com a censura dos intelectuais, o quadro está revertendo e já se reza mais dentro dos aviões do que diante dos altares.
Os aeroportos estão lotados e as igrejas estão ficando vazias.
Espichando o olhar para o jornal do companheiro da poltrona do meio, que teima em enfiar o cotovelo esquerdo no meu espaço vital, leio em letras garrafais que a explosão de um Boeing nas redondezas das Ilhas Figi causou a morte de duzentas e cinquenta pessoas e que um avião cargueiro que saíra de Nova Deli com destino a Frankfurt desapareceu misteriosamente sem deixar qualquer vestígio (suspeita-se que tenha sido obra de um objeto voador não identificado, mas os videntes ocidentais descartam essa possibilidade e acreditam mais em uma ação terrorista de muçulmanos xiitas, estes sim sempre dispostos a promover uma encrenca contra quem professa ideias diferentes das suas). 

Vem o carrinho de bebidas bem a tempo de eu recolher meu pé, e junto com o carrinho o sorriso de outra aeromoça, esta mais aérea e bem mais moça, que nos oferece um sanduiche envelopado com gosto de raticida e dois bolinhos de carne cuja missa de sétimo dia do boi que lhe deu origem foi celebrada três anos atrás. Acompanha um adocicado suco de caju de garrafa economicamente colocado dentro de um copo do tamanho de uma xícara de café.

SEGUE

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017



Postagem refeita porque a anterior saiu desconfigurada

SÓ VOCÊ CHEGAR

Só você chegar, meu coração ficou feliz
Só de lhe encontrar eu vi tudo o que sempre quis
Só deixar passar o tempo e ver que dá pra dois
Somente abraçar, pois tudo é bom demais
Demais

Nunca nuvem, nada mau
Nunca nó, notar ninguém
Beijos, risos, nada mais
Nem nunca mais sofrer

Custou tanto pra chegar
Tanto quanto quem não vem
Diz agora, o encanto faz
Especialmente alguém
Ser feliz, ser também

(Letra para melodia de Renato Winkler feita por Augusto Pellegrini em 1970)


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

SÓ VOCÊ CHEGAR Só você chegar, meu coração ficou feliz Só de lhe encontrar eu vi tudo o que sempre quis Só deixar passar o tempo e ver que dá pra dois Somente abraçar, pois tudo é bom demais Demais Nunca nuvem, nada mau Nunca nó, notar ninguém Beijos, risos, nada mais Nem nunca mais sofrer Custou tanto pra chegar Tanto quanto quem não vem Diz agora, o encanto faz Especialmente alguém Ser feliz, ser também (Letra para melodia de Renato Winkler feita por Augusto Pellegrini em 1970)




O CINEMA

(Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992. Vale observar que a situação, a terminologia e os filmes mencionados retratam uma ida ao cinema trinta e cinco anos atrás.)
(Parte 2)

O quarto problema foi contornado, pois na minha frente se senta um casal de namorados que de tão agarradinhos pareciam uma só pessoa, o que abre um formidável espaço visual que permite que eu me ajeite na poltrona da maneira mais confortável possível. Aí então o quinto, terrível e inevitável problema: o jornal da tela.
“Amplavisão filmando ao Brasil vai informando”, começa o locutor.
“Na progressista cidade de Ortigueira, no norte do Paraná, foram inauguradas as dependências do Grupo Escolar Princesa Isabel, que irá melhorar o padrão de ensino para as crianças da região. Participaram da festividade importantes figuras civis, militares e eclesiásticas, falando na ocasião o senhor Bernardo Ortigão, prefeito de Ortigueira, que enalteceu a importância do ato”.
A música de Billy Vaughan serve de fundo para os créditos, com destaque para o produtor Primo Carbonari.
Depois, uma pausa e “Twentieth Century Fox” na tela.
Enfim começa o filme – aquele antigo sucesso de setenta e dois – e a gente se emociona, e sofre, e torce, e ri, e se agita sob a magia da direção bem-feita, da trama bem urdida, da fotografia perfeita e do desempenho notável da atriz coadjuvante que mais uma vez engoliu a estrela principal (Elisabeth Taylor jamais perdoou Mia Farrow por isso).
Terminado o filme surge o sexto problema – a saída do cinema. Vemos aterrorizados a massa reunida lá no saguão se espremendo e se preparando para invadir a sala de projeção tão logo saia o último assistente, e de pronto nos vem à mente uma cena que somente poderia ser reproduzida por Kubrick ou Spielberg – a invasão acontecer antes que consigamos sair, e então a morte por pisoteamento, embora um pisoteamento com muita arte e com gosto de ketchup.      
Enfim saímos, alcançamos a rua, desviamos de dois carrinhos de cachorro-quente e um de pipoca e também de um inoportuno moleque querendo nos vender à força uma barra de chocolate, uma caixa de chicletes ou um pacotinho de drops Dulcora – a delícia que o paladar adora e vêm embrulhadinhos um a um – e partimos rumo ao perigo.
Vencida mais esta etapa, conseguimos alcançar o carro que, surpreendentemente, ainda está lá, com seus quatro pneus, suas portas, seus vidros, seu espelhos laterais, seu motor e seu tanque cheio. E, surpresa das surpresas, sem o proverbial tomador de conta a nos extorquir. Então vamos de volta pra casa para dar o nosso merecido descanso e o justo descanso ao Fusquinha com uma noite na garagem protegido do sol, do sereno e da chuva.
Enfim chegamos em casa, e com o copo de leite na mão ligamos a televisão naquele canal alternativo para descobrir que hoje, excepcionalmente, será transmitido na íntegra, sem cortes e dublado em português um filme que foi grande sucesso nos anos setenta.
Eu me afundo na poltrona pensando que desta vez eu teria que aturar uma dublagem mal-acabada onde o personagem diz “actually I don’t drink whisky” ou “you should wear a monkey suit” e o tradutor nos arrasa com “atualmente eu não bebo uísque” e “você devia vestir um paletó de macaco”, quando começo a perceber que o filme é o mesmo já visto horas antes com Elisabeth Taylor e seus chiliques, após correr todos os riscos que um cidadão pode correr numa metrópole dita civilizada.

