segunda-feira, 8 de janeiro de 2018





SCRATCH
ou, simplesmente
DOS NAUTAS E NAUFRÁGIOS

Conto publicado no livro “O Fantasma da FM” em 1992.


Este minúsculo conto é uma elegia ao absurdo.
Quem quiser nele encontrar simbolismos, parábolas ou comparações com situações da vida real, normal, anormal ou mesmo paranormal, vai encontrar apenas um punhado de ilógica.
De lógico, apenas um fato incontestável – um balde que cai na água deve fazer “splash!”.
Faz tanto tempo que eu escrevi estas linhas de “nonsense” que, sinceramente, não me lembro o que me motivou a fazê-lo nem os fatos que cercaram o seu aparecimento.
É por aí.
Simples espairecimentos. 
-0-
Cai um balde. Cai um balde vazio.
Vazio de líquido e de fluidos, porem repleto de surpresas.
“Scratch! Clang! clang!”
Vamos nos localizar no tempo e no espaço. O espaço é pequeno, embora o tempo seja eterno.
Estamos no convés de um brigue. Um bruto brigue flibusteiro, desses de assaltar passantes, caso haja passantes no mar.
Mar calmo. A brisa marinha sopra tranquila e salina, enquanto a proa da embarcação rasga a crista das ondas como num romance de Fenimore Cooper.
O marinheiro triste, mas com ares decididos, trajando blusa de malha listrada e lenço na cabeça, como nas sempiternas fantasias de pirata, fuma o seu cachimbo reto e se envolve em lilases nebulosas fazendo lembrar um barco a vapor. Ele funga e sopra, cospe de lado – porque na frente cai no pé – e – “swamp! chompp!” – joga o balde sobre as cordas que já enforcaram o enforcado.
Descanse o seu espírito (o espirito do enforcado) na mais santa e repousante paz e que seus ossos, seja no fundo do oceano ou no aparelho digestivo de um monstro qualquer, estejam leves. Amém.   
“Capitão! Capitão! Tem fantasmas neste navio!”
E vem o Barba Rubra, velho lobo do mar, surpreendentemente sem barba rubra ou de qualquer outro matiz, e também sem tapa-olho, pois se lutas entre corsários ainda há, esperto é o comandante que delas se omite, dando lugar ao seu lugar-tenente, que de tantos lugares já está postiço e com a perna também  postiça.
Barba Rubra é um vivaldino, pois. Barba Rubra é apenas um codinome, quase um título, assim como o chefe Touro Sentado, pois nunca se teve notícias de que este célebre líder pele-vermelha tivesse um dia mugido. Barba Rubra é um biltre. O biltre bucaneiro do brigue flibusteiro.
“Que se ice a bujarrona!”
“Mas não se crê mais em cousa alguma! Pois não estou dizendo que há almas penadas por aqui!?”
E, de chofre, vem o vento. E, de súbito, ele sopra rijo. E, num relance, uiva pungente. E punge, uivante. E vem cada vez mais forte.
E, de chofre, vem a chuva. E, de súbito, ela bate rijo. Mas que chuva, que nada! Chuva foi a de ontem! A chuva de hoje é a enchente das enchentes, de encher o mar e o ar, de encher a terra e o céu, de encher o barco e o balde, de encher o saco!
E o balde se enche de água.
Alguém joga o balde na água, por cima do tombadilho tiritante.
Silêncio...
Não se ouve o esperado “splash” no mar.
Debalde.
Para a chuva, para o vento, cessam as vozes, o que é do barco?
Não há mais fantasmas. Nem balde. Nem bujarrona, nem mezena. Desapareceu a corda que enforcou o enforcado.
Cânticos de sereias assombram e deslizam sobre as gigantescas ondas de gotas grotescas.
Na imensidão do denso das águas, ansiando pela voragem do tráfego metropolitano, “bem que meu pai me aconselhava a jamais ser marinheiro...”, sonhando com o burburinho enquanto se equilibra num escaler de primeiros socorros, desejando pisar na terra que suja os pés – e que algum dia seus olhos deveria comer – divaga o sonhador.
Não há mais nada. Só o “schwahh...” das ondas colidindo com o chão de água.
E o marinheiro triste e seu cachimbo de lilases nebulosas.




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