sábado, 31 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 17 - O HOMEM POR DETRÁS DO TRONO
            (continuação)

Enquanto dirigia a parte musical da Black Swan, Fletcher Henderson gravou as suas primeiras composições, “Chime Blues” e “The Unknown Blues”, ambas feitas em 1921.

Foi quando ele conheceu Ethel Waters, uma das mais consideradas atrizes e cantoras de blues da época. Durante um intervalo de gravação, Henderson sugeriu a Ethel que subisse o tom de uma canção a fim de torná-la mais confortável para a altura e o timbre da sua voz. Ethel adorou a sugestão e se encantou com a simplicidade e a musicalidade do jovem pianista; três meses depois ela o convidou para fazer parte do seu grupo numa pequena turnê pelo centro-oeste.

Foi uma decisão difícil de ser tomada por Henderson, pois ele ainda não estava preparado para “pegar a estrada”, e de certa forma devia favores a Harry Pace. Pace, no entanto, por entender que o futuro de Henderson necessitava de um horizonte mais amplo do que o serviço quase burocrático que ele executava na gravadora, o liberou sem maiores dificuldades, deixando as portas abertas para um possível retorno no futuro, o que acabou jamais acontecendo.

A excursão com Ethel Waters foi realmente o primeiro impulso na sua carreira. Henderson começou a entender melhor como funcionava uma banda, quais as dificuldades e os imprevistos que poderia encontrar pela frente e como lidar com um público que vaiava ou aplaudia com a mesma intensidade, dependendo do teor alcoólico consumido e das canções apresentadas. Aprendeu também a trabalhar em grupo e a suplantar as dificuldades naturais de um relacionamento heterogêneo com músicos e empresários.

A turnê rendeu a Fletcher Henderson um bom dinheiro, muitos elogios e o reconhecimento de muitos músicos de Nova York. Com isso, apareceu a oportunidade de acompanhar ao piano outras cantoras de talento, como Trixie Smith, Mamie Smith e Ma Rainey, e de gravar duas músicas – “Nobody’s Blues But Mine” e “The World’s Greatest Blues Singer” – com a famosa Bessie Smith.

No início de 1924, Fletcher conseguiu um emprego à noite para tocar no Little Club, um bar perto da Broadway, onde travou conhecimento com diversos músicos de orquestra, entre eles um saxofonista chamado Don Redman, que se diferenciava do restante do grupo por possuir algumas ideias musicais bastante arrojadas.

Don Redman era um músico de West Virginia, recém-desligado da Billy Paige’s Broadway Syncopators, e tocava clarinete, sax-alto e oboé com muita desenvoltura, extraindo destes instrumentos sons considerados “de vanguarda” para aquela época dominada pelas orquestras de salão e pelo dixieland.

Redman começara recentemente a tocar com a banda do Little Club e, devido aos seus arranjos modernos, havia adquirido uma certa liderança junto aos músicos, que respeitavam o seu conhecimento e a sua técnica avançada. Acostumado a tocar com pessoas de qualidade não mais do que mediana, ele ficou feliz ao conhecer Fletcher Henderson, percebendo nele um pianista que poderia compartilhar das suas convicções musicais, pois Henderson desenvolvia no teclado algumas estruturas também diferentes e incomuns.

Juntos, eles começaram a reconstruir o som da banda do clube e bastaram algumas semanas para que Redman indicasse Fletcher Henderson para ser o novo líder, “porque ele tinha modos refinados, tocava piano com estilo, e demonstrara ser um aglutinador, com sua fala macia e bem educada”.

Henderson se revelou um autêntico bandleader, e começou por colocar no repertório alguns dos novos arranjos produzidos por Redman, ao lado de algumas músicas de sua autoria, como “Doo Doodle Blues”, “Down South Blues”, “Old Black Joe’s Blues” e “Dicty Blues”, todas compostas em 1923. Uma novidade inventada por Don Redman – a presença de um naipe de três clarinetes – dava aos arranjos uma sonoridade toda especial e absolutamente única.

