quinta-feira, 21 de setembro de 2017



O TIO E A TIA
(Parte Um)


O tio e a tia se preparam para visitar a velha doente que, dizem, está muito mal e precisa de injeções e cataplasmas.
A tia é assim mesmo, caridosa e sempre requisitada quando se trata de cuidar dos outros.
Durante o dia não é raro aparecerem mulheres com problemas para um benzimento, um chá ou até um aconselhamento médico – isto eu estou vendo há mais de um mês, desde quando cheguei para passar as férias neste interior cheio de natureza, sem luz elétrica, com água de poço, galinheiro, árvores frutíferas e o cachorro Zezinho.
A tia e o tio moram sozinhos com o Zezinho, que gosta muito de mim, e meia dúzia de galinhas, que me detestam.
Agora é noite, não sei bem o adiantado da hora, mas faz tempo que escureceu e o tio e a tia se preparam para sair.
O jantar já foi servido e comido, a louça já foi lavada, e o tio foi fumar na porta da cozinha enquanto eu me entretinha com algumas pedras de dominó tentando construir um castelo.
A noite está abafada, pode chover a qualquer momento, mas eles têm que sair pra fazer caridade e pedem para eu ficar em casa – “pode pegar um resfriado, menino, a gente não vai demorar, a casa da dona Hermília fica bem ali depois do campo, logo, logo a gente está de volta” – e eu percebo que eles pretendem me deixar sozinho com os meus fantasmas e com os fantasmas dos outros que estão espalhados pela casa.
O lampião de querosene bruxuleia a sua chama e faz mover sombras sinistras projetadas pelos cantos dos móveis enquanto o avô no porta-retrato parece olhar fixamente para mim cada vez que o tio passa em frente dele com a lanterna de carbureto que vai usar para atravessar o campo. É uma lanterna mais segura no caso de uma eventual chuva, pois o avô a usava para caçar rãs e ela nunca se apagou apesar da área chafurdada e do vento úmido da várzea.
O tio veste um casaco preto e se afasta em direção à porta, fazendo com que sua imagem refletida no espelho do fundo da cristaleira se transporte parede adentro.
Como um sapo, salto do colchão que foi acomodado no chão da sala à guisa de cama e me ponho a calçar as botinas - “eu também vou, de qualquer jeito, não vou ficar aqui sozinho”.
Tenho um calafrio só em pensar que eles poderiam ter saído depois que eu estivesse dormindo, e um calafrio ainda maior ao lembrar o armário de madeira estalando na cozinha, como se alguém estivesse a lhe abrir as portas. E também aquela lufada de vento soando como uma voz pedindo ajuda.
“Então você vai e volta andando, é muito pesado para eu lhe carregar no colo se você dormir” - diz o tio com um ar aborrecido, como se eu fosse um peso morto a atrapalhar as suas andanças noturnas.

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