sábado, 11 de abril de 2020





SONHEI COM FLORES 
(Augusto Pellegrini – Odair Ferreira ‘Fala Macio’)

Sonhei com flores
É sinal de alegria ou de tristeza?
Sonhei com flores
Era um paraíso, que beleza
Sonhei com flores
Enfeitando o meu jardim
Vi a criança trazendo flores para mim
Uma rosa nascendo
Num crescendo sem fim
Um arco-íris de lilases
Cravos e jasmins

Meu Deus
Não sei por que acordei
E as pétalas de cores
Pelo chão eu derramei
Ao ver mimosa flor perdida em pranto
Pela vida em desencanto
À realidade eu voltei
Ao ver mimosa flor perdida em pranto
Pela vida em desencanto
À realidade eu voltei

1979


sexta-feira, 10 de abril de 2020





UMA PEQUENA HISTÓRIA BÍBLICA

Efraim era o criado favorito de um bem sucedido negociante chamado Salatiel, que morava numa aldeia próxima ao Monte Ebal, ao norte de Nablus, um dos centros principais do Reino de Jerusalém. Ele se tornara o criado favorito por ter sempre agido com ética e retidão, exercendo o seu trabalho com zelo e respeito, qualidades dedicadas às funções que lhe eram atribuídas.
Cumpria fielmente seus deveres de empregado, tanto ao cuidar do rebanho de cabras quanto ao zelar pelas videiras. 
Salatiel era um homem muito rico e muito justo, e buscava tratar todas as pessoas com as quais convivia – criados, parentes, clientes e outros comerciantes – com muito respeito e consideração.
Certo dia, Salatiel chamou Efraim e lhe confiou o seu cofre, pois iria se ausentar por algumas semanas e queria ter certeza de que seu patrimônio estaria bem cuidado.
Efraim garantiu ao patrão que zelaria pelo tesouro como se zelasse pela própria vida, e Salatiel partiu confiante em que faria bons negócios nas cidades para onde estava indo e que o seu dinheiro estava em boas mãos.
Na verdade, Salatiel havia escondido a maior parte da sua fortuna numa caverna onde só ele conhecia a localização. Deixara com Efraim apenas um cofre contendo 100 moedas de ouro e muitas pedras para que ficasse bem pesado, e o que fazia de fato era apenas um teste de fidelidade, pois realmente não havia a menor necessidade de que um criado tivesse que guardar o seu tesouro.
Por ser o favorito do comerciante, Efraim era constante objeto da inveja do restante da criadagem, e assim que o patrão desapareceu no horizonte, Azarias, que mantinha uma certa liderança sobre os outros criados, maquinou uma história para deslustrar a imagem do favorito aos olhos de Salatiel e se colocar no lugar dele.
Mesmo sem saber o valor contido no cofre, ele resolveu denunciar ao patrão quando da sua volta que Efraim havia aberto o cofre e surrupiado algumas moedas.
Assim resolveu e assim o fez.
Quando Salatiel voltou, foi informado por Azarias e pelos outros criados que Efraim havia traído a sua confiança, aberto o cofre e roubado algumas moedas. E os outros criados foram além, dizendo ao chefe que da próxima vez em que ele se ausentasse, era em Azarias que Salatiel devia confiar, pois Efraim não se mostrara digno de tal confiança.
Desgostoso com o problema, pois depositava inteira confiança em Efraim, Salatiel decidiu averiguar. Primeiro, abriu o cofre e contou as moedas. Ficou satisfeito com o que viu e sentiu um grande alívio por saber que seu julgamento sobre Efraim era justo e correto. O cofre continha as exatas 100 moedas de ouro.
Ao mesmo tempo Salatiel ficou triste por saber que a sua casa abrigava víboras como Azarias e pensou na melhor maneira de puni-lo.
Como não era um homem violento e como, na verdade, seu patrimônio não havia sido lesado, Salatiel decidiu que faria apenas um breve discurso e levaria Azarias à execração junto à comunidade.
Reuniu a criadagem, relatou o fato e declarou que sob o seu teto só poderiam ficar aqueles que tivessem a alma pura e bons propósitos. Acusações infundadas e a disseminação da discórdia entre irmãos eram atos do demônio e isto não poderia ser tolerado.
Finalizou dizendo: “Quem inventa maldades a respeito do seu próximo, denunciando que ele esteja fazendo mal feitos, demonstra um caráter mesquinho. Quem espalha notícias falsas ou sem comprovação é porque tem na sua mente a mesma sujeira que perpetrou para incriminar um inocente. Nunca acreditei que Efraim fosse capaz de me trair ou de agir com improbidade, mas tenho certeza de que, no seu lugar, Azarias teria agido sem retidão, pois sua cabeça é capaz de conceber tal vilania. Que este exemplo sirva de lição a todos os que, por motivo de inveja, procuram se elevar em detrimento de outros. Agindo com nobreza e dignidade, todos terão a sua vez, mas usando a língua viperina e atitudes escusas estarão se afastando da credibilidade e de Deus”.
31.12.2013

