sexta-feira, 15 de abril de 2016





A FORÇA DO VANDALISMO

Mais uma confusão entre torcidas organizadas, desta vez envolvendo palmeirenses e corintianos, movimentou a opinião pública e, mais do que isso, movimentou a ação das autoridades paulistanas.
Isto aconteceu há duas semanas numa rodada em que Palmeiras e Corinthians não estavam se enfrentando, portanto, a confusão aconteceu fora dos estádios e das cercanias deles.
Desta vez os baderneiros se digladiaram em três pontos diferentes e distantes entre si, o que mostra uma estratégia criminosa bem planejada.
Todas as escaramuças tiveram como palco a zona leste de São Paulo, sendo duas em praças centrais e importantes que normalmente recebem um afluxo muito grande de pessoas e a outra numa estação de metrô. Há algum tempo esta passou a ser uma prática comum dos membros das torcidas organizadas, deixando expostos transeuntes e passageiros que circulam pelos locais.
Nos três lugares, os delinquentes travestidos de torcedores estavam fortemente armados de paus, barras de ferro, rojões e de também pelo menos um revólver, cuja bala resultou na morte de um cidadão que não tinha nada a ver com as torcidas e talvez até detestasse futebol.
Mais uma vez tivemos dezenas de presos dos dois lados que se declararam inocentes e disseram que reagiram apenas por terem sido atacados. Na delegacia, eles levaram uma carraspana do delegado, assinaram um termo de bom comportamento e foram soltos sem qualquer pagamento de fiança ou garantia de que os danos causados ao patrimônio público fossem algum dia ressarcidos. Na próxima oportunidade eles estarão aterrorizando em outros lugares, com o firme propósito de mostrar ao mundo a sua sanha assassina.
Entre os detidos se encontravam dois torcedores da Gaviões da Fiel que estavam entre aqueles que causaram a morte do garoto Kevin, na Bolívia, há três anos.
Isto é que se chama impunidade em dose dupla.
Esta impunidade vergonhosa é uma das razões que estimulam esses marginais a agirem como agem. No dia seguinte eles possivelmente irão rever os seus atos e comentar as suas bravatas olhando as imagens mostradas na televisão, possivelmente tecendo comentários sobre a sua coragem, e desdenhando a atuação dos homens que deveriam fazer prevalecer a lei e a ordem.
Estes torcedores, fortemente armados, foram filmados por câmeras de segurança – portanto podem ser facilmente identificados – depredando vagões do metrô e disparando rojões contra os adversários e contra policiais, mas continuam à solta, prontos para continuar espalhando o terror pela cidade, escudando seu comportamento animalesco por detrás de uma camisa esportiva.
Apesar de as agressões terem acontecido muito longe de qualquer estádio, o Ministério Público do Estado de São Paulo determinou que até o final do ano os clássicos paulistas recebam apenas torcedores do time mandante, talvez na esperança de que as torcidas organizadas – que não representam o clube para o qual alegam torcer – melhorem o comportamento em 2017.
Esta é uma solução que beira ao ridículo porque expõe a fraqueza da lei e a falta de autoridade dos responsáveis em fazê-la cumprir, e lembra a piada do marido que mandou queimar o sofá da casa ao se saber traído naquele móvel.
A primeira sugestão, felizmente descartada, havia sido ainda pior: o MP, por não ter a competência de resolver um problema causado por algumas dezenas de desordeiros, queria que os clássicos fossem disputados com portões fechados, em prejuízo a dezenas de milhares de verdadeiros torcedores. Como o futebol tem por trás de si toda uma estrutura financeira bancada por patrocinadores, esta solução seria um tiro de misericórdia no profissionalismo do esporte.
De um lado organizações bandidas bancadas e reconhecidas pelos clubes, cujos dirigentes usam os seus líderes como massa de manobra para serem eleitos, amedrontando adversários e desafetos. Do outro lado uma segurança pública inepta e incompetente, sustentada pelo contribuinte que se vê à mercê do medo e da violência.
No meio, uma federação perdida, sem voz e sem ideias para propor soluções com os clubes e com o governo.
Ocorrências como esta passaram a ser rotineiras no Brasil, mas são muito raras no resto do mundo.
Para onde caminha o futebol brasileiro?   


