quinta-feira, 12 de janeiro de 2017






O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Quem desce a Rua da Misericórdia tem a impressão de que está se dirigindo ao fundo de um poço. Lá em baixo, mesmo quando brilha o sol, a luz parece não chegar com intensidade nem irradiar o seu calor. A rua termina numa pequena praça úmida, pavimentada com pedras esverdeadas de diversos tamanhos, com a hera subindo preguiçosa pelas paredes descoradas.
Devido à configuração geográfica do local o acesso através de qualquer veículo motorizado fica bastante difícil, de modo que as pessoas vão e vêm a pé, cumprindo uma via sacra que dispensa qualquer tipo de academia.
Muitas pessoas vão à praça quase todos os dias, vindas de diversos lugares, e descem os duzentos metros de rampa em direção à casa de numero 341, um pequeno sobrado com pintura verde descascada em frente a um calçamento cheio de trincas, por onde crescem ervas rasteiras que formam figuras irregulares, mas mesmo assim bastante agradáveis de se ver. Essas pessoas peregrinam com a intenção de consultar um mago, e têm na mente a fantasia e a esperança de resolver as suas dores da alma.
Na casa, ao lado da porta e de uma janela que está sempre fechada, há uma placa que serve de chamariz e indicativo a tantos visitantes – PROFESSOR GALBA – e em letras menores – QUALQUER QUE SEJA O SEU PROBLEMA, ELE SERÁ RESOLVIDO.
Este professor, cujo verdadeiro nome é Dorindo Farik Galbarini, filho de pai siciliano e de mãe libanesa-xiita, já havia ganhado a vida trabalhando como auxiliar de açougueiro, porteiro de prédio e vendedor de livros, até que aprendeu a lidar com a força das palavras.
Magro, calvo e muito tranquilo, ele passa a impressão de ser um monge tibetano, o que nada tem a ver com sua descendência ítalo-árabe.
Dorindo se utiliza de um método insólito e invulgar de curar problemas – de acordo com ele, todos os problemas – sejam eles de ordem psicológica, familiar, profissional, financeira ou mesmo de saúde: ele conta histórias aos seus pacientes.
Estimulado pelas suas raízes libanesas e pelas proezas de Sherazade, que contando histórias por mil e uma noites seguidas salvou a própria vida e curou o rei Xeriar da loucura e do ódio pelas virgens as quais desposava, Dorindo formulou um estratagema pseudocientífico que consistia em fazer o paciente reconhecer e curar certas fobias – que no seu modo leigo de entender eram responsáveis por todo tipo de moléstia física ou mental que alguém pudesse ter – fazendo o cliente ingressar num mundo de fantasia onde ele se identificava com determinado personagem e mudava a sua atitude em relação aos medos e à vida. O comportamento do paciente era modificado de tal forma que se transformava numa porta aberta para o sucesso, mesmo o profissional e financeiro. Como se vê, um psicoterapeuta moderno, embora sem diploma nem mestrado.
O professor Galba começou sua carreira psico-científica usando o insólito método de contador de histórias como uma forma desonesta de ganhar dinheiro, pois agia à custa da credulidade dos outros. No entanto, à medida que os incautos que caíam na sua teia começaram a apresentar um surpreendente progresso, ele acabou se convencendo de que realmente tinha tais poderes, e a partir de então sua autoconfiança o fez cair no gosto da clientela e aumentar significativamente a sua freguesia.
O negócio funciona mais ou menos assim: o paciente chega, é atendido numa antessala por uma recepcionista, que é filha de uma prima distante. Ela prepara uma ficha com os dados pessoais do cliente e os seus principais sintomas. A ficha é entregue ao professor que antes do atendimento faz uma minuciosa análise e começa a decidir qual o tipo de história que deverá ser utilizada.
No momento em que se sente confortável e confiante, o professor manda o paciente entrar sozinho no seu consultório. Se o paciente estiver acompanhado, o acompanhante deve ficar na sala de espera e, é claro, esperar.