quinta-feira, 9 de abril de 2020







Para quem se interessa por jazz, segue uma entrevista que eu dei para o Almanaque Saraiva em 10 de outubro de 2012.
(Augusto Pellegrini)

É possível precisar “quando”, “onde” e “como” surgiu o jazz?
Não é fácil situar com precisão dentro do tempo como o jazz apareceu, mas é possível traçar algumas coordenadas.
O jazz, como nós o conhecemos hoje em dia é o resultado de uma série de ingredientes que foram sendo acrescentados pelos músicos a partir da última década do século 19, tais como o canto do negro escravo – seja nas work songs seja nos hollers – a louvação religiosa, as formações de bandas militares, as baladas originárias da Europa, o ragtime e principalmente o blues, esse já cultivado desde os anos 1850. Estas influências foram se estreitando para produzirem um som musical absolutamente diferente do convencional, a partir da blue note (notas diminuídas na linha melódica) e do off-beat (uma inversão no acento percussivo), sabiamente explorados por alguns artistas de rara sensibilidade, entre eles o pianista, compositor e ator de vaudeville Jelly Roll Morton.
Convencionou-se dizer que o jazz nasceu em New Orleans, mas na verdade a sua semente se encontrava espalhada em diversos outros lugares à beira do Rio Mississipi, nos estados de Missouri e Carolina do Sul, e em Kansas City. Foi New Orleans, no entanto, que sedimentou o estilo e congregou o maior número de músicos qualificados para interpretá-lo. A cidade, cosmopolita por excelência, oferecia todas as condições para uma revolução musical de tal porte.
Pode-se dizer que o jazz surgiu da necessidade de construir uma música realmente americana, a partir do blues e da miscelânea cultural representada por negros, crioulos, caribenhos, brancos e europeus que habitavam a América e que denunciavam a necessidade de se acabar com a estagnação que a música européia enfrentava havia séculos.

Muitos creditam a Elvis Presley o título de rei do rock. Na sua opinião, quem seria o rei do jazz? Duke Ellington, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis? Por que?
As pessoas sentem a necessidade de classificar por ordem de importância os profissionais de qualquer área que atinjam uma condição de excelência naquilo que fazem. Assim, na música erudita, é muito comum serem atribuídos valores comparativos entre Bach, Beethoven e Mozart, por exemplo, como se fosse possível dar notas de avaliação para o seu trabalho e para a sua genialidade.
O mesmo ocorre com o jazz. Da mesma forma que Elvis foi chamado de “o rei do rock”, Benny Goodman foi denominado “o rei do swing”, sem nenhum demérito a outros grandes músicos do estilo – Artie Shaw, Glenn Miller, Harry James, Count Basie, Chick Webb, só para citar alguns.
Assim, é uma tarefa árdua situar quem teria sido a figura mais importante do jazz, mas nos parece lógico que deva ser alguém dos primórdios, que tenha influenciado todos os demais que vieram a seguir – e isto exclui Parker, Gillespie, Monk, Davis ou Coltrane, todos irrefutáveis inovadores, mas que surgiram na esteira de algo já existente.
Ellington é um caso à parte, pois seu jazz, embora impregnado da negritude do blues, possuía um experimentalismo que de certa forma o afastava da simplicidade e da pureza com que o jazz foi concebido.
Em minha opinião – corroborada por não menos do que Wynton Marsalis e Miles Davis – o grande nome do jazz de todos os tempos, aquele que influenciou todas as gerações de jazzistas, fossem eles trompetistas ou não, foi Louis Armstrong, considerado pelo crítico Gary Giddins como “o Bach, o Dante e o Shakespeare da música americana”. 
     
