UMA NOITE SINISTRA
Conto publicado no livro “À noite, todos
os gatos” em 1998.
(Parte 1)
E como se não bastasse. Ainda esta dor
de dente!
Dor de dente, dor de parto, dor de
angina, dor de rins, todas elas se fundindo de pélvis, costado e peito e se
transferindo para o lado esquerdo da boca, a língua grossa como uma esponja de
lavar pratos adormecida por aquela pomada preta e milagrosa, Um Minuto, o nome
escrito na caixinha de papelão antiga e rústica, como se fosse uma pasta feita
de Pílulas Contra, contra a receita médica, contra a lógica, contrassenso,
contra o bolso.
Um gole de água morna engolido com uma
Neosaldina, um Buscopan, uma Cafiaspirina e uma careta, e depois sigo tateando
como um cego, a dor fazendo acender luzes multicoloridas que piscam intermitentemente
bem no fundo da retina, meio morto, meio tonto e meio torto, da cozinha para o
corredor, do corredor para o banheiro e depois subindo em direção ao quarto.
No banheiro, uma rápida inspeção no
espelho que mostra um rosto lívido com a barba por fazer e os cabelos se
emaranhando em tufos espetados como se eu tivesse levado um choque de mil e um
volts, os olhos fundos parecendo se afundar ainda mais para dentro das órbitas
iguais aos de um vilão de cinema mudo, e o pensamento recolhendo lembranças
fugidias daquela apresentadora de telejornal que morreu de Agafen e nevralgia
do trigêmeo – depois a autópsia revelou um câncer agudo, raro e fulminante
atrás do palato – e aquele artista moderno e emancipado que morreu vegetativo
por ter abusado de pílulas vegetarianas, descontada a sobredose de morfina pura
e o litro e meio de uísque... e saio pelo corredor com vontade de socar a
cabeça no balaústre da escada nem que tudo possa vir abaixo, balaustrada,
escada, sacada e os vinte e tantos ossos da caveira – parietal, frontal,
occipital, hospital.
Tudo começou com uma maldita insônia e
todos os seus correlatos.
A rinite, que me irrita e me assola,
emparedava as minhas fossas nasais com seus tijolos invisíveis e me fazia
acordar sobressaltado a cada dormidela como se sobre a minha cabeça despejassem
pás e pás de terra.
Eu fungo, respiro, suspiro, assoo pra
dentro e assoo pra fora, tento expulsar os ácaros para ver se o ar me volta e
ele, ao contrário, me falta, tudo acompanhado por um belo enjoo e uma azia que
me incendeia as entranhas como se eu tivesse uma espiriteira acesa no lugar do
esôfago.
A bem da verdade, tudo começou mesmo com
a feijoada gorda do meio dia e o torresmo das onze, as batidas de limão com
casca e pouco açúcar temperadas de Underberg, e também as de maracujá e as de
amendoim e as de coco, que Deus me perdoe, a linguiça frita e a linguiça cozida,
e depois do excesso cruel a moleza proverbial e a sonolência anestésica, e
então as três horas dormidas, desabado e catatônico como um saco de batatas ou
um urso embalsamado na tarde pouco ventilada.
Depois, tudo prosseguiu como num script,
aquela ressaca pós-sono, a vontade de não sei o que, a não vontade de que, um
fim de festa sem glória, o dramalhão na tevê cheio de lágrimas e desilusões mal
dirigidas, os anúncios repetindo e repetindo e repetindo à exaustão e a
pachorra se assenhoreando de todo o meu ser e do meu não ser e aí a coçação de
saco tão intensa que arrancava nacos da minha epiderme, logo vou ter que
encomendar um novo da Suíça, se não novo pelo menos restaurado, sem arranhões,
tipo zero quilômetro, embalado para presente.
Aí então a tragédia.
Numa das caminhadas insones quando já
corria a madrugada que não tinha fim parei enfastiado diante da geladeira, abri
a porta de mil prazeres e não resisti ao flertar com um generoso pedaço de
goiabada cascão que piscava para mim – “muito bom para repor o açúcar no
organismo”, como dizem os charlatães de plantão – e veio uma senhora dentada e
a primeira mastigada quando de inopino o nervo exposto produziu aquela pontada
aguda e fina que me encheu de cores, até parece que houve uma repentina
interrupção de corrente elétrica, ou então fui eu que perdi o senso da luz, a
mão comprimindo a bochecha e o palavrão sendo proferido com todas as honras.
O medo atávico de dentista se
transformou rapidamente em amor à primeira vista e me sobreveio uma intensa saudade
do doutor Jacinto, apesar do ruído da broca e do esguicho direcionado da água
gelada e do sopro do ar quente comprimido.
SEGUE