A orquestra alcançou uma projeção rápida e surpreendente, e passou a se apresentar no Club Alabam, que era mais movimentado e mais conceituado do que o Little Club. Em pouco tempo, a Henderson’s Dance Orchestra, que passara a ser conhecida como Henderson’s Club Alabam Orchestra, foi contratada para se apresentar no Roseland Ballroom, um dos mais famosos salões de baile de Nova York, em substituição à orquestra de Armand J. Piron, que decidira voltar para Nova Orleans. O contrato com o Roseland Ballroom previa um período de quatro anos, mas acabou durando dez.

Naquela época, 1924, sua orquestra – agora rebatizada como Henderson’s Dixie Stompers – já conseguia rivalizar com a famosa Paul Whiteman Orchestra e com a orquestra de Duke Ellington, que se exibia no Cotton Club.

Mesmo, porém, com os arranjos de Don Redman, o repertório da orquestra ainda incluía tangos, valsas e outras músicas populares feitas para dançar. Tanto Henderson quanto Redman queriam evoluir, mas havia uma certa acomodação no comportamento dos músicos – a rigor, apenas o saxofonista Coleman Hawkins e o pianista e arranjador Horace Henderson, irmão mais novo do maestro, compartilhavam com a necessidade de jazzificar o estilo.

Foi quando Fletcher Henderson se encontrou com o contrabaixista Bill Johnson, que tocava em Chicago na Creole Jazz Band de King Oliver, para um ocasional bate papo num dos intervalos do Roseland.

Henderson estava tomando um refrigerante – ele não tinha o hábito de beber, coisa rara entre os músicos que tocavam na noite – quando Johnson se sentou à sua mesa. Johnson já estava um pouco “alto” por conta de meia dúzia de coquetéis de frutas temperados com gim que havia ingerido durante o show e começou a falar sobre as atribulações que King Oliver estava enfrentando em Chicago, com a perspectiva de perder dois ou três músicos – inclusive ele, Bill Johnson.

Bill Johnson mencionou “en passant”, que o trompetista Louis Armstrong, cuja fama já extrapolava de Chicago para Nova York, estaria propenso a deixar a Creole Band para tocar na quase desconhecida Ollie Powers’ Syncopators. O motivo, dizia Johnson, é que a esposa de Armstrong, a pianista Lilian Hardin, era extremamente ambiciosa e não se conformava em ver seu marido, com o enorme talento que Deus lhe havia dado, se apresentar como o segundo trompetista de Oliver.

Dê o fora da banda de Oliver e procure mostrar sua cara como solista, pois você é muito melhor do que ele”, insistia ela, ao que Armstrong retorquia que tal procedimento seria deselegante, pois King Oliver sempre fora o seu mestre e ele, Louis, lhe devia muitos favores.

Armstrong se lembrava dos tempos de Nova Orleans, quando King Oliver, a quem Armstrong chamava de “Papa” Oliver, lhe ensinara pacientemente os segredos da corneta e do trompete. Ele sentia um pouco de remorso ao saber que a sua saída do grupo poderia dar início a uma debandada geral, pois os músicos, na sua maioria, estavam fascinados com a possibilidade de mostrar o seu trabalho em diferentes casas noturnas de Chicago ou mesmo de Nova York. Além do mais, conjeturava Armstrong, Oliver estava doente e precisava mais do que nunca do apoio dos amigos para conseguir levar sua orquestra adiante.

Fletcher Henderson entendeu o lado humanista da coisa, mas a conversa com Bill Johnson mexeu com a sua cabeça.