Mudo então de canal e começo a assistir a um debate sobre economia e negócios.  

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017






O CINEMA

(Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992. Vale observar que a situação, a terminologia e os filmes mencionados retratam uma ida ao cinema trinta e cinco anos atrás.)
(Parte 1)


Primeiro a expectativa.
Consultamos o jornal à procura do melhor filme – aqui tem um candidato a sete Oscares, ali um premiado em Cannes, alhures um grande sucesso em mil novecentos e setenta e dois, algures uma comédia picante imprópria para menores de dezesseis anos e mais além um “science-fiction” à Spielberg cheio de infantilidades adultas.
Ainda sem decidir qual desses iremos assistir, nos preparamos psicologicamente para rir com Woody Allen, para chorar com Kraker vs Kramer, para liberar nossa adrenalina com Stallone ou para nos apaixonar perdidamente por Isabelle Adjani.
Lavamos a cara depois da barba feita, aplicamos uma demão de lanolina, colocamos uma camisa decente após o banho tomado, apanhamos o carro que descansa sossegadamente na garagem e partimos para a grande aventura. Aquele filme de setenta e dois parece ser uma boa escolha.
Aí começam os problemas. O primeiro deles é o estacionamento. Num raio de trezentos metros do cinema não há espaço nem para uma bicicleta, então o jeito é parar lá embaixo, próximo do outro cinema que exibe um filme que decidimos não ver, e caminhar a pé, preocupado com o segundo problema.
O segundo problema é a segurança – a nossa e a do carro. Erguemos uma prece[A1] [A2]  para o Altíssimo a fim de que consigamos caminhar os seiscentos metros ida-e-volta sem sermos importunados por algum meliante – “isto é um assalto!” – principalmente no término da sessão, quando já será noite alta. Fazemos um cálculo mental do valor do reembolso do seguro após o carro ter sido roubado, depenado e transformado em “buggy”, mas estes pensamentos macabros são interrompidos pelo terceiro problema.
O terceiro problema é a fila para comprar o ingresso, que rodopia lentamente cheia de pernas como uma centopeia, e depois do ingresso comprado a fila para ingressar no saguão e ficar aguardando a sessão terminar para finalmente adentrar a sala de projeção olhando para alguns cartazes dependurados aqui e ali anunciando os futuros sucessos de bilheteria.  
A sessão termina e imediatamente começa o quarto problema, a busca do lugar ideal. De acordo com a Teoria das Probabilidades, na minha frente deverá se sentar um cidadão alto e de topete. Então, mudo para duas poltronas à direita e me vem o temor que na minha frente venha a se sentar um camarada irrequieto que se move o tempo todo, me obrigando a balançar feito pêndulo de relógio de parede.

SEGUE




 [A1]
 [A2]

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017




BODAS DE PRATA

O dia 13 de dezembro vai ficar marcado pelo torcedor do Flamengo como mais uma data a ser esquecida em virtude da perda de outro título continental, mais uma vez em pleno Maracanã. 
O  empate contra o Club Atletico Independiente valeu aos argentinos a Copa Sul-Americana de 2017 e fez com que o rubro-negro, apesar de ter montado um elenco caro e experiente, fechasse o ano festejando apenas a conquista do título carioca. 
Uma a uma, as conquistas previstas foram virando fumaça - Copa Libertadores, Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil - o que fará de 2018 um ano muito importante, de renascimento e colheita.
Para um clube que em 2017 investiu quase 60 milhões em jogadores - Diego, Everton Ribeiro, Conca, Rômulo, Rhodolfo, Rever, Berrío - a apostou caro nas promessas da casa - Vinicius Junior, Lucas Paquetá, Lincoln, Felipe Vizeu - o time montado por Reinaldo Rueda (ele também, contratado para dar o perfil de experiência ao grupo) deixou bastante a desejar, alternando o bom e o mau futebol, e provocando altos e baixos no humor do torcedor.  
O Flamengo deve se mirar no próprio Independiente para planejar o futuro. O Independiente, conhecido como "Rojos de Avelleneda"  já teve seus momentos de glória no século passado, e a conquista da Copa Sul-Americana (prima pobre da Libertadores) servirá de estímulo para novos desafios.
O clube argentino já conquistou 16 títulos nacionais (ficando atrás apenas de Boca Juniors, River Plate e Racing Club), 2 Copas Sul-Americanas, 2 Supercopas Libertadores, uma Recopa Sul-Americana, e é o maior vencedor da Copa Libertadores de todo o continente, com 7 conquistas. Mesmo assim, amarga um jejum de 15 anos em títulos argentinos e sua última conquista importante foi também a Copa Sul-Americana de 2010, quando decidiu contra outro clube brasileiro, o Goiás.  
A data da partida, 13 de dezembro, tem um significado especial, pois nos remete a 1981, quando o Flamengo fechou um ano de ouro ao bater o Liverpool no Estádio Nacional de Tóquio por um sonoro placar de 3x0 e ganhou o seu único título de campeão mundial interclubes até o momento.
Em dezembro de 1981, com a conquista do título mundial, o Flamengo completou uma sequência vitoriosa que coroou aquele ano. Em apenas dez dias o rubro-negro faturou a Taça Guanabara com um 3x0 sobre o Campo Grande, venceu o Cobreloa-Chile por 2x0 pela Libertadores e ganhou o Campeonato Carioca sobre o Vasco por 2x1 depois de ter aplicado um sonoro 6x0 no Botafogo.
Ganhar do Liverpool por uma contagem tão elástica foi o toque especial que faltava para fechar um ano mágico. 
O Liverpool, que havia chegado à condição de disputar o Mundial Interclubes depois de derrotar o sempre poderoso Real Madrid por 1x0 , era considerado franco favorito nas casas de aposta, mas não foi páreo para os brasileiros que possuíam um dos melhores esquadrões da história, com Raul Plassmann, Leandro,  Marinho, Mozer e Júnior,  Andrade, Adilio e Zico, Tita, Lico e Nunes, comandados por Paulo César Carpegiani.
A festa de bodas de prata da conquista maior do clube poderia ter sido realizada num clima de consagração caso o time tivesse passado na prova final deste ano, mas quis o destino que num jogo brigado palmo a palmo a vitória ficasse com o lado contrário.
O Flamengo saiu na frente nos dois jogos disputados contra o Independiente, mas permitiu a virada em Buenos Aires e o empate no Rio de Janeiro diante de um time que mostrou que tem intimidade com a bola e que ganhando ou perdendo mantém a mesma postura tática em obediência ao sistema traçado pelo seu técnico.
O Maracanã viu muita disposição dos dois lados, poucos chutes a gol, e dois gols nascidos de falhas que poderiam ter sido evitadas. No gol do Flamengo, a defesa "roja" bateu cabeça e Paquetá teve o vislumbre de apenas roçar na bola para que ele fosse parar no fundo do gol. O empate argentino, menos de dez minutos depois, surgiu de um pênalti evitável de Cuellar e da malandragem do argentino Meza que se deixou tocar dentro da área. O empate saiu com requintes de crueldade, através do árbitro de vídeo, sistema colocado em prática no estádio especialmente para a decisão.
No final as esperadas bodas de prata ficaram sem a esperada comemoração.
     