O paciente é conduzido a uma saleta banhada por uma luz minúscula, se acomoda em uma confortável poltrona ao som quase imperceptível de uma dessas músicas utilizadas em terapias de meditação – canto de pássaros, sons do mar, farfalhar de folhas, música para a alma, ou o que mais se queira – e conta detalhadamente o seu drama. O professor ouve atenta e pacientemente, somente interrompendo se e quando absolutamente necessário.
Enquanto toma consciência do problema, Dorindo – agora transformado em professor Galba – começa a rebuscar no arquivo inesgotável do seu cérebro a história  que realmente convém para o caso.
Decisão tomada, a história é contada numa voz grave e pausada, com ares de dramaturgia, envolvendo o paciente numa aura de misticismo hipnótico.
Tiro e queda.
Depois de cinco ou seis sessões o paciente estará curado. Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta.
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Certo dia surgiu no consultório um homem estranho que não quis preencher ficha nem declinar qual seria o seu problema, apenas se identificou como Inspetor Ramalho.
A recepcionista pediu para que ele esperasse e entrou no consultório, informando ao professor a esquisitice do caso.
O professor resolveu quebrar a rotina e mandou que o homem entrasse.
Ele ficou impressionado com o porte do indivíduo: meia idade, altura avantajada, ombros largos, má catadura, calvo da testa até o alto da cabeça, mas com cabelos desordenados nas laterais, chegando mesmo a cobrir as orelhas. Trajava um casaco escuro por cima de uma camisa xadrez, o que lhe conferia um aspecto de lenhador, não fosse o corpo magro e esguio, embora espadaúdo.
O Inspetor foi direto ao ponto: na próxima semana iria trazer uma pessoa para ser consultada, e esta pessoa, no menor prazo possível deveria ser estimulada a cometer suicídio. Para tanto, o professor receberia uma alta quantia, que seria paga depois que o cidadão partisse desta para melhor.
Caso se negasse a atender ao pedido, o professor seria preso por prática ilegal da profissão e sua vida se transformaria num inferno, correndo mesmo o risco de perdê-la numa das esquinas tortuosas da cidade (e fez um gesto assustador com a mão, cortando o ar com energia – zás – como se estivesse rasgando um pescoço).
Olhou fixamente nos olhos do assustado professor e deu um aviso:
“Você não conseguirá me localizar nem adianta fazer qualquer denúncia à polícia, pedindo proteção. Eu sou a polícia”.
Finalmente, ao se encaminhar para a porta de saída, o dito policial teve uma tirada sarcástica:
“A placa diz que qualquer que seja o meu problema você saberá como resolver”.
Isto dito, o Inspetor saiu da sala com ares de insolência, batendo a porta às suas costas.
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A música exótica que vinha de um canto escondido da sala soava como uma marcha fúnebre aos ouvidos do professor.
Um enorme vazio se instalou na sua cabeça do mago. Sem saber exatamente o que fazer, começou por encerrar as sessões de terapia do dia e também as do dia seguinte, pretextando uma viagem inesperada.
Mandou a atendente filha da prima distante para casa com a recomendação de retornar somente dali a dois dias, reclinou-se na poltrona dos pacientes e começou a meditar, tendo a música como fundo.
Em primeiro lugar, seria ele capaz de provocar um suicídio? Afinal, todas as suas bem-sucedidas tentativas tinham tido como motivação principal a salvação, não a destruição do paciente. Também, como se sentiria ele ao provocar a morte de um ser humano? Ele não era definitivamente um cidadão escrupuloso, mas existe uma grande diferença entre ser, digamos, um vigarista, e um assassino premeditado.
Foi quando lhe surgiu uma ideia.
Ele contaria uma história, sim, mas esta história seria contada para o Inspetor, quando ele aparecesse para apresentar a vítima a ser imolada.
Serviria um vinho do Porto ou um prosaico café, fosse o inspetor abstêmio, e levaria a conversa para o lado que lhe interessava – afinal, era especialista nisso – buscando provocar uma confusão mental no criminoso que este ficaria em dúvida sobre o fato de prosseguir ou não com a empreitada. E, caso fosse necessário, contaria uma história especial para o coitado ameaçado de morte para alertar-lhe sobre como são inesperados os perigos desta vida.
