terça-feira, 23 de janeiro de 2018






A JUSTA ENTRE O ZÉ DA ROSINHA E O MAL-AFAMADO AGOSTINHO

(Conto premiado em 1º lugar no XXIII Concurso Literário Cidade de São Luís, em 1997, e depois publicado no livro “À Noite, Todos os Gatos”, em 1998)

(Parte 4 - Final)

A lengalenga se repetiu, arrastada – “a que horas, etcetera... etcetera... quem, quando, onde, por que?... – e a conclusão de Antenor, Leite, Barbosa e do tio da capital foi a mesma, além de Chaves, o chaveiro, que aparentemente sem nada a ver com o crime foi também convocado para depor, dada a sua suspeitosa habilidade como profissional (e se o ladrão não tivesse pulado a janela nem passado por debaixo da rede como um réptil nem voltasse com o pinho mudo nas ventas do ressonante Zé da Rosinha, mas simplesmente aberto a porta da frente com aquela famosa chave mestra que só os chaveiros – e ladrões – conseguem ter?).
Mas, de acordo com o Antenor, escaldado em galgar telhados e escalar paredes, só podia ter sido o Agostinho. Conforme Leite, especialista em transformar água em leite, só podia ter sido o Agostinho. Na opinião de Barbosa, que além de barba e cabelo também fazia o seu ponto de jogo do bicho por detrás do acortinado que cobria a porta do fundo da barbearia, só podia ter sido o Agostinho.
Até o tio que veio da capital trazendo algumas caixas de uísque feito de chá mate made in Cabrobró tinha plena certeza de que o mal-afamado Agostinho era o responsável pelo sumiço da viola, mesmo sem tê-lo propriamente conhecido.
Por medida de consciência, o delegado dispensou todas as testemunhas e foi se aconselhar com Haráclio, o padre Rolho, e com o Coronel Prudentino, que às três da tarde tomavam um bom vinho do Porto e jogavam uma partidinha de escopa, discutindo os detalhes da quermesse que a igreja faria realizar, ao som de Gregório Barrios cantando Noche de Ronda, enquanto aproveitavam para dividir o rebanho – estes vão para o céu e aqueles vão para o eleitorado.
Ambos, após consultados, foram unânimes a respeito da culpabilidade do futuro réu, a quem Rolho já considerava uma ovelha fora do seu rebanho e Prudentino preferia vê-lo alistado nas hostes inimigas.
Isso posto, toda a cidade comungando com o mesmo propósito, só restava o delegado chamar o já ressabiado Agostinho para uma acareação, ou melhor, para uma execração pública com todos os envolvidos, vítima, testemunhas e enxeridos.

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Passava das duas da tarde quando o delegado Vicente vestindo um costume de casimira inglesa que era simplesmente um despropósito para o calor da região, o ventilador de pedestal chacoalhando a hélice dentro da armação de arame enferrujado num ruído que seria infernal não fosse a natural zoada feita na sala apertada pelos cidadãos catolenses, limpou a garganta com um som deselegante e declarou aberta a sessão.
A sessão, na verdade e em todos os aspectos legais e jurídicos era apenas um interrogatório com direito a plateia – fosse Agostinho  mais astuto e menos matuto, teria pedido um advogado que se encarregaria de solicitar o esvaziamento da sala a fim de que o plenário deixasse de parecer um circo.
Com todos sentados no fórum extraordinário, Agostinho é convocado a depor, respondendo às já esperadas perguntas do delegado com as já esperadas respostas, pois como todo bom safado ele nega tudo com a maior cara de mártir.
Não fui, não sei quem foi, não sei tocar viola, não gosto de música, não tenho nada a ver com isso, não me lembro e outras evasivas do gênero fizeram parte das suas declarações entre os “ooohs” e “aaahs” da plateia cada vez menos convencida da inocência do salafrário.
Alguns sorriam entre o incrédulo e o divertido, o padre olhava para o alto somo que buscando o auxílio da Providência e Zé da Rosinha, quase conformado, calculava mentalmente o tamanho do prejuízo.
O coronel já havia preparado um discurso de improviso onde, em seu nome e em nome do partido, ofereceria em praça pública um novo instrumento que mandaria vir do Rio de Janeiro, mas deixaria a surpresa para o gran finale.
Lá pelas tantas, depois de duas horas de negativas e amolações, o delegado, já um pouco extenuado, resolveu encerrar a sessão e dispensar todo mundo, inclusive o acusado, por absoluta falta de provas e convencido de que iria continuar dando voltas como um cachorro à cata do próprio rabo sem chegar à Ceca nem à Meca.
Segundo a praxe, em meio ao silêncio pontilhado de murmúrios, o delegado olhou gravemente para Agostinho que exibia a sua cara de sonso e disse com a voz pausada e a expressão resignada pelo infortúnio do insucesso – “considerando o álibi apresentado pelo acusado, considerando a pouca evidência mostrada nos depoimentos e a consequente insuficiência de provas, vejo-me na obrigação de absolver o senhor Agostinho”.   
Álibi? Evidência? Absolver?
Completamente transtornado, Agostinho remexeu-se na cadeira. Não entendia esse português difícil, nem esse palavrório de juiz e muito menos entendia de leis.
Na sua cabeça martelava a frase do delegado-juiz como um gongo de metal – “...vejo-me na obrigação de absolver o senhor Agostinho...”
Todos olharam para a cara de pasmo do já desacusado, esperando por uma reação – um sorriso de zombaria, um gemido de compaixão, um estertor de alívio – mas o que ouviram foi uma voz fraca, combalida, balbuciante, tartamudeante.
-Faça isso não doutor, esse negócio de absolver... Faça isso não, que eu “adevolvo” a viola pro Zé da Rosinha...   





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