Para quem se interessa por jazz, segue uma entrevista que eu dei para o
Almanaque Saraiva em 10 de outubro de 2012.
(Augusto Pellegrini)
É possível precisar
“quando”, “onde” e “como” surgiu o jazz?
Não é fácil situar com precisão dentro do tempo como o jazz
apareceu, mas é possível traçar algumas coordenadas.
O jazz, como nós o conhecemos hoje em dia é o resultado de uma série de
ingredientes que foram sendo acrescentados pelos músicos a partir da última
década do século 19, tais como o canto do negro escravo – seja nas work songs seja nos hollers – a louvação religiosa, as formações de bandas militares, as
baladas originárias da Europa, o ragtime
e principalmente o blues, esse já
cultivado desde os anos 1850. Estas influências foram se estreitando para
produzirem um som musical absolutamente diferente do convencional, a partir da blue note (notas diminuídas na linha melódica)
e do off-beat (uma inversão no acento
percussivo), sabiamente explorados por alguns artistas de rara sensibilidade,
entre eles o pianista, compositor e ator de vaudeville
Jelly Roll Morton.
Convencionou-se dizer que o jazz nasceu em New Orleans, mas
na verdade a sua semente se encontrava espalhada em diversos outros lugares à
beira do Rio Mississipi, nos estados de Missouri e Carolina do Sul, e em Kansas
City. Foi New Orleans, no entanto, que sedimentou o estilo e congregou o maior
número de músicos qualificados para interpretá-lo. A cidade, cosmopolita por
excelência, oferecia todas as condições para uma revolução musical de tal
porte.
Pode-se dizer que o jazz surgiu da necessidade de construir
uma música realmente americana, a partir do blues e da miscelânea cultural
representada por negros, crioulos, caribenhos, brancos e europeus que habitavam
a América e que denunciavam a necessidade de se acabar com a estagnação que a
música européia enfrentava havia séculos.
Muitos creditam a
Elvis Presley o título de rei do rock. Na sua opinião, quem seria o rei do
jazz? Duke Ellington, Charlie Parker, Dizzy
Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis? Por que?
As pessoas sentem a necessidade de classificar por ordem de
importância os profissionais de qualquer área que atinjam uma condição de
excelência naquilo que fazem. Assim, na música erudita, é muito comum serem
atribuídos valores comparativos entre Bach, Beethoven e Mozart, por exemplo,
como se fosse possível dar notas de avaliação para o seu trabalho e para a sua
genialidade.
O mesmo ocorre com o jazz. Da mesma forma que Elvis foi chamado de “o rei do
rock”, Benny Goodman foi denominado “o rei do swing”, sem nenhum demérito a
outros grandes músicos do estilo – Artie Shaw, Glenn Miller, Harry James, Count
Basie, Chick Webb, só para citar alguns.
Assim, é uma tarefa árdua situar quem teria sido a figura mais importante do
jazz, mas nos parece lógico que deva ser alguém dos primórdios, que tenha
influenciado todos os demais que vieram a seguir – e isto exclui Parker,
Gillespie, Monk, Davis ou Coltrane, todos irrefutáveis inovadores, mas que
surgiram na esteira de algo já existente.
Ellington é um caso à parte, pois seu jazz, embora impregnado da negritude do blues, possuía um experimentalismo que
de certa forma o afastava da simplicidade e da pureza com que o jazz foi
concebido.
Em minha opinião – corroborada por não menos do que Wynton Marsalis e Miles
Davis – o grande nome do jazz de todos os tempos, aquele que influenciou todas
as gerações de jazzistas, fossem eles trompetistas ou não, foi Louis Armstrong,
considerado pelo crítico Gary Giddins como “o Bach, o Dante e o Shakespeare da
música americana”.
Ao longo dos anos, o
jazz deu origem a alguns subgêneros: do swing ao bebop, do hard bop ao free
jazz, entre outros Como o senhor avalia estas variações? O senhor teria alguma
favorita entre tantas? Por que?
