EU E A MÚSICA
UMA ORQUESTRA DANÇANTE
(Swing
pra que te quero)
O dia era 19 de outubro de 1978.
Eu estava em Belo Horizonte na companhia de um engenheiro americano chamado Robert
Mount, ambos a serviço de uma empresa multinacional para a qual trabalhávamos
na época. Eu de São Paulo, ele do Texas, duas almas perdidas na capital
mineira.
O dia havia sido quente, abafado e cansativo. Após ficarmos o tempo todo
expostos à poluição do Distrito Industrial de Contagem, finalmente voltamos
para a cidade no fim da tarde, chacoalhando na Land Rover que nos servia de
transporte.
O sol se punha no belo horizonte das alterosas, recortando a cadeia de montanhas
da Serra do Curral em contraponto com um céu de fundo alaranjado brilhante, e
as primeiras luzes da noite começavam a se fazer presentes, piscando aqui e
acolá como uma árvore de natal se espalhando pelas calçadas, enquanto a Land
Rover finalmente alcançava as artérias principais, a esta altura intensamente
movimentadas, até nos desembarcar como um par de malas em frente ao tradicional
Hotel Del Rey.
Após um breve repouso, uma hora mais tarde nos encontramos no bar do hotel para
enfim tomar a nossa merecida cerveja bem gelada e fazer os planos para um
jantar à mineira, muito embora os pedaços de queijo também mineiro e a delícia
do torresminho frito que vieram como acompanhamento já honrassem devidamente a
culinária local.
Sobre a mesa asséptica com tampo de fórmica escura, ao lado de um cardápio
plastificado e dos indefectíveis porta-guardanapo, cinzeiro e galheteiro encontrava-se
um pequeno folder anunciando para “19
de outubro, às nove da noite, o show do ano”’, o que se afigurava simplesmente imperdível:
tratava-se da orquestra de Harry James se apresentando no Palácio das Artes!
Seduzidos pela oportunidade de assistirmos a um espetáculo memorável, deixamos
prontamente de lado a ideia do jantar à mineira para nos engajar numa típica
noitada norte-americana.
Bob já havia assistido a uma ou duas apresentações da orquestra de Harry James nos
Estados Unidos – ele não sabia precisar exatamente onde, mas acreditava ter sido
em Nova York, ou em Pittsburgh, cidade sede da empresa onde trabalhávamos, ou ainda
em Houston, onde ele morava – mas para mim, que conhecia James apenas por um
par de filmes de Hollywood e por alguns discos, seria uma oportunidade
fantástica.
O Palácio das Artes ficava a uma distância não muito grande do hotel, mas por
via das dúvidas e pelo adiantado da hora resolvemos apanhar um taxi, o que
acabou sendo providencial porque de repente caiu uma chuva fina inesperada que
serviu para amenizar a temperatura da noite, mas que bem poderia ter esfriado o
nosso ânimo.
À porta do teatro se formava uma fila caudalosa, o que atestava o interesse do
público e atrasaria o início do show, mas auspiciava o sucesso do espetáculo.
Afinal, tratava-se de Harry James, um dos pioneiros das grandes orquestras dos
anos 1930, época em que surgiu como um dos mais promissores solistas de
trompete para se transformar a partir dos anos 1940 em um sucesso mundial, quando
liderou uma orquestra que variava entre o swing
tradicional e a mais pura e romântica música dançante.
Harry James era possuidor de um sopro peculiar, forte, limpo, macio e
tecnicamente perfeito. Dono de um timbre inconfundível e de um drive hipnótico, ele aliava muito
lirismo a um balanço formidável que convidava à dança.
Já veterano, James trazia consigo para a temporada brasileira alguns músicos
bastante rodados – caso do trompetista Nick Buono, remanescente do seu antigo
grupo, do baterista Sonny Payne, que durante muitos anos havia feito parte da
orquestra de Count Basie, e do trombonista Art Dragon, que tocava regularmente tanto
na sua orquestra como na Disneyland Band. A orquestra também mesclava outros músicos
bem mais jovens, como a louríssima e bela saxofonista-barítono Beverly
Dahlke-Smith (única mulher do grupo), o baixista Ira Westley com sua cabeleira fashion anos setenta, o sax-tenorista
Fred Waters e um vocalista quase desconhecido chamado Francis Dennis.
