sábado, 18 de novembro de 2017





A VIDA TE ESPERA

Olha, que a vida te espera
Corra, que o tempo já vai
Veja que o mundo já era
Faça, que nada desfaz

Troque a dor por um sorriso
Fazendo desta vida um eterno carnaval
Cada momento um aviso
Que um dia esta festa pode acabar

Peça pra Deus um amigo
Desses que nada destrói
Tente manter este abrigo
Expulse a tristeza que dói

Canta o teu canto primeiro
Ouça o que diz tua voz
Lembra do amor verdadeiro
Esqueça essa dor de ser só

Olha, que a vida te espera
Corra, que o tempo já vai
Veja que o mundo já era
Agora chegou tua vez de cantar

Letra para o samba feito em parceria com Nelson “Zurumba” Gengo

(1979)


sexta-feira, 17 de novembro de 2017





SONHEI COM FLORES

Sonhei com flores
É sinal de alegria ou de tristeza?
Sonhei com flores
Era um paraíso, que beleza
Sonhei com flores
Enfeitando o meu jardim
Vi a criança trazendo flores para mim
Uma rosa nascendo
Num crescendo sem fim
Um arco-íris de lilases
Cravos e jasmins

Meu Deus
Não sei por que acordei
E as pétalas de cores
Pelo chão eu derramei
Ao ver mimosa flor perdida em pranto
Pela vida em desencanto
À realidade eu voltei
Ao ver mimosa flor perdida em pranto
Pela vida em desencanto

À realidade eu voltei

(1959)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017






Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.

SOLILÓQUIO

(Parte Quatro e Final)

Tão zelosa tempos atrás, minha mãe já não se importa que gatos mexam e remexam nos nossos seus guardados, nos nossos guardados, nem os ratos, nem os abutres que reviram as gavetas como a um animal putrefato, nosso santuário, minha intimidade.
Mas afinal, o que pretendem os meus detratores? Violentar a minha imagem, já não tão nítida como era ontem, e antes de ontem, excrementar no meu túmulo, apagar os traços da minha memória, apoquentar o juízo dilacerado da minha mãe, meu pai, meu gato, ou simplesmente bisbilhotar sob o pretexto de que da ordem se faz o progresso, se não muito ético, pelo menos patriótico?
Poucos hão de se lembrar dos fios de cabelos brancos que brotavam do alto da minha orelha, fios desafiadores embora desafinados com o negror das sobrancelhas, poucos irão se lembrar da falha do meu dente incisivo e do pequeno sinal entre os olhos, mas todos irão se lembrar, relembrar e comentar as minhas falhas e os meus defeitos, as minhas faltas e os meus preconceitos, os meus insucessos.
Tento comentar estas vilanias com meus novos vizinhos, mas parece que eles pouco se incomodam, vai ver que com o passar do tempo eu também ficarei assim indiferente, assim diferente. Olho para o horizonte e o máximo que consigo ver é o vazio tisnado de negro, agora que a noite se abate novamente sobre a minha cidade silenciosa, e o máximo que consigo depreender dos meus companheiros é um total descaso pelas coisas vãs do mundo dos lobos, do mundo dos gatos.
Sinto-me leve como nunca me senti e respiro o ar da tranquilidade, muito embora repouse a carcaça nauseabunda num buraco sem conforto, minha atual propriedade, assim como foram minha propriedade todas as cadeiras nas quais eu sentei, isto enquanto sentado, todos os livros que eu li, mesmo sendo emprestados, e todos os cinemas e teatros que eu frequentei, pois enquanto eu lá estava aquilo era realmente meu, assim como sempre foi realmente meu este mundo sem o qual ou com o qual eu não faço absolutamente nada, por uma questão de coerência.
Recordo novamente a minha última solenidade, igual a tantas que já aconteceram e a tantas que deverei por força assistir por conta de habitar no natural cenário, e entendo que de nada vale participar do crime para amealhar fortunas, nem espionar a vida alheia e comentar seus desvios e desvarios, se a verdade absoluta se resume e uma chama que se apaga e a uma luz que se acende, dessas que ninguém vê mas que norteia os nossos passos feito um farol.
Penso ver um anjo, mas é só um pombo, penso ver um gato, mas é uma ratazana de cemitério.
O primeiro intruso se aproxima na manhã enevoada, cruza o portão em direção ao lado de dentro e eu então me recolho para dentro do conhecido.
Requiescant in pace.