Ele tinha uma boa índole, e doía na sua consciência a ideia de desfalcar King Oliver do seu músico mais promissor, mas havia uma grande necessidade de injetar um pouco de oxigênio na sua própria orquestra, e parecia que, de qualquer maneira, Armstrong estava mesmo se desligando da Creole.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 


FLOR DO MANGUE

(Augusto Pellegrini)

Pobre puta de alma destroçada
Sem rumo exato e com destino incerto
É sempre vista e sempre rejeitada
Como o fio de esgoto que passa por perto

Rosa sem viço, flor despetalada
Olhar sem brilho, coração em postas
Voz sem vontade, imagem desfocada
Pesado fardo a carregar nas costas

Surge outro dia sem futuro ou paz
E ela oferece muito mais que um beijo
Quem passa sente um misto de desejo
E desolação, que a magra imagem traz

Falsa alegria, libido canhestro
De quem fez da vida um pacto de sangue
Uso e descarte é a sina que lhe resta
Estrela apagada, pobre flor do mangue

 

Fevereiro 2019

 

 

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

 


NOVOCABULÁRIO INGLÊS

(Copyright FluentU) 

(ver tradução após o texto) 

CRINGY 

Have you ever heard someone say something so embarrassing you even felt sorry for them? Have you been present in a situation where someone was acting so awkwardly that you wished you were nor there? If so, then you were CRINGING. To CRINGE means to feel embarrassed and ashamed about what someone is doing or saying. You can even CRINGE at yourself, but let’s be honest here, we normally CRINGE at other people (let some other person CRINGE for you…)    

 

            “His mum was dancing cheek to cheek with his best friend and he couldn’t help but CRINGE.”

 

            “She CRINGES every time she listens to his lovey-dovey comments.”

           

           

In more recent times, you can even use the verb CRINGE instead of the adjective CRINGY to describe something that makes you CRINGE.

 

            “That outfit she’s wearing is so CRINGE…”          

 

                          

 

TRADUÇÃO

 

CONSTRANGEDOR

Você já ouviu alguém dizer algo tão embaraçoso que você acabou se sentindo envergonhado (a) por ele? Você já esteve presente numa situação na qual alguém estava se comportando de maneira tão inconveniente que você desejou estar a léguas de distância? Se isto aconteceu, então você estava se sentindo CONSTRANGIDO. Se sentir CONSTRANGIDO significa ficar profundamente embaraçado e envergonhado por causa de alguma coisa que alguém disse ou fez. Você pode até se CONSTRANGER por alguma coisa que você próprio disse ou fez, mas sejamos honestos, é muito mais confortável se CONSTRANGER pelos outros (e deixar que alguma outra pessoa se CONSTRANJA por você...).

 

“A mãe dele estava dançando de rosto colado  com o seu melhor amigo, e ele estava se sentindo extremamente DESCONFORTÁVEL”.

“Ela fica CONSTRANGIDA toda vez que ele vem com aquela conversa melosa”.

“A roupa que ela está usando é realmente CONSTRANGEDORA...”.

 

 

 

 


AS CORES DO SWING
            (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 17 - O HOMEM POR DETRÁS DO TRONO
            (continuação)

Corria o ano de 1910, e Smack tinha treze anos.

A família, estabilizada no conforto da classe média, não se deparava com maiores problemas financeiros e continuava apostando que, num futuro próximo, Fletcher “Smack” Henderson seria um farmacêutico ou um químico de renome. Para tanto, ele foi estimulado a se  concentrar seriamente nos estudos que o conduziriam em alguns anos à Universidade Estadual de Atlanta.

Os Henderson se sentiam orgulhosos com o desempenho escolar do jovem, assim como apreciavam seu talento como pianista de salão, quando seus dedos ágeis deslizavam por sobre o teclado, registrando as mais belas peças da musica erudita.

Eles, no entanto, torciam o nariz quando Smack executava aquela música moderna demais para seus ouvidos conservadores. Certas passagens faziam lembrar o canto dos escravos que eles tão bem conheciam, e talvez por isso aquela harmonia lhes parecesse particularmente desagradável.

