sexta-feira, 5 de janeiro de 2018




A SAPATARIA

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.


“Pois não?”
Caixeiro atendente de loja de calçados é a figura mais rápida e prestativa da face da terra, algo assim como um anjo da guarda do consumidor, um simpático cumpridor de ordens, um valete de copas.
A postura é sempre imaculada, aberta mas séria, controlada, respeitosa, sem atrevimentos nem peraltices, trazendo no rosto sorriso cortês do agente de seguros antes da venda, do gerente do banco antes de receber a aplicação, da mundana antes de acertar o preço, do candidato antes de ser eleito, do médico antes de matar o paciente.
Na calçada passam passantes empacotados.
A coisinha enxuta que analisava o conteúdo da vitrine a princípio não se dá conta da aproximação do vendedor, no ângulo morto que confunde a sua silhueta esbelta com a quina do vitral. Ele se coloca então numa posição mais estratégica, mais estudada, para se fazer notar, a calça cinza flanando levemente ao sopro da brisa da tarde, a camisa branca e pura adornada por uma gravata fininha, o cabelo caído na testa e a nova tentativa.
“Pois não?”
A coisinha enxuta, de saia com os joelhos à mostra, sandália de tiras e uma blusinha arejada finalmente vê a imagem do anjo refletida no vidro e vira o rosto na sua direção, olhar curioso e ouvidos atentos como um cão pequinês, inquirindo embora sem falar.
“Já escolheu?”
“Ah, você trabalha aqui? Não, estou só olhando...”
“Pois não, fique à vontade... nós temos sandálias e sapatos finíssimos...”
“Gostei muito daquela...” e aponta com o beicinho.
Conversa vai, conversa vem, entram na loja e a coisinha enxuta se senta diante de um espelho naquela posição geográfica em que se sentam todas as coisinhas enxutas que vão comprar sandálias e sapatos – este é um dos motivos pelos quais os vendedores não se importam com os baixos salários ou com a aporrinhação, e bem ele, que num certo dia sonhou que era vendedor de lingerie...
A loja lotada nesta época de fim de ano aumentava a confusão de caixas e pacotes, outros vendedores andavam de um lado para outro e outros clientes se colocavam também em posições geográficas, mas nenhuma tão estratégica e nenhuma outra freguesa tão enxuta como a coisinha enxuta ali na frente.
Vem a sandália vermelha – “não é bem essa que eu queria” – vem a azul escuro – “não gostei da fivela” – vem a cor havana – “não gostei da cor, não combina com a minha pele” – (qualquer cor, senhorita enxuta, combina com a sua pele!) – e o vendedor atencioso tira a sandália da caixa, alisa o pé da enxutinha (que dedos, meu Deus!, vale a pena ser uma frieira para habitar num recesso desses!) põe a sandália na caixa, alisa o tornozelo (que perfume, meu Deus!, vale a pena ter nariz para cheirar um pezinho desses!) – “esta está apertando um pouco” – e o vendedor olha para cima, visualizando o rostinho enxuto com a expressão enxuta e depois (que coisa, meu Deus!, vale a pena estar vivo para poder se encantar com a visão de uma vale como esse!) desce lentamente a visão por toda a área geográfica protegida por uma simples saia acima do joelho e se sente nas nuvens (que maciez, meu Deus!, vale a pena ter as pontas dos dedos sensíveis para sentir a eletricidade que provém destes pezinhos!) e pensa no poder das pernas, nas descargas elétricas e, com intenso desprazer, em Benjamin Franklin.  
E dá-lhe sandália, sandália de tira, sandália sem tira, sandália de salto, sandália sem salto, sandália de dedo, sandália de todas as cores e modelos, e a coisinha enxuta dizendo que não com o pezinho sensual no ritual de calça-descasa e as caixas se amontoando como uma pirâmide de papelão, tomando toda a lateral esquerda da loja.
A matrona, sentada também geograficamente no lugar ao lado há mais de dez minutos, está esperando a sua vez de ser atendida, pacientemente aguardando por algum caixeiro-atendente.
Definitivamente, a coisinha enxuta não está para brincadeira e depois de dezesseis pés esquerdos provados com dezesseis pés direitos dentro da caixa de papelão com o papel de seda amarfanhado e dezesseis caixas de papelão com as respectivas tampas espalhadas pelo carpete vermelho e duplicando a sua quantidade no espelho inclinado, ela se levanta como a condessa descalça, como a Cinderela que não achou o sapatinho de cristal, deixando o pobre príncipe ajoelhado com cara de paspalho e sai rebolando discretamente, na direção de outra loja de calçados para mais meia hora de tortura e desesperança de outro vendedor.
O olhar penetrante da matrona cai de chofre dobre o apatetado rapaz.
“Pode me atender agora?”
“Sim senhora...” responde meio amedrontado. “O que a senhora deseja?”
Quero experimentar uma dessas sandálias, aquela vermelha, por exemplo”.   
E vem de novo a sandália vermelha – “não é bem essa que eu queria...” – e vem azul escuro – “não gostei da fivela...” – e vem a cor havana...
E o vendedor segue angustiado, tira sandália, bota sandália, e alisa o pé cheio de calosidades – “que coisa, meu Deus!, parece o casco de uma tartaruga!”, e abre caixa, e fecha caixa, e puxa o dedão para ajustar a tira – “que cheiro, meu Deus!, é preciso um tonel de polvilho antisséptico para disfarçar essa eca!” – e a matrona reclamando – “está apertando o meu joanete!” – “que cara, meu Deus!, parece um buldogue com olhos remelentos!” – e vai por aí afora.  
Per omnia saecula.

Caixeiro atendente de loja de calçados é também a figura mais infeliz da face da terra, algo assim como um segurador de alça de caixão, um lacaio cumpridor de ordens, um dois de paus.

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