  



quarta-feira, 15 de novembro de 2017






Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.

SOLILÓQUIO

(Parte Três)

Quanto tempo passará até que eles parem de chorar no meu túmulo e de rir na minha cara, quanto tempo passará para que eles me esqueçam por completo, quantos meses, quantos anos, quantos séculos?
Quanto tempo passará para que eles deixem de se preocupar com onde estarei agora, se na cova úmida do humo e da chuva ou se em todo lugar, participando sem assombrar?
Aquele baixinho de óculos eu pelo menos não conhecia e ele sequer pensava sobre o meu passado, o meu presente e principalmente o meu futuro, entretido que estava com os olhos vidrados no céu azul da mocinha debruçada, mas este outro baixote vesgo e atarracado de ultrapassadas suíças brancas que bem poderia ser meu irmão, ou meu tio, se diverte impunemente sentado na minha poltrona predileta bebendo do meu vinho e prestando atenção, ou fingindo, às perorações peripatéticas dos parentes bem ou mal intencionados que procuram consolar a minha mãe inconsolável, mãe que é pau pra toda obra, mãe que é pai pra toda hora.
O pai da filha que ninguém acredita que é filha, pois mais parece uma incestuosa concubina, deu até algum dinheiro  para o mendigo que vive escorchando o próximo no templo dos mortos, e o parasita ao invés de agradecer cerrou o punho em sinal de ódio tão logo o pai da filha lhe voltou as costas, qual um Brutus embrutecido, isso eu vi nitidamente, e não foi com os olhos que a terra se encarregará de comer, mas com os olhos clínicos de um fantasma recém-nascido.
A abertura do testamento, então foi uma festa.
O advogado contratado para ler o seu conteúdo e cuidar do inventário, como se eu fosse um almoxarifado de peças, procurava se acomodar para diminuir o incômodo causado pelo bico de papagaio a lhe cutucar o fim da coluna cervical e buscava encontrar algum pequeno tesouro para poder rechear o seu recibo de honorários, insensível à mudez sombria da viúva, às alegres suíças do amigo baixinho que segue entornando goles do meu vinho barato e lança olhares de Casanova em direção à minha mulher, agora ex-mulher, à expressão de perda da minha mãe e à sepulcral face semimorta de tia Idalina, que todos pensavam fosse antes que eu.
Todos atentos, mal sabem que a casa cheia de rachaduras e com a tinta descascada já está hipotecada, que o velho carro de pneus lisos como a sola dos meus antigos chinelos que agora têm um antigo dono já foi vendido para o dono do armarinho, e que o único terreno que na verdade possuo – repito com ênfase – QUE NA VERDADE POSSUO – está cercando meu corpo inerte e mal cheiroso, nem todas as alfazemas do  mundo, nem todas as lavandas hão de disfarçar o indisfarçável cheiro da morte que subitamente me domina, e me encanta e me espanta.
Assim foi com o finado primo Umberto, assim foi com o tio José e com o cunhado Antero, todos que seguiram na grande jornada antes de eu ser chamado para dar explicações – e eu, que andava tão preocupado com meus pecadilhos de sexta-feira vejo de repente que não existe nenhum inferno especial para os sátiros de plantão.
Fosse eu um proxeneta, um traficante, um fiscal ou um biltre assassino, então talvez não enxergasse o meu mundo interior, o meu mundo anterior com esta placidez de quem já está encomendado para o céu, de armas e bagagens.
Mas eu sorri de fato o meu sorriso de névoa ao ver a cara de desânimo dos parentes de rapina durante a divisão do meu espólio e o desalento do homem das suíças que de repente parou de velar a viúva – o relógio que atrasa dez minutos por dia para um herdeiro, as velhas fotografias da família para outro, a caneta-tinteiro com meu nome gravado para aquel’outro, as roupas que servem para o primo Ovídio menos aquela camisa cor de abacate que já está puída e respingada em branco de água sanitária e que vai virar trapo de chão ou cama de gato.
O gato, aliás, procura no fundo do armário aquilo que nunca escondeu, dir-se-ia que procura a minha alma sem saber que a minha alma está aqui, a poucos passos de distância do seu delicado nariz, e não me encontra porque é de dia, se fosse à noite, à noite todos os gatos são médiuns, todos os gatos são linces, todos os gatos são.