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017



O TAXI

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 2)

O taxi velho segue rateando – água no distribuidor – e o limpador de para-brisa tenta em vão se livrar da catarata que enevoa a vista do motorista. Os vidros estão embaçados e no banco traseiro um jornal meio amassado estampa a manchete de que há seis meses não chove no sul da Espanha.
“Para onde?” – pergunta o motorista.
“Para o centro” – responde o senhor de idade e meia.
“Para o centro?!” – o motorista rebate, irritado. “Este babaca vai me fazer andar um quilômetro e meio que vai daqui até o centro com o carro a dez quilômetros por hora, entrar num baita engarrafamento e pagar um pouco mais que a bandeirada! Fosse pelo menos a mocinha da blusa branca eu ainda ficava satisfeito, mas este estafermo!” – pensa ele.
“Não dá pra ir pro centro!” – retruca o motorista, num repente.
“Como, ‘não dá pra ir pro centro’? Eu vou para o centro!” – replica veementemente o senhor de idade e meia, tentando furtivamente localizar um guarda de trânsito no meio do vendaval para conseguir o devido amparo da lei que protege o consumidor.
“Pois eu vou pra zona norte. De lá o senhor pega o metrô e vai para o centro! – treplica o taxista.
“Isto é um absurdo!” – desabafa o senhor de idade e meia, não sem antes medir o tamanho e a ferocidade do motorista. Ele se sente como alguém caindo num precipício e tentando desesperadamente se agarrar a alguma saliência da rocha para não desabar no vazio. Vai anotar o número da placa e reclamar para o Sindicato, para a Diretoria de Trânsito, para a Delegacia do bairro, para a seção de cartas da Folha de São Paulo e para a mulher de idade e meia quando chegar em casa.
“Ou vai para a zona norte ou desce” – sentenciou o taxista num tom de voz definitivo que não admitia contestação. Ato contínuo, ele para o carro disposto a resolver a situação no braço, mas vê alarmado quatro ou cinco senhoras com pacotes, algumas mocinhas com livros, outros basbaques de casaco de couro, “office-boys”, cretinos com cara de infeliz e senhores de idade e meia se atirando sobre o táxi como o fariam viajantes perdidos no deserto à vista de um copo d’água.
Aterrorizado, e já resignado, o taxista arranca novamente despejando um jato d’água na mulher que estava quase alcançando o trinco da porta, ouvindo algumas imprecações e se emaranhando novamente no trânsito, disposto a levar o senhor de idade e meia para o centro.
“É duro ser motorista de táxi!” – pensa penalizado consigo mesmo.
A chuva continua a desabar como se tivesse um buraco no toldo do céu.
O guarda de trânsito sai da banca de revistas e corre até o barzinho na esquina disposto a tomar um café para esquentar os ossos.

O senhor de idade e meia suspira.  




O TÁXI

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 1) 