Harry James, uma lenda na história da música instrumental, reeditou o brilho da
época de ouro do swing e fez uma
apresentação de gala, com muito fôlego e muita elegância, sempre imprimindo uma
liderança segura sobre o grupo.
As músicas se sucediam dentro de
um repertório irrepreensível – “Two O’Clock
Jump” (Harry James, Benny Goodman e
Count Basie), “Cherokee” (Ray Noble),
“Don’t Be That Way” (Benny Goodman,
Edward Sampson e Mitchell Parish), “Opus
Number One” (Sy Oliver e Sid Garris), “You’ll
Never Know” (Mack Gordon e Harry Warren), “Sweet Georgia Brown” (Ben
Bernie, Maceo Pinkard e Kenneth Casey), “You
Go To My Head” (J.Fred
Coots-Haven Gillespie), “Serenade In Blue”
(Mack Gordon-Harry Warren) – tendo como base uma pegada orquestral majestosa que
servia de suporte para o som aveludado de James.
Depois
de cerca de duas horas de espetáculo, contando com o tradicional “bis”, eis-nos
de volta ao hotel bastante animados e dispostos a fechar a noite diante de mais
algumas cervejas. Afinal, tínhamos assunto de sobra para conversar, Bob
lembrando os shows dançantes da sua juventude em Des Moines, no Iowa, e eu me
atendo aos discos das grandes orquestras que ouvia desde os tempos de adolescente.
Novamente no bar, naquela altura quase vazio, experimentamos um petisco mais
substancioso, pois afinal não havíamos jantado. Dado o adiantado da hora, já
nem fazia sentido a gente reverenciar a culinária local, então partimos para um
filé trinchado ao molho madeira que, dizia o cardápio, era uma das especialidades
da casa.
De repente, entre vozes e gargalhadas, nos deparamos com dois alegres camaradas
chegando para ocupar uma mesa ao lado da nossa, dirigindo-se ao garçom e também
pedindo cerveja, mas numa mistura de inglês e castelhano.
Um deles era negro, de meia idade e de estatura mediana, os cabelos já
prateando nas têmporas, e o outro quase ruivo, mais alto e parecendo uns vinte
anos mais jovem, ambos com a camisa branca desabotoada no pescoço e as mangas
arregaçadas.
Nós imediatamente os identificamos como músicos da orquestra de James, que
coincidentemente estava hospedada no mesmo hotel. Prontamente nos apresentamos
e iniciamos uma conversa, o que foi facilitado pelo fato de Mount também ser
americano, o que quebrou o gelo instantaneamente.
Os nossos companheiros de fim de noite eram o baterista Sonny Payne e o
sax-tenorista Norm Smith, que ficaram felizes por termos estado presentes no
show e se declararam encantados com a receptividade do público.
“Really great!”, eles pontuaram.
Bob Mount aproveitou para matar saudades das coisas gringas – e eles usaram
muitas vezes de um linguajar tão local que alguns detalhes me escaparam totalmente,
em meio às suas gargalhadas – e eu aproveitei para pedir seus autógrafos na
capa do LP que eu havia adquirido no saguão do teatro.
Sonny Payne tinha pedigree, era algo
assim como uma figura histórica no mundo das big bands.
Em pouco tempo, desde meados dos anos 1940 até meados dos anos 1950, ele havia
tocado em diversas orquestras – entre elas Dud & Paul Bascomb, Earl Bostic,
Tiny Grimes, Erskine Hawkins e Count Basie – chegando também a comandar a sua
própria formação.
Foi apenas em 1966 que ele ingressou na orquestra de Harry James, numa
tentativa que James fez na época de levar para a sua orquestra a pegada da “cozinha”
de Count Basie – coisa que James jamais negou (a história conta que James
conseguiu contratar Sonny Payne, mas não o “bounce”
completo porque não conseguiu convencer o guitarrista Freddie Green nem o
baixista Eddie Jones).
Durante um certo tempo Sonny Payne dividiu o seu trabalho liderando um trio e se
transformando no baterista pessoal de Frank Sinatra, com quem tocou em diversos
shows. Mais tarde, ele retornou para a banda de Basie por algum tempo e
finalmente voltou a tocar com James, onde estava agora, e onde iria encerrar a
sua carreira.
