A MACHADINHA
(Excerto)
Ao badalar da meia-noite ele se mira no
espelho quase apagado pela luz fraca de quarenta velas que vem da lâmpada
incandescente sobreposta ao armário do quarto, e vê seus olhos fundos e
cansados, o cabelo como sempre em desalinho e a barba geralmente por fazer, a
cara mal lavada.
Ele caminha pelo cômodo à procura dos
seus pertences, uma pequena maleta com alguns apetrechos esparsos atirada no
canto da cama e um pequeno crucifixo de metal escurecido que jaz sobre a mesa
ao lado de uma bacia com água.
Faz frio. Ele veste uma camisa de
flanela xadrez por sobre a camiseta de um branco encardido e coloca por cima da
camisa um casaco já bastante usado, enfia o boné na cabeça, apanha a maleta e
sai pela porta escura de madeira envelhecida portando no rosto uma expressão
dura e embrutecida e os olhos opacos dos desajustados. Tranca a porta com uma
chave que traz presa a uma argola e a enfia no bolso lateral do casaco junto
com o crucifixo Desce então o lance de escadas que o separa da porta da rua, a
madeira rangendo a cada passo dado.
A noite está terrivelmente feia, uma
dessas noites propícias para grandes crimes, assassinatos sem testemunhas.
Ele caminha lentamente pela rua como se
procurasse algo, levanta a gola do casaco para suportar a navalha de vento que
lhe rasga a nuca e vê a própria sombra na calçada, ora se alongando, ora dele
se aproximando a cada poste alcançado, na sua luz amarela com jeito de
lamparina.
O chão de pedras brilha umedecido pela
neblina espessa e a sua mente é um torvelinho confuso, a cabeça cheia de
imagens capazes de atentar o próprio fute, a mão apertando com força o
crucifixo e a chave como se fossem dois talismãs.
Um guincho repentino e um ruído de latas
batendo contra as pedras são os únicos sons que se interpõem à sinfonia de
passos, e uma ratazana correndo em direção ao bueiro de outro lado da rua
quebra a paragem da cena.