Ao longo dos anos, o jazz deu origem a alguns subgêneros: do swing ao bebop, do hard bop ao free jazz, entre outros Como o senhor avalia estas variações? O senhor teria alguma favorita entre tantas? Por que?
O jazz sempre se mostrou ser uma música mutável, como de resto o são praticamente todas as manifestações artísticas, sejam elas musicais, cênicas, plásticas ou literárias. As modificações são inevitáveis, principalmente no jazz, um estilo musical que permite liberdade ao executante, fazendo o intérprete muitas vezes se fundir com o compositor. Há que se notar que exceto na passagem do swing para o bebop e dos estilos bop para o free-jazz ou o jazz-fusion, as variações que aconteceram ao longo do tempo não foram bruscas. O jazz tradicional – stomp, blues de New Orleans e Dixieland foi seguido pelo estilo Chicago, uma espécie de ponte entre o tradicional e o swing, a música das grandes orquestras – privilegiando líderes de grupo, maestros e arranjadores. E os estilos bop se seguiram naturalmente, dentro da mesma característica – bebop, hard bop, cool jazz, West Coast, third stream, funky – privilegiando a criatividade do intérprete e o improviso, e a partir do free jazz ele se desvinculou de todas as convenções, possibilitando uma gama de jazz moderno – fusion, smooth, funk, acid –, com uma alta dose de tecnologia, que deu outra característica ao jazz, mas sem descaracterizá-lo.
Pessoalmente prefiro o jazz dos primórdios até os anos 1980, pela minha própria vivência e formação. Digamos que eu sou mais sensível ao jazz tradicional, ao jazz das big bands e aos estilos bop.  