Por força da sua arte de contador de histórias, ele salvaria duas vidas preciosas, a sua própria e a do candidato a suicida.
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As coisas, porém, não pareciam ser assim tão fáceis como ele imaginava a princípio, pois fugia de toda a lógica da sua rotina.
No seu atendimento habitual nunca houvera qualquer risco eminente, pois o professor não cuidava de problemas ambulatoriais, não prescrevia medicamentos nem fazia qualquer intervenção física. Sua atuação era feita na base da conversa, e se algum paciente não ficasse satisfeito com o resultado final simplesmente iria procurar solução em alguma outra freguesia.
Mas o caso presente se afigurava extremamente complicado.
Se motivar uma pessoa ao suicídio apenas contando uma história já era uma proeza bastante improvável de ser conseguida, com certeza muito mais difícil seria remover uma ideia fixa da mente de um criminoso.
Cheio de dúvidas e incertezas o professor, agora de volta no papel do pacato Dorindo, trancou a porta, desligou todas as luzes do aposento e foi para o seu quarto, que ficava no andar de cima, subindo pausadamente os degraus de uma escadaria de madeira, que rangia sob as suas passadas vacilantes, como se estivesse subindo a escada de um patíbulo.
Pensava histórias que iam de Shakespeare a Oswald de Andrade, fazendo adaptações dignas de um roteirista premiado.
Deitou-se na cama com os olhos abertos e procurou então uma história para contar para si mesmo a fim de que viesse a inspiração, e com ela a solução deste intrincado problema.
Dorindo se sentia totalmente perdido, pois não fazia a mínima ideia de quem seria a vítima do suicídio premeditado nem dos motivos que levavam o Inspetor Ramalho a se livrar do indigitado homem – ou mulher – condenado à morte de uma maneira tão original, e isso limitava a sua criatividade.
Sem muito que fazer, a cabeça misturando histórias e um enjoo no est\\õmago denunciando um crescente nervosismo, ele acabou adormecendo de cansaço, aterrorizado pelas ameaças do policial e acuado como uma barata num canto de banheiro.
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Passaram-se alguns dias e o professor chegou a ter uma secreta esperança de que aquele sujeito de tão má catadura tivesse desistido do assunto. Mesmo assim, ele já havia tomado a decisão sobre a história que teria melhor desempenho no caso.
Num final de tarde, porém, o sombrio Inspetor apareceu no consultório na companhia de um homem rechonchudo e de faces coradas como um bebê premiado, um tipo que simplesmente ama a vida e a quem nada poderia causar desespero ou a busca de soluções extremas, exatamente o oposto do que se espera de um suicida.
O professor Galba chamou o Inspetor para a sua sala, pois precisava conversar sobre alguns detalhes que no seu dizer facilitariam a empreitada.
Sentaram-se frente a frente e o professor ofereceu um vinho do Porto para aquecer a conversa e facilitar o diálogo. O Inspetor concordou de bom grado em tomar alguns goles e o professor apanhou a garrafa, serviu os dois cálices e começou uma peroração que indicava ao policial que tudo estava sob controle e que o plano seria cumprido sem maiores dificuldades.
O Inspetor sorveu o vinho de uma talagada só, mostrando apreciação pela qualidade da bebida e pela cumplicidade do professor, e decidiu tomar mais uma dose, desta vez civilizadamente, enquanto o plano de execução da ideia era explicado em detalhes através de uma bem elaborada história.
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Dez dias depois, os jornais da cidade falavam com estardalhaço sobre um corpo encontrado debaixo da ponte, ao lado sul do porto. A cidade, tranquila, raramente servia de modelo para manchetes deste tipo.
O cadáver era magro e calvo, e apresentava um profundo talho na garganta, mas os exames de praxe mostraram que a vítima havia sido envenenada por cianureto, provavelmente ingerido com vinho do Porto.
A vítima era um policial aposentado chamado João Madeira, que já fora também conhecido por Rebouças, Trancoso e Ramalho e que atualmente vivia de pequenos expedientes.

As coisas no número 341 da Rua da Misericórdia continuaram funcionando normalmente. 

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