segunda-feira, 13 de novembro de 2017




A FAIXA DE CAMPEÃO

Pouco ou nada se sabe da origem das faixas que os jogadores de futebol recebem quando conquistam títulos na maioria das competições das quais participam. Sabe-se, no entanto, que a entrega de faixas aos jogadores campeões é uma prática comum desde que o futebol começou a ser jogado na Inglaterra no final do século 19.
Sabe-se também que este tipo de premiação é utilizado em todo o mundo, principalmente nos campeonatos nacionais ou regionais regulares, quando o calendário e o protocolo permitem a sua entrega em campo, pois normalmente a faixa não costuma ser entregue logo após o encerramento da partida que sagra o time campeão, por motivos óbvios.
Isto é bem diferente da distribuição de medalhas nos Jogos Olímpicos, Pan-Americanos, Asiáticos e quetais, porque tal prática já faz parte do ritual de premiação.
Com o atual calendário, nem sempre a definição do título acontece antes da partida final, o que impossibilita a realização da tradicional “partida de entrega de faixas” onde o rival que foi derrotado na competição muito a contragosto entrega aos vencedores as faixas de campeão com o indisfarçável desejo de “carimbar as faixas”, isto é, derrotar o campeão na sua última partida do certame.
Como estamos chegando ao fim do ano, muitos fabricantes de faixas já se assanham para prever para quem serão vendidas as milhares – em alguns casos milhões – de faixas de campeão nos diversos torneios que vão chegando ao seu final. Afinal, as faixas, que teoricamente não deveriam passar de menos de trinta para decorar a galeria doméstica dos jogadores e membros da comissão técnica, são uma exigência dos torcedores que também querem ter este troféu na sua galeria de glórias particular. 
A esta altura dos acontecimentos, poucos são clubes os postulantes a essa encomenda.
No Campeonato Brasileiro, as fábricas de confecções já estão fabricando a pleno vapor as faixas do Corinthians, que comemorará o seu sétimo título brasileiro – 1990, 1998, 1999, 2005, 2011, 2915 e 2017 – restando saber quando o título será efetivamente ganho (se contra o Fluminense, o Flamengo, a Atlético Mineiro ou o Sport). As faixas poderão ser entregues na partida seguinte.    
Já na Série B a situação é diferente. Faltando cinco jogos, o América Mineiro livra dois pontos à frente do Internacional, mas parece que tanto um como outro podem sonhar com o título. Ceará e Paraná correm por fora, mas suas pretensões maiores é ficar entre os quatro primeiros para ascender à Séria A. Não haverá mais nenhum confronto direto entre esses times.
No âmbito continental existem brasileiros na parada, na luta pela tão sonhada faixa de campeão.
O Grêmio chegou à final da Libertadores e vai decidir o título em duas partidas contra o imprevisível Lanús, da Argentina, sendo a final disputada em Buenos Aires. Com 50% de chance de ver os gaúchos campeões, os fabricantes de faixas devem estar em plena ação, pois muitos torcedores já deverão utilizar ao adorno até por ocasião da primeira partida em Porto Alegre, onde uma vitória folgada levaria o time a jogar por um empate no campo adversário.
O mesmo ocorre na Copa Sul-Americana, para cuja semifinal o Flamengo se classificou na bacia das almas, com muita luta e entrega dos jogadores, mas ainda vai ter que aguardar outros resultados saber quais serão os seus adversários.         
Por enquanto a única faixa importante no Brasil que ainda não tem candidatos favoritos à vitória, embora não faltem candidatos a candidatos, é a faixa presidencial. Neste momento histórico, esta faixa anda com a cotação meio em baixa.
  








domingo, 12 de novembro de 2017






Conto premiado em primeiro lugar no XXI Concurso Literário Cidade de São Luís em 1995.