Muitos autores afirmam que o rock teria sido responsável pela, digamos, derrocada do jazz nos anos 60. O que o senhor pensa disso? Essa afirmativa procede?
Essa afirmativa procede em parte, devido ao engajamento da juventude pós-guerra. A juventude sempre teve um papel importante no destino das coisas, especialmente nas artes. É bom lembrar que o swing encontrou seu ponto alto exatamente quando os adolescentes e jovens adultos deram o seu aval, participando das sessões dos ball rooms e “tietando” seus ídolos, e que a invasão do jazz nas universidades se deu exatamente quando os jovens universitários descobriram o West Coast e o cool jazz . Era inevitável, portanto, que a juventude de outra época voltasse sua atenção para outro movimento. Mesmo assim, não houve a “derrocada” do jazz convencional como preconizada. Ele apenas seguiu outro rumo, mais maduro e talvez mais elitista. A incursão de músicos tidos como convencionais dentro do jazz fusion – como Miles Davis e Gil Evans – no entanto, aproximou bastante a juventude do rock ‘n’ roll dos aficionados do jazz, e precipitou o surgimento de outros músicos que agradavam ambas as partes – tradicionais e contemporâneos – como Chick Corea, Pat Metheny e Weather Report.
 .
Que avaliação o senhor faz do jazz que é feito hoje no Brasil e no mundo? Em pleno século XXI, o gênero continua a evoluir? Ou estaria atravessando um momento de estagnação? Da nova geração, quem são os grandes representantes do gênero aqui e lá fora?
Confesso que no momento não tenho acompanhado a evolução e o movimento do jazz pelo mundo afora. A globalização fez surgir nomes em todo o universo, muitos deles realmente muito bons, e a rotina diária me impede de acompanhar tudo como eu desejaria. Mas o tiro de partida que foi dado no sul dos Estados Unidos na passagem do século 19 para o século 20 provocou uma corrida que não terá mais fim, pela simples razão de que o jazz possibilita milhões de combinações musicais e culturais, e estimula a criatividade a tal ponto que os músicos se multiplicam. É claro que temos que separar o joio do trigo. A expansão mundial do jazz também fez aparecer um sem número de oportunistas que pretendem fazer jazz, mas o que produzem é uma música de qualidade medíocre. Isto pode ser facilmente constatado na internet, que é o Deus e o Diabo nosso de cada dia.
Não consigo declinar os nomes de grandes representantes do gênero, mas seguramente entre os novos nomes que chegaram para ficar estão a cantora e baixista Esperanza Spalding, a jovem cantora Renee Olstead, uma grata surpresa, os saxofonistas-tenor Scheila Gonzalez e Walter Smith III, o trompetista Ambrose Akinmusire e o pianista Fabian Almazan.
O Brasil está produzindo uma boa safra, mesmo tendo se engajado no projeto do jazz com muito atraso em comparação com a Europa. Acredito que a nossa grande marca ainda seja representada por músicos mais veteranos, como a Traditional Jazz Band, o trompetista Claudio Roditi e a pianista Eliane Elias (os dois últimos radicados nos Estados Unidos), a pianista-cantora Tania Maria (radicada na França) e alguns mais jovens, como o Julio Bittencourt Jazz Trio e o trio Delicatessen Jazz. E toda a turma que continua interpretando o bossa-jazz.

terça-feira, 7 de abril de 2020





O GATO CINZA   
(Excerto II)

O som da música invade a sala e embriaga os meus ouvidos enquanto a chuva cai vagarosamente numa sinfonia de pingos que soa em descompasso com o compasso do cravo.
Pressinto algum perigo como se fosse um inseto assustado, e um medo irracional me invade e me gela o sangue nas veias.
Imprudentemente, deixo a janela escancarada e fito com os olhos perdidos os galhos da castanheira balançarem ao sabor do vento. Um som vindo de fora se confunde com a música de Frescobaldi como se alguma corda do cravo tivesse se partido em mil pedaços transformando a harmonia em algo áspero e destrutivo.
(Toccata Seconda, em sol menor).
Então surge a aparição, como uma visagem.
Sentado no beiral da janela, tendo a chuva e a castanheira como fundo, o gato cinza sorri para mim. Sorri um sorriso debochado e sobrenatural, caçoa e zomba de mim e de tudo o que represento.
Mais do que tudo, sorri um sorriso que me amedronta. A Toccata Seconda será a segunda e última, me parece.
O gato cinza está estático. Seus dentes e suas unhas estão à mostra e o seu olhar avermelhado me deixa imóvel na poltrona, sem forças para me levantar, para tentar fugir, para me defender ou sequer dialogar.
Os segundos passam como se fossem horas, minha expectativa cresce e a cena fica paralisada como numa fotografia.
Ele me fita, e a sua expressão se torna cada vez mais humana, mais aterrorizante e mais provocadora. Mais diabólica.
A música cessou e o silêncio sepulcral é apenas quebrado pelo ruído compassado da agulha sobre o disco de vinil e pelo ritmo alucinante provocado pela chuva da estação.
Então, o inesperado acontece.
Ele me lança um derradeiro olhar e, tomando impulso como se fosse se lançar contra a minha garganta, gira o corpo e levanta voo como um pássaro assustado saindo janela afora em direção ao desconhecido, passando célere pelo poste de iluminação e sumindo nos céus como uma coruja em debandada.
Um relâmpago cai junto com o troar de um trovão, e depois volta a reinar o mais profundo silêncio dentro da sala.