O FANTASMA DA FM
(Conto publicado em 1992 no livro “O
Fantasma da FM”)
(Parte 4)
Terça-feira,
três da tarde, começa a reunião na sala do coordenador, onde serão tratados
assuntos de interesse geral, serão distribuídos puxões de orelhas nos
negligentes, nos incompetentes e nos encostados, serão tecidos elogios a dois
ou três funcionários criativos e responsáveis, mas não serão divulgadas algumas
medidas urgentes – aumento de salário, melhores condições de trabalho,
melhorias no serviço as cantina e papel higiênico de primeira. Um debate geral,
amplo e irrestrito será levado à baila enquanto a secretária com cara de
secretária vai anotando com as devidas vírgulas e tudo o mais, sem omitir
palavra nem palavrão.
Adalgisa,
os olhos opacos pela tarde não dormida, reclama dos fantasmas enquanto olha a
cara de descrédito do coordenador, explicando que o plantão noturno da FM se
transformou numa verdadeira festa de vampiros, e pede para mudar de horário.
O
coordenador promete rever a escala e muda rapidamente de assunto.
Se
estivesse presente, o fantasma desaprovaria a ideia, mas Ernesto, o guarda do
dia sabe das inquietações de Aristides e vê a coisa com outros olhos. Na sua
opinião é preciso exorcizar o prédio, começando pelo alto portão de metal
trabalhado, passando pelo jardim de arbustos inquietos e completando pelas
dependências internas, cheias de vazio.
Durante
o dia, o constante sobe-e-desce e entra-e-sai de pessoas é intenso, o chilrear
de vozes é frenético e o crepitar das máquinas de escrever é barulhento assim
como o zumbir da máquina de telex.
Mas
à noite, para o desespero de Adalgisa e Aristides, ocorre um deslizar de
sombras, um tilintar de telefones impertinentes e um olhar voraz e obsceno pelo
vidro retangular do alto da porta.
-0-
Aristides
coça a cabeça, embasbacado.
A
porta grande, de vidro, continua fechada, a porta de madeira atrás de si
também, e os objetos da sala de recepção e os distribuídos sobre a mesa
permanecem no mesmo lugar, imóveis como convém a objetos inanimados
bem-comportados.
Nenhum
barulho de coisas em movimento, nenhum som de respiração, nenhum ruído de
passos, mas Aristides tem certeza de que enquanto ele dormitava, o queixo
pendido sobre o peito e o íntimo em estado de alerta esperando pelo trinar do
telefone – tendo do outro lado uma criança com voz de anjo ou um dragão com voz
de metal – alguém ou alguma coisa passou por ele como uma névoa e se encaminhpu
para os meandros dos corredores da rádio.
Por
mais de uma vez ele abandonou o seu posto, abriu a porta de madeira e procurou,
perscrutante, pelo corredor vazio. por algum vulto ou algum ruído, mas o
telefone começa a gritar insistentemente e ele volta depressa para a sua mesa
para atender aquele menino que não dorme ou aquele monstro de voz tonitruante
ou quem sabe aquele ouvinte mal informado que deseja saber notícias de uma
outra emissora, e Aristides pacientemente informando que a pessoa ligou pata o
lugar errado e desligando o aparelho com a sensação do dever cumprido.
Ainda
outro dia alguém reclamava com insistência que a televisão não estava passando
aquele filme que fora anunciado há uma semana, o que não deixava se ser um
mistério, porque na tela do aparelho da recepção o filme estava lá com todas as
cores e os olhos amassados de Robert Mitchum e sua cara de gim, e a sessão da
madrugada corria aparentemente sem problemas – “...veja se o seu aparelho está
sintonizado no canal correto...!” – como é dura a vida de porteiro noturno de
rádio e tevê!
Enquanto
isso, Adalgisa seguia animando a madrugada no seu posto de serviço – “...aqui
vai um abraço todo especial para o nosso colega Ronaldo, que está ouvindo a
gente em algum canto da cidade... – tentando parecer solta, alegre e
descontraída, mas no fundo um pouco preocupada e insegura, como se estivesse
sendo vigiada.
Por
algumas vezes ela já olhara para trás, por sobre os ombros, e tivera a horrível
sensação de que a porta estava sendo aberta ou que alguém a espiava por detrás
do vidro.
Aí
ela tremeu, espantou o arrepio como um cachorro molhado e voltou a atenção para
os discos e para a música, buscando se livrar da má impressão e do mau
pressentimento, afinal tudo não passava de bobagem, tudo era fruto da sua
imaginação, da solidão e do adiantado da hora.
SEGUE