O sonho acalentado pela família Henderson parecia estar dando certo, pois Fletcher se graduou em 1920 em química e matemática, e deu o seu primeiro passo em busca da fama como cientista ao se mudar para Nova York no mesmo ano, a fim de realizar seus estudos de pós-graduação.

Ele tinha vinte e três anos, muita expectativa e confiança no futuro profissional, e uma tremenda vontade de vencer.

Seria apenas uma questão de tempo para que James Fletcher Hamilton Henderson Jr., fosse laureado doutor em química, matemática e estudos farmacêuticos, e regressasse triunfante para Atlanta a fim de utilizar seus conhecimentos científicos em benefício da sua comunidade.

 

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Ao chegar em Nova York, o provinciano Smack se deparou com os primeiros obstáculos.

Primeiro, o frio com o qual ele não estava acostumado, tanto no que dizia respeito à temperatura como quanto ao relacionamento entre as pessoas. Ao contrário da jovial cidade de Atlanta, onde as pessoas se cumprimentavam e se sorriam, a iluminada, porém carrancuda Nova York transformava os cidadãos em grandes anônimos.

É certo que Smack foi muito bem recebido na cidade por uma amiga da família que lá residia havia alguns anos – uma professora aposentada também vinda de Atlanta – na casa de quem ficou hospedado por algumas semanas. Ele, no entanto, possuía um espírito bastante independente e se sentiu um bocado desconfortável tendo a sua liberdade tolhida. Logo que foi possível, Smack decidiu fazer as malas e morar numa pensão até que as coisas começassem a clarear.

A pensão ficava na animada Rua 12, próxima a bares, lojas e livrarias, e possuía um conveniente piano instalado no salão principal, no qual ele exercitava seus dedos e sua imaginação, chamando a atenção dos outros hóspedes, na sua maioria caixeiros-viajantes de passagem pela cidade, pela forma sincopada com que executava a música negra do momento.

Com o passar do tempo, Henderson começou a perceber que teria dificuldades em ingressar no tal curso de pós-graduação para dar prosseguimento à sua vida acadêmica, pois aparentemente não existiam vagas nas poucas escolas disponíveis na cidade.

Nas cartas que escrevia para os pais, Fletcher demonstrava claramente esta preocupação, e um tom de nostalgia e saudade fluía das suas palavras chorosas. A família, os amigos, a vida sossegada e sem atropelos e principalmente a sinceridade das pessoas haviam ficado para trás, em Atlanta. Nova York era uma metrópole imensa e sem alma, onde as pessoas se desconheciam e competiam entre si, não se importando em passar por cima uns dos outros para obter sucesso ou vantagens.

Não demorou muito para que Fletcher Henderson entendesse que a sua dificuldade em encontrar uma escola não tinha muito a ver com falta de vagas, mas tudo a ver com a sua cor, o que piorou seu estado de espírito.

Apesar de possuir alguns traços caucasianos, por ser fruto de uma miscigenação qualquer havida no passado, Fletcher não deixava de ser um afrodescendente, e isto estava sendo um obstáculo para suas pretensões acadêmicas.

No entanto, ele tinha necessidade de sobreviver por si próprio, pois não queria passar o resto da vida dependendo da mesada que o pai lhe mandava para a sua manutenção. Além do mais, revoltado com a situação, decidiu lutar para provar a si mesmo que venceria mais esta batalha contra a cidade. Fletcher Henderson não se renderia às atitudes racistas de Nova York.

Para tanto, confiando nos seus dotes de pianista, ele começou a trabalhar como divulgador musical para a Companhia de Música Pace-Handy, uma editora de propriedade do músico W.C.Handy e do empreendedor Harry Pace, fazendo demonstração pianística e ajudando a vender partituras.

Tudo começou quando Fletcher procurou Harry Pace, certo de que ele faria tudo para ajudá-lo, pois se tratava de um velho conhecido da família e, tal como Henderson, havia estudado na Universidade de Atlanta. Pace, que se formara em Direito, havia se associado ao músico Handy quando este estava à procura de um parceiro para fundar a editora.