(artigo publicado no caderno Super Esportes do jornal O Imparcial de 15/04/2016)



quarta-feira, 13 de abril de 2016



Artigo publicado no Acervum - Suplemento Nacional de Literatura e Arte de  10 de abril de 2016. Acesse o limk www.acervum.com.br para ler esta e outras publicações.




POESIA & JAZZ
Augusto Pellegrini
Edgar Allan Poe, grande escritor e poeta americano do século 19, é autor de uma citação que diz “a poesia é a criação rítmica da beleza em palavras”.
Existe, na verdade, uma profunda alquimia entre os versos – e a prosa – de Poe com a música impressionista, o que tem possibilitado a muitos músicos a apresentação pública das ideias do escritor sob o ponto de vista rítmico e harmônico.
Alguns poemas de Poe se transformaram em obras musicais ou sugeriram criações musicais através de leituras e adaptações feitas por músicos como Dominick Argento (na ópera “The Voyage of Edgar Allan Poe”); a banda alemã Coppelius (no rock-metal “Murders in the Rue Morgue”); o grupo The Beatles (no pop-sinfônico “I’m The Walrous” – onde eles cantam “Man, you should have seen them kicking Edgar Allan Poe”); a banda Creature Feature (no pulp-terror-rock “Buried Alive” – com palavras como  As I walk the valley of unrest behind this mask of crimson death”); e o compositor Claude Debussy (no erudito “The House of Usher”), entre dezenas de outros, embora nenhum deles tivesse transformado Poe em jazz.
Talvez Ornette Coleman, Sun Ra e alguns outros  tenham feito isso de forma inconsciente com o seu jazz profundamente inovador, que ia além do chamado free-jazz e continha todos os ingredientes que fugiam da normalidade do cotidiano, abrangendo a para-normalidade, o mistério e o esoterismo.
Analisando a frase inicial de Poe mencionada neste artigo e procurando vê-la sob um ângulo musical, percebe-se muita semelhança de filosofia entre uma obra poética e uma composição jazzística. Para tanto, basta mudar o contexto para “o jazz é a criação rítmica da beleza em sons musicais”.
A utilização das palavras, dando-lhes o ritmo e a cadência necessários para manter o clima crescente de envolvimento do leitor, tem como eco a transposição de notas musicais secas, acordes convencionais e um beat contínuo da poesia-jazz sem brilho – semelhante a uma marcha de soldados bem ensaiada – para alterações sonoras significativas, usando acordes dissonantes e um beat invertido, como a batida de um coração emocionado, tudo sujeito a modificações constantes, como a passagem de um verso ou de um capítulo de Poe (ou uma sequência harmônica de Coltrane) para outro.
Num e noutro caso, o tema é explorado com perfeição, levando o leitor ou o ouvinte a se integrar na atmosfera proposta pelo escritor ou pelo intérprete, seja ela de leveza, de romance, de alegria e também de introspecção (como nos casos de Poe e outros autores que exploram o mistério e o macabro ou de Coleman e outros que seguem o irreal e o desconhecido). 
Na literatura, seja Poe e seus seguidores, sejam autores de estilos diversos, a gente muda de página, mas as emoções da página anterior devem permanecer para que a mente do leitor continue integrada na mensagem ou na intenção do escritor.
O mesmo acontece com o jazz e seus diferentes estilos.
Seja jazz tradicional, swing, qualquer tipo de bop ou jazz contemporâneo, o jazzista, nas mãos do intérprete, também mantém em suspenso uma profusão de notas e de acordes que funciona como uma ligação direta entre a sua emoção e a emoção do ouvinte.
Usei Edgar Allan Poe como exemplo de poeta e escritor, e como consequência Ornette Coleman, Sun Ra e John Coltrane como exemplo de interpretação jazzista, para mostrar como as coisas caminham juntas no mundo da arte. O mesmo raciocínio vale para todos os outros escritores e poetas e todos os outros músicos e jazzistas que não foram mencionados.
Fazer arte – literatura, música, ou outro tipo de comunicação criativa – só tem sentido quando a nossa obra encontra eco nas pessoas que participam como leitores, ouvintes ou seguidores do nosso trabalho.