SOLILÓQUIO

(Parte Dois)


De nada me serve agora o dinheiro que eu devia, o que eu não devia e o que me deviam, o que eu não pude gastar, perdi ou deixei de ganhar. Estivesse eu em Cafarnaum ou no Vale de Caxemira seria a mesma coisa, assim como em Londres ou Honolulu, e este som abafado do ataúde que toca con forza o fundo da cova tanto me lembra a Sinfonia Novo Mundo como a Noite no Monte Calvo.
Observo o padre aspergindo água benta mecanicamente como se benzesse uma exposição de máquinas agrícolas e vejo mãos atirando punhados de terra no ritual do derradeiro adeus como manda a tradição e recomenda a etiqueta. Alguns mais ousados atiram flores, obviamente arrancada daquela enorme coroa funerária, já que o preço das flores está – desculpem o brando trocadilho – pela hora da morte.
O senhor baixinho e calvo, portando óculos de grau com aro fino de metal que eu não conheço nem faço a mínima ideia de quem possa ser, um oficial de justiça, talvez, um cobrador, quem sabe, plantado como um pé de couve numa alameda baixa intra lapides, arrisca um olhar para cima como se estivesse olhando o céu ou simplesmente fitasse as nuvens brancas se deslocando vagarosamente pelo pálido azul da manhã, mas o que ele faz na realidade é esticar o rabo do olho para as pernas alvas e o céu de tecido azul da meninota que subiu no mausoléu ao lado e se debruça sobre a cruz para ver melhor, sem sequer desconfiar que quem vê melhor é ele.
O pedinte que faz o seu ponto regular na praça do cemitério coleia entre os participantes do festim que marca o encerramento do meu curriculum vitae na esperança de comover algum desavisado e dele arrancar mesmo que alguns poucos trocados, rejubilando-se no seu íntimo pela vantagem que leva sobre mim, ele vivo, embora um zero à esquerda, e eu irremediavelmente morto.
O cavalheiro de ares distintos, de óculos escuros como pede a ocasião, tendo a seu lado uma exuberante garota que é sua filha, embora ninguém acredite, pensa na conversa que terá daqui a pouco com o gerente do banco para renovar aquele papagaio incômodo que está lhe tirando o sono e não percebe os olhares cúpidos dos circunstantes em direção à sua sensual primogênita.
A reza puxada em voz alta atrapalha a concentração do baixinho de óculos de grau, que se sente em pecado por estar olhando para onde não devia neste momento solene, pigarreia e dá dois passos para a frente não sem antes espiar furtivamente por sobre o ombro num disfarce canhestro para ver o rosto da pequena cunhã – e não é que a danada é bonitinha? – ela estendendo ainda mais o seu tenro pescoço para tentar ver pelo menos uma nesga do caixão que acabara de sumir no fosso, abrindo seus espaços para outros interessados em anatomia descritiva.
Eu já estou impaciente e espero que todos esses intrusos comecem a se retirar dos meus domínios para que enfim eu possa gozar da paz e da tranquilidade a que tenho direito, eu e meus companheiros de fortuna, com quem estou ávido para iniciar imediatamente o congraçamento definitivo que irá emoldurar nossos futuros e intermináveis momentos de solidão e bem estar.
Já me preocupa a movimentação que será feira por ocasião do sétimo dia, quando provavelmente virão aqui de novo chorar os mais chegados, e de novo no primeiro mês, e no Dia de Finados, mas a partir daí as coisas irão se distanciando, a sétima semana, o sétimo mês, o sétimo ano, a sétima década e assim ad aeternum per omnia saecula, per omnia tempora.
Lá vão eles enfim se retirando, palrando alegres como se estivessem saindo de um convescote – “apareça lá em casa”! – “Até a próxima”! (até a próxima?! – sem dúvida o máximo da insensatez dado o momento de pesar, ainda que pretenso, e eu aqui no meu trono veja a paisagem se aquietar e se tingir de cor-de-cinza e de cor de terra, um ou outro mausoléu negro se elevando nas alturas como um edifício importante.

O último intruso atravessa o portão em direção à praça, em direção ao mundo, e eu me recolho dentro do desconhecido.