Ao receber Fletcher Henderson, Pace começou a dar tratos à bola a fim de decidir qual serviço arranjar para ele, mas quando o jovem mostrou tamanha intimidade com o piano e com a música, Pace não teve dúvidas em contratá-lo para trabalhar como músico da própria editora.

Assim, quanto mais Fletcher Henderson se afastava da química e da matemática, mais ele se aprofundava na música e no piano. Harry Pace, conhecedor do mercado, ficou maravilhado em ver nele um músico negro que dominava com perfeição tanto as peças eruditas sugeridas pelos clientes quanto o jazz dos anos 1920 que estava em voga na cidade, e em pouco tempo o convidou para ocupar a posição de gerente musical da sua recém-criada gravadora Black Swan Record Company.

Para Henderson, Nova York já não parecia tão fria, pois a música lhe aquecia as veias, mas isto trouxe alguma decepção para papai e mamãe Henderson, que recebiam estas notícias na distante Atlanta sem muito entusiasmo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 


MORENA DA PRAIA 

(Armando Baraldi – Augusto Pellegrini) - samba-canção composto em 1958

 

Morena que brinca na praia

Que faz um carinho

Nas ondas do mar

Morena que pisa na areia

Pisa de mansinho

Pra não machucar

Morena namorando o vento

Jogando na praia

Dançando com o mar

Morena, oh linda pequena

Abandone a areia

Abandone o mar

Morena, somente um pouquinho

Tem dó do mocinho                          

Que inveja o mar

 

 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

 


AS CORES DO SWING
          (Livro de Augusto Pellegrini)

CAPÍTULO 17 - O HOMEM POR DETRÁS DO TRONO

Cuthbert é uma cidadezinha situada nos confins da Georgia, sul dos Estados Unidos, que o censo do ano 2006 indicava ter apenas 3.509 habitantes.

Situada próximo ao estado tradicionalmente racista do Alabama, Cuthbert era, ao final do século dezenove, um santuário onde os poucos moradores negros e brancos coexistiam pacificamente.

A falta de oportunidades, no entanto, obrigava muitos dos seus habitantes a procurarem abrigo na capital, Atlanta, ou mesmo em outras cidades um pouco maiores, como Macon, Columbus, LaGrange ou Albany, a fim de educarem os seus filhos e conseguirem empregos para manter a subsistência da família. E assim a cidadezinha seguia diminuta.

Os Henderson, uma família negra razoavelmente abastada, haviam conseguido crescer em Cuthbert agenciando a compra e venda de terras, mas preferiram se mudar para Macon, aonde o senhor Henderson viria ocupar o cargo de diretor de uma escola técnica.

Com as crianças crescendo, Macon também se tornou pequena, e o senhor Henderson achou que era chegada a hora de tentar a vida num lugar que pudesse oferecer melhores condições para a família, partindo então para a capital após vender suas propriedades no local.

Ao chegar em Atlanta, o senhor Henderson comprou outras propriedades e conseguiu se projetar como um respeitável professor para crianças e adolescentes negros, vivendo sem maiores percalços como um negro da classe média “que sabia o seu lugar”.

Isto porque em Atlanta, diferentemente de Cuthbert, brancos e negros não se mesclavam, embora a separação se processasse de uma forma natural e automática, sem maiores traumas.

Lá, os jovens negros preferiam conviver com seus pares “de cor”, deixando os brancos se agruparem em outra freguesia. Esta discriminação era feita de uma maneira discreta e confortável, sem que houvesse necessidade de se apelar para qualquer lei que determinasse uma separação compulsória decretada pelo município ou pelo estado e sem gerar constrangimentos maiores.

Assim, brancos e negros viviam relativamente felizes, cada qual cuidando dos seus afazeres sem interferirem um na vida do outro.