Chove a cântaros pela cidade.
De acordo com a emissora de rádio, o seu loquaz boletim do tempo indica “chuvas esparsas em pontos isolados”, o que na prática significa que se estiver chovendo está certo, se não estiver chovendo também está certo, a previsão sempre correta, sempre acurada, sempre preciosa.
São as chuvas de verão, sujeitas a raios e trovoadas.
Do jeito que chove tanta água, água aos borbotões, a impressão que se tem é que chove não só na cidade, mas também nos municípios vizinhos, no estado todo, em todo o país.
A televisão de ontem à noite noticiou deliciada, com um sabor sensacionalista e sádico na voz do “anchorman” que o rio transbordou em Santa Catarina deixando ao desabrigo centenas de ribeirinhos, que chove continuadamente, há quatro dias, no interior gaúcho e que no Ceará o sertão já virou mar.
E mostram “flashes” jornalísticos de casas destruídas, gente abrigada no ginásio municipal de esportes, onde nunca chove, e a diversão dos garotos bem-humorados, nadando e canoando nas águas barrentas repletas de pseudômonas, coliformes e et caetera e tais.
Aqui, na avenida principal da cidade grande, coalhada de bancos e instituições financeiras, das inevitáveis galerias com lojas de todos os matizes e de uma ou outra lanchonete tipo “fast-food” – dessas que servem sanduiches com gosto de isopor, tanto faz filé de frango, hambúrguer ou porco na brasa, acompanhado de meio litro de gelo picado em um copo de refrigerante ou suco – as pessoas driblam os guarda-chuvas e tentam desesperadamente apanhar um táxi.
Alguns taxistas passam com o carro sem passageiros, aceleram na hora certa para lançar um pouco da água empoçada do leito carroçável para cima da calçada, atingindo as pernas dos esperançosos e desditosos clientes e se divertem com isso – mais do que diversão, é uma perversão, uma vingança contra a sociedade.
Mas a maioria dos táxis que passam já vêm lotados, a gente consegue ver a silhueta do passageiro através do vidro embaçado.
A água corre em direção aos bueiros razoavelmente desobstruídos – o prefeito desta cidade mantém um eficiente sistema de conservação e procura conservar a cidade tão limpa quanto os cofres do município, também desobstruídos – e a água que desaba sobre o chão invade o solado dos sapatos e lava as pernas nuas das saias molhadas e também as pernas vestidas de casimira ou jeans.
É o dilúvio vespertino.
Autos e ônibus trafegam com os faróis ligados, ajudando a sinalizar o caos. O guarda de trânsito se escondeu debaixo da banca de revistas e por detrás da capa escura de plástico grosso, e o apito, sempre saudável e estridente nas tardes de sol, agora se esconde rouco e mudo dentro do bolso da camisa.
A senhora cheia de pacotes, munindo uma sombrinha que mais ajuda a molhar do que a proteger da cascata incessante, acena para um táxi que se aproxima devagarinho como se o taxista estivesse apreciando o pandemônio encharcado.
A garota cheia de livros e sem guarda-chuva também acena, toda aquática, para o mesmo táxi, a blusa branca toda fina colada no corpo e fazendo o motorista esticar o pescoço e limpar o vidro dianteiro com a mão para melhor apreciar essa obra de arte que a natureza criou.
O senhor de idade e meia dentro do seu terno bege, portando uma pasta preta que faz as vezes de guarda-chuva também acena, os óculos embaçados e a gravata em desalinho.
Acenam também para o mesmo táxi o “office-boy” cheio de contas de água e esgoto e outras tantas dentro as escarcela verde com elástico, o cidadão de porte atlético vestindo jaqueta de couro e usando um bigode monumental, e o infeliz com cara de infeliz trajando uma calça branca, a esta altura toda adornada por nódoas cinzentas e amarronzadas, fruto da água que corre beirando o meio-fio.
O táxi para.
Todos partem para ele em desabalada carreira como numa corrida de cem metros rasos, a senhora deixando cair um dos pacotes, a garota deixando arrebentar um botão da blusa – fazendo a água da chuva caminhar por vales nunca dantes navegados – o senhor de idade e meia fazendo o seu derradeiro esforço, o “office-boy” se esgueirando como uma cobra e o grandalhão de bigode formidável acotovelando a tudo e a todos e esmagando o infeliz com cara e infeliz junto à coluna lateral do carro. Uma verdadeira prova olímpica.
Surpreendentemente, quem se afunda no assento do táxi é o senhor de idade e meia, fechando a porta com energia e quase esmagando o dedo do cavalheiro de jaqueta de couro que, não tão cavalheiro assim, explode num sonoro “filho da puta!!!” e dá outro coice no infeliz com cara de infeliz.
A senhora dos pacotes corre atrás daquele que caiu e está descendo pela torrente em direção ao bueiro.
A garota, indignada com o palavrão e com a perda do taxi procura com a mão cobrir a natureza exposta pelo botão perdido.
O “office-boy”, resignado como sempre, sai caminhando pela chuva afora pela avenida afora, convencido da inutilidade de gastar os trocados recebidos para pegar um táxi quando o melhor é ir a pé, deslizando como um surfista, e embolsar o dinheiro da corrida.   


SEGUE

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017





SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 25/03/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM - 106,9 Mhz
São Luís-MA

CEDAR WALTON - VOICES DEEP WITHIN

Como muitos outros músicos de renome, o pianista Cedar Walton ganhou destaque no  mundo do jazz fazendo parte do grupo do baterista Art Blakey chamado Jazz Messengers, onde atuou de 1960 a 1964 quando saiu para formar o seu próprio grupo e investir na carreira solo. Esta era a época do hard bop, estilo que se seguiu ao bebop nos anos 1950 e dominou o cenário durante boa parte da segunda metade do século passado. Cedar Walton foi muito influente, impondo um estilo personalíssimo de tocar que saia da sonoridade do piano, enveredando pelas harmonias intrincadas dos músicos de sopro do período, como John Coltrane, Freddie Hubbard, e Jackie McLean. Aqui ele se faz acompanhar por baixo, bateria, e o saxofone de Vincent Herring em algumas faixas, trazendo entre outras peças "Over The Rainbow", "Memories Of You" e "Naima".


Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini

terça-feira, 19 de dezembro de 2017




A GULA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 2) 