Menos conhecido, Norman Smith havia tocado em diversas bandas, inclusive nas
orquestras de Stan Kenton e Ted Herman, da qual saiu para se juntar a Harry
James, e era um saxofonista muito seguro, embora não fizesse parte do time dos mais
selecionáveis.
Atravessamos boa parte da madrugada num alegre papo entre muitas cervejas, a
lembrança de muitas canções, muitas histórias e muito aprendizado, até que o
garçom viesse sinalizar que o serviço de bar seria encerrado.
Quer pelo cansaço, quer pela condição de astro principal, Harry James não
desceu para o bar e preferiu ir para a cama ou tomar a sua cerveja no próprio apartamento,
assim como os demais membros da sua entourage,
o que para nós foi uma pena.
Na manhã seguinte dormi até mais tarde, e apesar do amuo do motorista, a Land
Rover seguiu para a nossa missão no Distrito Industrial quando o sol já estava
alto.
-0-
No dia 27 de outubro, em São Paulo, a orquestra de Harry
James encerrava a sua temporada no Brasil, depois de passar pelo Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba. Esta seria a sua última turnê pela
América do Sul, pois o maestro passava por alguns problemas de saúde e começaria
a rarear os shows – na verdade James viria a morrer cinco anos depois, em Las
Vegas.
O show em São Paulo foi realizado num grande salão chamado Boite Aquarius, e eu
novamente participei da grande festa, desta vez sem a presença de Bob Mount.
A Aquarius era uma das discoteques
mais badaladas da cidade e sua pista de dança normalmente fervilhava com as músicas
quentes do final dos anos 1970 como “I
Will Survive” (Gloria Gaynor) com Gloria Gaynor, “Macho Man” (Henri Belolo, Victor Willis e Jacques Morali) com o Village
People, “Stayin’ Alive” (Barry Gibb,
Robin Gibb e Maurice Gibb) com os Bee Gees e “Dancing Queen” (Benny Andersson e Bjorn Ulvaeus) com o grupo ABBA e
seu B invertido, com direito à devida decoração e efeitos psicodélicos
especiais.
Naquela noite muito particular, tanto a sonoridade quanto a decoração da sala
mudou drasticamente, pois o ambiente voltou no tempo e variou de “Ciribiribin” (Alberto Pestalozza, Harry
James e Jack Lawrence) e “Trumpet Blues”
(Harry James) a “You Made Me Love You”
(Joseph McCarthy e James V.Monaco), “It’s
Been A Long Long Time” (Jule Styne e Sammy Cahn), “Jealousie” (Jacob Gade) e “Sleepy
Lagoon” (Eric Coates-Jack Lawrence), seis dos maiores sucessos de James que
não haviam feito parte do repertório de Belo Horizonte, fazendo a Aquarius se
transformar num grande Savoy Ballroom dos anos 1940.
Depois da apresentação, a orquestra se retirou do palco, mas as músicas do show
haviam sido gravadas e continuaram ecoando por quase mais uma hora para que o
pessoal pudesse continuar dançando, e alguns músicos caíram na gandaia junto
com o público.
Entre eles, lá estava o nosso amigo Sonny Payne, que esbanjava alegria e dançava
um insuspeito lindy hop, para a
alegria dos presentes.
Num momento de repouso, voltamos a trocar ideias junto ao balcão do bar, relembrando
a madrugada do Hotel Del Rey ao lado de mais outras tantas latinhas de cerveja.
Ele estava feliz em ter vindo para o Brasil e fazia planos para retornar num futuro
breve, pegando carona com alguma orquestra que viesse fazer alguma temporada
por aqui.
Mas Sonny não conseguiu realizar os seus planos, pois na sua volta para os
Estados Unidos ele contraiu uma gripe fortíssima que se transformou em
pneumonia, à qual não resistiu.
Sonny Payne morreu três meses depois do nosso encontro, no dia 29 de janeiro de
1979, com apenas 53 anos de idade e toda uma carreira de jazz-swing pela frente.
Mas deixou seu nome registrado na história e particularmente na minha história.