O jazz sempre se mostrou ser uma música mutável, como de
resto o são praticamente todas as manifestações artísticas, sejam elas
musicais, cênicas, plásticas ou literárias. As modificações são inevitáveis,
principalmente no jazz, um estilo musical que permite liberdade ao executante,
fazendo o intérprete muitas vezes se fundir com o compositor. Há que se notar
que exceto na passagem do swing para
o bebop e dos estilos bop para o free-jazz ou o jazz-fusion, as variações que
aconteceram ao longo do tempo não foram bruscas. O jazz tradicional – stomp, blues de New Orleans e Dixieland
foi seguido pelo estilo Chicago, uma
espécie de ponte entre o tradicional e o swing,
a música das grandes orquestras – privilegiando líderes de grupo, maestros e
arranjadores. E os estilos bop se
seguiram naturalmente, dentro da mesma característica – bebop, hard bop, cool jazz, West Coast, third stream,
funky – privilegiando a criatividade
do intérprete e o improviso, e a partir do free
jazz ele se desvinculou de todas as convenções, possibilitando uma gama de
jazz moderno – fusion, smooth,
funk, acid –, com uma alta dose de
tecnologia, que deu outra característica ao jazz, mas sem descaracterizá-lo.
Pessoalmente prefiro o jazz dos primórdios até os anos 1980, pela minha própria
vivência e formação. Digamos que eu sou mais sensível ao jazz tradicional, ao
jazz das big bands e aos estilos bop.
Muitos autores
afirmam que o rock teria sido responsável pela, digamos, derrocada do jazz nos
anos 60. O que o senhor pensa disso? Essa afirmativa procede?
Essa afirmativa procede em parte, devido ao engajamento da
juventude pós-guerra. A juventude sempre teve um papel importante no destino
das coisas, especialmente nas artes. É bom lembrar que o swing encontrou seu ponto alto exatamente quando os adolescentes e
jovens adultos deram o seu aval, participando das sessões dos ball rooms e “tietando” seus ídolos, e
que a invasão do jazz nas universidades se deu exatamente quando os jovens
universitários descobriram o West Coast
e o cool jazz . Era inevitável,
portanto, que a juventude de outra época voltasse sua atenção para outro
movimento. Mesmo assim, não houve a “derrocada” do jazz convencional como
preconizada. Ele apenas seguiu outro rumo, mais maduro e talvez mais elitista. A
incursão de músicos tidos como convencionais dentro do jazz fusion – como Miles Davis e Gil Evans – no entanto, aproximou
bastante a juventude do rock ‘n’ roll
dos aficionados do jazz, e precipitou o surgimento de outros músicos que
agradavam ambas as partes – tradicionais e contemporâneos – como Chick Corea,
Pat Metheny e Weather Report.
.
Que avaliação o
senhor faz do jazz que é feito hoje no Brasil e no mundo? Em pleno século XXI,
o gênero continua a evoluir? Ou estaria atravessando um momento de estagnação?
Da nova geração, quem são os grandes representantes do gênero aqui e lá fora?
Confesso que no momento não tenho acompanhado a evolução e o
movimento do jazz pelo mundo afora. A globalização fez surgir nomes em todo o
universo, muitos deles realmente muito bons, e a rotina diária me impede de
acompanhar tudo como eu desejaria. Mas o tiro de partida que foi dado no sul
dos Estados Unidos na passagem do século 19 para o século 20 provocou uma
corrida que não terá mais fim, pela simples razão de que o jazz possibilita
milhões de combinações musicais e culturais, e estimula a criatividade a tal
ponto que os músicos se multiplicam. É claro que temos que separar o joio do
trigo. A expansão mundial do jazz também fez aparecer um sem número de
oportunistas que pretendem fazer jazz, mas o que produzem é uma música de
qualidade medíocre. Isto pode ser facilmente constatado na internet, que é o Deus
e o Diabo nosso de cada dia.
Não consigo declinar os nomes de grandes representantes do gênero, mas
seguramente entre os novos nomes que chegaram para ficar estão a cantora e
baixista Esperanza Spalding, a jovem cantora Renee Olstead, uma grata surpresa,
os saxofonistas-tenor Scheila Gonzalez e Walter Smith III, o trompetista
Ambrose Akinmusire e o pianista Fabian Almazan.
O Brasil está produzindo uma boa safra, mesmo tendo se engajado no projeto do
jazz com muito atraso em comparação com a Europa. Acredito que a nossa grande
marca ainda seja representada por músicos mais veteranos, como a Traditional
Jazz Band, o trompetista Claudio Roditi e a pianista Eliane Elias (os dois
últimos radicados nos Estados Unidos), a pianista-cantora Tania Maria (radicada
na França) e alguns mais jovens, como o Julio Bittencourt Jazz Trio e o trio
Delicatessen Jazz. E toda a turma que continua interpretando o bossa-jazz.