A mansão está em festa.
À beira da piscina senhores bem-humorados conversam ações da Bolsa, viagens a Nova York, cruzeiros de férias, projetos políticos, financiamentos e outras questiúnculas do gênero.
Senhoras gastas e usadas, apesar dos tratamentos de beleza, clínicas de rejuvenescimento e salões de estética, expões suas celulites ao doce compasso das confidências, das inconfidências, das fidelidades e das infidelidades e do próximo chá de caridade onde as damas desfilarão novos modelos e farão a mostra das caras joias que moram escondidas no cofre.
Ao sol, rapagões bronzeados, cabelos à última moda e minúsculas sungas pondo em evidência todos os seus volumes, e as gatésimas gatas pondo em evidência as protuberâncias superiores e inferiores se dourando como tenros galetos. A música de fundo se insinua ruidosamente pelos quatro cantos da casa através de alto-falantes estrategicamente instalados por entre arbustos e postes de iluminação e provoca suspeitas a respeito do bom gosto dos anfitriões.
À sombra dos trinta e seis graus reinantes, uma mesa vestida com uma toalha branca rendada e imaculada dispõe garrafas do mais puro uísque escocês – Pipe Major, Cutty Sark, Teacher’s Royal Highland, e também de vodka Wiborowa, do gim Seager’s e do conhaque Domecq espanhol de Espanha.
“Appetizers” e canapés variados rodeiam o centro da outra mesa colocada próxima à primeira, cercados por triviais castanhas e outros petiscos para “tirar gosto” como diz o vulgo ou acrescentar o apetite como dizem os “gourmets”.
Os doutores arriscam um olhar mais ousado para as filhas dos outros doutores sob o olhar de censura constante das esposas de todos os doutores e o semblante entre o intrigado e o “deixa pra lá” dos filhos e outros amigos dos doutores e dos próprios doutores.
Após a piscina e os aperitivos e após a chegada do senador com a sua devida “entourage”, trazendo no rosto o competente ar de um homem sério (embora não passe de um sórdido safado), é servido o almoço à base de frutos do mar e crustáceos gerais regado ao bom vinho branco alemão ou àquela cerveja dinamarquesa vinda diretamente do importador – trazida à bordo do navio de bandeira irlandesa que chegou há alguns dias com o porão repleto de artigos eletrônicos e material importado carente dos documentos regulares. Trutas com amêndoas acompanham o prato principal que na verdade era apenas a entrada.
Trata-se do milagre da multiplicação da fartura.
Para as vinte e oito pessoas que participam do animado ágape foi providenciada uma quantidade de secos e molhados suficiente para alimentar pelo menos cem, mesmo sabendo que não adianta preparar cinquenta pratos diferentes quando a fome humana não é capaz de consumir mais do que cinco.
E, neste caso, os adultos enressacados e a trivial “jeunesse dorée” colocam apenas míseras porções sobre os pratos de porcelana chinesa porque à noite teremos um jantar para duzentos talheres na recepção que o governador oferecerá ao ministro senegalês que nos visita. Além do mais, temos que manter a linha e evitar aquela desagradável gordurinha que enfeia a nossa beleza.
Lá fora, um dos meninos miseráveis, aquele negrinho com a camiseta esburacada ostentando a propaganda política do atual prefeito, pede ao guarda com cara de javali um pouquinho de comida.
“Hoje não tem, vai andando e não enche o saco!” – esbraveja ele, depois resmunga “...ninguém aguenta tanto mendigo pedindo coisas por aí!...”     

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017





A GULA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 1)


As crianças desciam a ladeira em ziguezague.
O ruído estridente dos gritos e da tropelia despertou a senhora de cabelos brancos e camisola cor-de-rosa que dormitava o sino dos despreocupados. Veio à janela do segundo andar do prédio de apartamentos revestido de pastilhas também cor-de-rosa, colocou a cara cinza-esverdeada para fora e semicerrou os olhos fundos tentando filtrar a luminosidade do dia, desaprovando o barulho e a algazarra.
Era uma algazarra quase feliz, não fora o estômago vazio e a falta de paternidade daqueles moleques vadios e inconsequentes, insensatos e enjeitados que ainda não haviam vislumbrado o tamanho do problema que eles tinham que solucionar, embora já com uma forte suspeita de que a barra que iriam enfrentar pela vida afora não iria ser um brinquedo de criança.
A horda descia desorganizada e esganiçada, provocando o latido dos cachorros, porque todos os cachorros detestam crianças negras, pobres ou maltrapilhas, assim como detestam carteiros, mendigos, cegos e vendedores de bilhetes, e não apenas avançam com a bocarra arreganhada e os dentes ameaçadores como também mordem forte e dolorido no calcanhar, na panturrilha ou na bunda.
No terreno baldio bem ao lado do prédio cor-de-rosa, um sugestivo “outdoor” sugeria que comêssemos ovos porque ovos ajudam o nosso crescimento e nos dão força e vigor, possuem proteínas que equivalem à carne bovina e calorias necessárias para manter um ser humano vivo mesmo sem consumir outras fontes energéticas maravilhosas que os americanos inventaram como o chocolate caramelizado, a vitamina liofilizada ou o açúcar refinado – e dizem isso sem corar, com o maior descaramento, deixando de mencionar o colesterol, os triglicérides, o entupimento das artérias e o diabetes progressivo.    
O lixo cerca o cartaz de madeira e é engolido pelo mato alto que encerra nas suas entranhas algum rato morto, cacos de vidro daquela garrafa quebrada e alguma lata enferrujada. As moscas se enfileiram como o rosário de um terço na antena da Kombi enferrujada que está entre o estacionado e o abandonado junto ao meio-fio, e o vento transporta para o meio da rua uma tira de papel higiênico que escapuliu do saco de lixo e com suas firulas ajuda a nausear um pouco a paisagem, agora completa de brasilidade com a meninada que passa uivando.
O senhor magro e sisudo com a camisa abotoada até o pescoço sobe a rua em direção contrária e se aborrece e se arrepia e sente um ligeiro desconforto ao cruzar com os infames – isto na verdade é um eufemismo, na realidade ale está apavorado! – como quem se vê obrigado a esgrimir com uma nuvem de gafanhotos. Ele olha de soslaio temendo encarar seus oponentes e instintivamente põe a mão no bolso traseiro para se certificar se a carteira com os trocados e os documentos continuam lá, intactos e protegidos da sanha desses maus elementos, ao mesmo tempo em que brande sua pasta zero-zero-sete de couro negro um tanto esfolado nas quinas como se fosse um escudo ou uma clava para afugentar eventuais inoportunos e contra-atacar no caso de um ataque repentino, como se exorcizam os maus espíritos.
E segue célere, o cenho carregado, enquanto o bando passa por ele como se ele não existisse.
O dilúvio humano continua a sua devastação sonora, aperta-se uma campainha aqui, açoda-se um cachorro ali, vira-se ao contrário aquele espelho retrovisor e faz-se uma vênia velada àquele candidato a vereador que sorri pregado no poste e já desbotado pelo sabor das chuvas de verão, exatamente aquele que prometia em campanha proteção ao menor abandonado, fez discursos antes de eleito e na proclamação da posse e hoje cuida de terrenos abandonados que juntou aos seus bens, assim como o  fazem os invasores do alheio, agindo silenciosamente nas sombras com a cumplicidade de poucos e o desconhecimento de muitos.
A rua tem um declive, faz um ângulo com uma valeta por onde escoam as águas no tempo das chuvas e a partir daí começa uma subida no mesmo ângulo onde os meninos bem nutridos que moram nas bonitas casas enfileiradas fazem suas evoluções com bicicletas e patins, e agora também com pranchas de rodinhas de poliuretano.
No alto da ladeira, já fazendo esquina com outra rua arborizada e de calçamento antigo, a grama crescendo por entre os paralelepípedos denunciando a exiguidade do tráfego e algumas florezinhas colorindo as urzes nas jardineiras desarrumadas mas nem por isso deselegantes, ergue-se imponente um muro na cor ocre com algumas plantas trepadeiras agarradas |á superfície ligeiramente desbotada e as maciças colunas dando a exata medida da robustez da construção arquitetada por um artista de forte influência otomana.
Defronte o portão principal dormita um vigilante, desses contratados junto a empresas de segurança patrimonial que contrapõem um tanto de servilismo ao assoviar do dono a um bocado de autoritarismo ao se deparar com estranhos, treinado que é qual cão de fila.   
Ele desperta e se arma como um mercenário boina verde, fechando a carranca em parte para assustar os irrequietos passantes e em parte pelo justo mal humor de quem desperta de um sonho bom por uma grita de baitacas.