Apoiados por esta circunstância, os negros tinham condição de se destacarem nos estudos e de formarem bons profissionais sem terem que passar pelo dissabor de se verem preteridos por algum branco menos competente. Depois de formados, eles tinham a própria clientela, formada por negros, é claro, mas sobreviviam sem maiores problemas.

Desde criança, o filho mais velho dos Henderson, Fletcher, a quem chamavam pelo apelido de “Smack”, se destacava entre os colegas negros como um aluno exemplar, principalmente no que dizia respeito às ciências e à matemática.

Smack era um garoto vivaz e esperto, e o fato de possuir boas condições financeiras não o impedia de manter no seu círculo de amigos garotos de diferentes níveis sociais. Apesar dos outros meninos preferirem pular corda, caçar passarinhos ou fazer as traquinagens típicas da idade, ele preferia se envolver com música, participando de reuniões de canto gospel onde coordenava a garotada, pois sua inteligência diferenciada não demorou a transformá-lo numa espécie de líder da turma.

Smack adorava as ciências e a matemática, se identificando razoavelmente com a biologia e a botânica, e via com curiosidade a classificação das espécies e a sua nomenclatura latina. No entanto, ele não se dava muito bem com a literatura inglesa ou americana, nem com gramática, linguagem, ou qualquer outro assunto voltado para o lado humano da vida, como história e filosofia.

Incentivado pelos professores, ele também se sentia atraído por invenções, em especial as de Thomas Alva Edison, que era respeitosamente chamado pelos americanos de “o pai da eletricidade”, e fazia experimentos físico-químicos que às vezes provocavam um frio na espinha dos pais, temerosos de que a casa pudesse ir pelos ares.

Paralelamente, Fletcher e seu irmão Horace também recebiam lições de música, inicialmente por parte de um pastor da igreja anglicana, depois por um maestro da escola de música local especialmente contratado pelo seu pai para lhes ministrar aulas particulares.

Ele começara a estudar piano clássico tão logo sua família se estabelecera na capital. Sua predileção pela matemática o fizera perceber que existia uma íntima relação entre os meandros da aritmética elementar e o fantástico segredo dos números com os valores das notas musicais, o seu comportamento dentro dos compassos e a sua subdivisão em tempos específicos.

Fletcher se dedicou com afinco ao estudo das sonatas de Beethoven, das valsas de Chopin e dos poemas românticos de Liszt, dominando o instrumento com uma invejável facilidade para a sua pouca idade.

No início, o rapaz se preocupava em ler as partituras e reproduzir o mais fielmente possível os arranjos originais, mas aos poucos, longe dos ouvidos do professor, ele foi adicionando à música um pouco do seu sentimento pessoal. Não demorou muito para que Fletcher começasse a se interessar também pela nova música popular criada no sul dos Estados Unidos que desembarcava em Atlanta, notadamente o ragtime e o blues.

A Georgia não ficava muito distante da Louisiana, onde se praticava o jazz chamado de stomp, o ragtime e o blues, e era separada da Louisiana apenas pelos estados do Alabama e do Mississipi. Apesar de Atlanta estar localizada no centro do estado, os ecos da música de Scott Joplin, Freddie Keppard, Buddy Bolden e King Oliver haviam chegado como uma autêntica revolução musical exibindo o que se processava lá no sul.

Ao contrário do blues de raiz, que chegava à Georgia de uma maneira anônima, a música de Nova Orleans vinha rotulada e personalizada, sublinhando os nomes dos autores e dos intérpretes, o que aguçava a curiosidade do jovem Fletcher “Smack” Henderson. E não somente aguçava a sua curiosidade como também começava a lhe dar ideias criativas, de modo que ele foi pouco a pouco misturando as sonatas e as peças sinfônicas com o som dissonante e o novo estilo pianístico que chegava à cidade.

Parecia claro para ele que a América estava construindo a sua própria identidade musical, fugindo do formalismo da música europeia que seu pai estava acostumado a ouvir.