Os garotos passam sem se importar com a sua zanga ou com a sua farda e se vão em direção a outra mansão, duzentos metros adiante onde perfilam diversos automóveis de luxo.   

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017





ALVORADA

(música composta por Augusto Pellegrini em 1978)

E mal raiou a alvorada
O dia mal despertou
Voltei pra casa
O sol brilhando
Na manhã de prata
Desmancha toda a cor
Da serenata

Vou sem descanso
E por muito favor
Porque no fundo não passo
De mais um trabalhador
Que chega em casa
E se prepara
Para outro dia enfrentar
Noutro compasso
Se declara
Estar disposto a trabalhar


Mas tem um detalhe, rapaz
Quando madrugada chegar
Você vai me ver outra vez
Com meu violão, que me traz
Remédio para este mal
E me ajuda a esquecer 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017





A GULA

Excerto de um conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.


Ah, a gula!
Se gula fosse pecado os padres não se empanturrariam dos mais variados acepipes acompanhados por um saboroso vinho espanhol daqueles recebidos no Brasil contrabandeados e acondicionados em barris de carvalho legítimo, depois transferidos para jarras e garrafões sem medo de azedar, pois conforme dizia Padre Lourenço “...vinho puro, consumo rápido”...”
E o que dizer de um assado de carneiro, ornamentado com batatas sauté e servido com arroz de açafrão, salada de rabanetes adubada com azeite de oliva português primeira prensa e pão de peito daqueles da Basilicata?
É certo que todas as religiões preconizam algum jejum durante o ano – talvez mais pela necessidade de reservar o estoque e preservar o pouco do fígado e da vesícula que nos resta do que para prestar uma homenagem ao Senhor Deus. Afinal, que religião é essa que se preocupa com fartura de comida e de bebida e se esquece da farsa, da mentira, da guerra, da opressão e do opróbio?
Será pecado a ingestão de chá com torradas, ovos e bacon pela manhã, um belo suco de frutas e um iogurte batido, além do sanduiche de queijo e de uma fatia de melão? Será pecado o T-bone steak com agrião na hora do almoço ajudado por um chope escuro e broto de alcachofra na entrada? Café com chantili na saída?
Será pecado o carpaccio?
Pecado não é a comida e sim a falta dela.

  

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017






SINOPSE DO PROGRAMA SEXTA JAZZ DE 13/05/2016
RÁDIO UNIVERSIDADE FM 106,9 Mhz
São Luís- MA

 JAZZ LAB - GIGI GRYCE & DONALD BYRD 

 Um dos estilos de jazz mais apreciados pelo público jazzófilo é o chamado West Coast, uma espécie de bebop mais sofisticado que assumiu ares de cool jazz e foi viver na Costa Oeste dos Estados Unidos, como seu nome indica. Ele foi criado e cresceu em Los Angeles como uma contraposição ao hard bop que se desenvolvia na Costa Leste durante os anos 1950 e 1960. Vários nomes estão associados ao gênero, como Shorty Rogers, Gerry Mulligan, Chet Baker, Bud Shank, Jimmy Giuffre, Shelly Manne e Dave Brubeck. Um dos discos mais emblemáticos que marcaram o estilo foi o primeiro álbum da série "Jazz Lab" gravado em 1957 pelo quinteto liderado pelo saxofonista Gigi Gryce e pelo trompetista Donald Byrd (outros cinco álbuns viriam a seguir), mostrando muita leveza melódica, um alto nível de interpretação e uma harmonia vibrante. Músicas como "Blue Lights", "Onion Head", "Imagination" e "Xtacy" são apresentadas pelo quinteto que inclui o pianista Hank Jones, o baixista Paul Chambers e o baterista Art Taylor, uma garantia de qualidade. 

 Sexta Jazz, nesta sexta, oito da noite, produção e apresentação de Augusto Pellegrini

terça-feira, 12 de dezembro de 2017





A IRA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.


Tudo andava às mil maravilhas naquela cidadezinha no sul da França, Saint Jean des Canards. Monsieur Patou caminhando placidamente pela rua arborizada, as flores florindo na primavera, o sol resplandecente furando as copas das árvores, os passarinhos gorjeando em francês e alguns Jacques, Jean-Pierres e Charlottes se cumprimentando e se sorrindo.
Close para o vendedor de sorvetes oferecendo risonho e rubicundo um copinho com “crème des pommes” enquanto ao fundo a jovem Geneviève tem um “frisson” ai cruzar seu olhar com o de Laurent, um vizinho tímido e agradável que falava com os olhos tudo aquilo que os lábios não ousavam pronunciar, como dizia o poeta.
O gramado aparado parecia estar verde, não aquele verde amarelado dos “westerns” de Hollywood, mas aquele verde esmeraldino dos filmes de capa e espada, apesar da centena de cavalos e cavaleiros que por ali passavam diariamente, das liças e das caçadas. Mas o filme era branco-e-preto, o adorável branco-e-preto dos clássicos, o branco-e-preto do estilo “noir”, da fotografia bem cuidada, da direção perfeita que usa a indução psicológica, sem efeitos especiais, e da grama puramente cinza naquela calma matinal.
Monsieur Patou consulta o seu relógio, aqueles de bolso, a  corrente fazendo um arco por cima da virilha, é quase hora do almoço, vamos provar os quitutes preparados por Madeleine, sua mulher há mais de trinta anos, exímia cozinheira, talentosa fazedora de “croissants”, “petit fours” e “patés”, já antevendo o assado de vitela com batatas coradas, regadas ao bom vinho “du Rhône”.
Corte para dentro da casa.
Madeleine terminando de ajeitar a mesa, o avental impecavelmente engomado servindo de adorno ao vestido caseiro, trazendo no rosto a expressão de um artista a contemplar a sua mais recente obra prima, a mesa posta e uma terrina de sopa ocupando o centro.
Monsieur Patou entra pela porta da sala, dirige-se à mesa, beija afetuosamente Madeleine na testa e pergunta – “o que minha patinha fez para o almoço de hoje?” – ao que Madeleine responde – “sopa de quiabo” – “sopa de quiabo?!” – exclama Patou estupefato – “mas Joujou” – Joujou é Madeleine, na intimidade – “você sabe que eu odeio sopa de quiabo!” – “mas sopa de quiabo é tão bom!...” – e segue por aí afora a discussão sobre as qualidades nutritivas do quiabo, até que Patou se deu por vencido e sentou-se à mesa sem disfarçar um resmungo – “sopa de quiabo com vinho ‘du Rhone’, bah!”
Mas a primavera estava linda, Patou amava Joujou e ainda mais com essa linguiça cortada aos pedaços, e a batata, e o tempero de Joujou... sem contar que ele já havia lido num velho almanaque que quiabo era um poderoso afrodisíaco!...
Os dois sentados à mesa, a toalha xadrez já um pouco machucada pelo uso, a terrina fumegando, os pratos decorados e o relógio da sala batendo meio-dia, o sol penetrando pelas frestas da janela e as nuvens negras do desacordo se desvanecendo no ar.
Patou e Madeleine Joujou, um casal feliz como feliz se sentia toda a humanidade concentrada na pequena Saint Jean des Canards naquele dia maravilhoso. 
Monsieur Patou dá a primeira colherada, dá a segunda colherada, limpa o canto da boca com o guardanapo branco que tem preso ao pescoço e, de repente, arregala os olhos.
“Uma mosca! Uma mosca na minha sopa!”
O pequeno díptero, já morto e com as patas arreganhadas flutuava de costas ao lado de um pedaço de tomate e de uma rodela de quiabo, preso à sua viscosidade como se estivesse preso a uma teia de aranha gelatinosa.
Agora Patou se levanta num solavanco, arranca o guardanapo do pescoço e ainda gritando – “uma mosca! Uma mosca!” – arremessa o prato com sopa, mosca e demais pertences por cima da mesa, borrifando o líquido quente e pegajoso sobre o avental bem cuidado de Joujou, que exclama “Mon Dieu!” e, ato contínuo, destempera a cabeça de Patou com a garrafa do puro “Rhône” safra 1982, uma das melhores dos últimos vinte anos, de acordo com os enólogos.
Está aberto o diálogo franco, franco em todos os sentidos.
Os passarinhos já estão se bicando por conta de um verme encontrado no meio do gramado, uma cumulus-nimbus tolda o brilho do sol, Jean-Pierre esbarra em Jacques e ambos trocam insultos, Charlotte ouve algumas palavras mal-intencionadas, pensa que é com ela e acerta a cabeça do sorveteiro com um portentoso golpe de guarda-chuva, ao ver a cena a criança morde a língua e chora, toda lambuzada de sorvete, e Geneviève planta um tapa na cara do jovem Laurent que enfim desencabulara e fizera propostas um tanto arrojadas para a sua condição de donzela e para o certificado de censura do filme. Laurent vira uma fera e agride a mocinha na maior baixaria.
Todo mundo se ofende e se desrespeita, pedras são atiradas a esmo, chega a polícia, bombas de gás, chega o reforço do exército, e por fim explode a bomba.
Estas cenas foram, tirando uma ou outra incorreção semântica, extraídas do filme “Les sept péchés capitaux”, episódio “La colère” dirigido por Sylvain Dhomme e Max Douy, mostrando uma ira à francesa, já bem familiarizada com as devastações que a guerra pode trazer.
Como nós aqui desde os idos da Guerra do Paraguai não somos brindados com o inimigo à porte de casa, nossa ira normalmente explode por questões de somenos importância ou pelo menos sem a mesma gravidade, e as nossas asas do rancor se estendem apenas até onde alcança a nossa rotina do dia-a-dia.
Ira em francês é mais “chic”.    


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017





I REMEMBER KAFKA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.

(Parte 2)


Ainda outro dia, se bem me lembro, eu estava placidamente dividindo com três ou quatro formigas e uma mosca doméstica um resto de bolo de festa, desses com recheio de leite condensado e ameixa preta e a cobertura com aquela pasta branca e açucarada e bolinhas de confeite cor de prata, quando me apercebi do desencanto desta vida, tudo é tão bonito e coberto de açúcar até que vem a vassoura, o veneno ou o chinelo, e aí então tudo se torna amargo como fel, e então comecei a me sentir “down” e “down”, como um inseto deserdado, como uma barata sobre a neve, como um biscoito amolecido debaixo do armário.
E, por pura necessidade de desafiar o perigo, em vez de me enrustir pelo mato adentro e lá ficar vegetando à cata de restos de comida e lixo, subindo pelas folhas do capim, decido por esta casa antiga com diversos moradores e alguns convidados de fins de semana e, o que é pior, em vez de me esconder no sótão no meio de ratos e objetos quebrados, me aventuro pelo jardim, pela dispensa e pelos armários, numa verdadeira afronta aos circunstantes – um grito de alerta aqui, um grito de nojo ali, um grito de espanto mais além – e eu me divirto vendo as pessoas correndo como baratas tontas atrás de instrumentos e apetrechos de defesa, tão grandes e tão poderosas, tão cultas e tão soberbas, tão importantes e tão valentes, tão idiotas.
No verão, então, é um pandemônio – baratas voando e correndo em ziguezague pelos cantos, besouros barulhentos chocando suas carapaças de encontro às paredes e depois – pobres imbecis – revirando as pernas de barriga para cima como uma tartaruga, incapazes de voltar à sua posição normal graças ao seu formato antiestético e antianatômico, com o centro de gravidade colocado numa posição nada estratégica denunciando um projeto mal feito para um inseto mal-acabado, a vergonha dos coleópteros.
E aquelas formigas-de-asa voando semiloucas em torno da lâmpada de cem velas e caindo exaustas dentro do prato de sopa, se enroscando nos cabelos da mocinha ou fazendo cócegas nas suas costas alvas e decotadas devido ao calor reinante nesta época do ano!
E os mosquitos e pernilongos explodidos na parede e marcando coágulos de sangue de humanos recém sugados, face à hélice do ventilador que chupa e expulsa como um vórtice?
As noites de luar são as minhas preferidas. É gostoso passear no cimento frio e fazer companhia aos grilos, mas é perigoso e assustador estar a cada canto topando com homens mal-intencionados e armados até os dentes não necessariamente à nossa captura, mas aproveitando a cada instante para extravasar o seu ódio irracional e para nos matar pelo simples prazer de matar – afinal os racionais, se é que assim podem ser chamados, matam para se alimentar, mas nós não somos alimento para essa gente dita civilizada.
Por precaução me dirijo até o fundo da casa, para o quarto de despejo onde se acumulam garrafas cheias e garrafas vazias, algumas ainda com vestígio de bebida dentro, e também jornais velhos e uma coleção de trapos. E fico lá, espreitando no escuro, vivendo a vida, planejando meus próximos movimentos.
De repente, a luz se acende.
Minhas antenas se movem tentando captar de onde vem o perigo. Uma bota enlameada se arremete rapidamente em minha direção. Meus sentidos se inflamam, minha asa se dilata, minhas farpas se arrepiam.
Meu odor característico toma conta do ar numa autodefesa e na tentativa desesperada de pedir ajuda procuro me enveredar pelas garrafas enfileiradas, mas o meu perseguidor não para a sua perseguição.
Com um pontapé afasta as garrafas do seu caminho e do meu caminho. Sinto-me relativamente aliviada, pois não vejo lá no alto a chuva aletrina e não vou ser combatida por criminosos utilizando a abominável guerra química, desta vez a batalha será de igual para igual, eu com a minha rapidez e os meus truques buscando rachaduras e interstícios para me esconder e me camuflar, ele com o seu tacão e bota agindo como um demente, espatifando garrafas e procurando me esmigalhar com os pés.
Consigo me esconder por detrás de uma caixa de papelão cheia de sabão em barra, com aquele cheiro enjoativo de sebo com composto de sódio, e me julgo a salvo por um instante.
Vislumbro uma companheira distraída e corro em sua direção para avisá-la do perigo que nos cerca, ambas nos camuflando com o desenho avermelhado da caixa de sabão próxima à nossa estampa reproduzida por algum artista numa embalagem vazia de inseticida.
Procuro manter a calma e arquitetar algum plano de salvamento; será que ajuda ficar como o besouro, barriga pro alto, e me fingir de morta? Ou será mais prudente bater as asas e sair voando em direção ao rosto do meu oponente para fazê-lo ficar pasmo com a surpresa e o susto? Ou ainda atravessar a abertura da caixa e me misturar com as barras de sabão mesmo correndo o risco de uma intoxicação mortal ou de uma contaminação lenta e progressiva por quaternário de amônia?
Enquanto eu penso e considero, as antenas ouriçadas e os sentidos em estado de alerta, minha companheira resolve sair do nosso refúgio e se aventurar entre algumas garrafas e um maço de jornal amarrado com um barbante desfiado.
Quer seja por descuido, quer seja por desfaçatez ou destemor, incúria, desafio, precipitação ou esquecimento, ela se move lenta e compassadamente, chamando a atenção do agressor.
Então, tudo se transforma em um segundo – a bota, o bote, o  grito, o ruído e o esmagamento, e minha companheira se esborracha entre o solado e o chão, espremida como um furúnculo maduro, visguenta como creme de baunilha misturado em molho chinês, patas e asas arrancadas e uma antena partida.
Fico imóvel como uma estátua de pedra, tensa e alerta, enquanto o par de botas se afasta, a luz se apaga e se ouve uma gargalhada de regozijo.
Só restamos eu e a caricatura esmigalhada da minha audaciosa companheira.
E sabões, poeira e teias de aranha.